Após incêndio em galpão na Maré, parte das famílias segue desamparada: ‘sentimos areia cair na nossa cabeça na hora de dormir’

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Local gerava emprego e renda para região de Marcílio Dias; moradores perderam tudo após casas serem atingidas pelas chamas

Por Hélio Euclides e Samara Oliveira, em 08/07/2022 às 10h36

São 17 anos de trabalho que viraram cinzas após um incêndio se alastrar pelo galpão Recicla Bem, na comunidade Marcílio Dias – conhecida por boa parte dos moradores como Kelson’s -, no último dia 27 de junho. O casal Damião Brito de Souza, de 53 anos, e Glaucilene Santos Silva, de 34, enfrenta agora um dos maiores desafios de suas vidas: recomeçar. Pais de seis filhos, o galpão era a única fonte de renda da família. No dia do incêndio, Marcílio Dias estava sem água, o que atrapalhou a tentativa dos moradores de impedir a deflagração das chamas.

Damião, o responsável pelo espaço, estava dentro do local quando o fogo começou e não conseguiu recuperar nenhum dos seus equipamentos de trabalho. Além de correr para salvar sua vida antes que o fogo se alastrasse ainda mais, o catador atendeu o pedido de uma vizinha que suplicou para que “salvasse” o seu fogão. O galpão não era só a fonte de renda de Damião, como era também um local de geração de emprego e renda para moradores do território. Com ao menos oito carrinhos de mão, cedidos à jovens que trabalhavam como catadores de recicláveis vendendo para o espaço, Damião não impediu que eles continuassem trabalhando e vendendo o material para outros ferros-velhos. 

“Mesmo que a gente esteja parado, deixamos os carrinhos para as outras pessoas continuarem se sustentando. São homens que precisam comprar o leite dos seus filhos, outros que largaram uma vida errada, a gente sempre incentivou as pessoas a saírem da criminalidade. Não tem como a gente tirar isso deles”, conta Damião. 

Rede de solidariedade

“Nós perdemos tudo. Estamos tentando começar do zero, mas do jeito que está não tem como a gente trabalhar. Uma parede está condenada, a outra tá caindo pra dentro e o teto está todo estourado. Não tem como a gente colocar a vida das pessoas em risco. Precisamos de ajuda”, pede Glaucilene.

Em torno do galpão, foram mais de 20 casas atingidas pelas chamas. Com moradores desabrigados, Damião e a esposa abrigaram famílias dentro de um espaço que funcionava como um salão de festas. Uma rede de apoio e solidariedade se formou nas redes sociais a partir de uma iniciativa de lideranças locais e do ator e ex- BBB Douglas Silva que também é cria do território conhecido pelos moradores como Kelson’s. Uma “vaquinha” online foi criada, no entanto, não há um direcionamento para que a família de Damião receba as doações. 

Moradores se unem para minimizar os efeitos devastadores das perdas após o incêndio | Foto: Gabi Lino

Glaucilene contou à reportagem que a Defesa Civil cadastrou pessoas que ficaram em situação de rua depois do incêndio para receber o Auxílio Habitacional Temporário (AHT), um benefício provisório com o objetivo de custear a locação de imóveis residenciais por tempo determinado. Contudo, a situação não atende ao problema do casal, que tem moradia dentro da comunidade, mas tinha como único sustento o galpão do Recicla Bem que atualmente, está sem condições de trabalho. 

Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação confirmou que esteve no local junto a Defesa Civil realizando o cadastro e distribuindo o cheque do AHT dias depois do incêndio, porém para o caso do Damião o órgão informou que “…não há ações da nossa Secretaria que englobam o galpão afetado, uma vez que não se caracteriza e não se enquadra como moradia (habitação)”.

A Secretaria de Ordem Pública também foi questionada sobre a situação do espaço onde funcionava o Recicla Bem, mas o órgão respondeu apenas sobre os imóveis do entorno. Quem tiver interesse em ajudar a família, basta entrar em contato com Glaucilene pelo telefone (21) 96481-4792 (esse também é o Pix para quem puder ajudar, qualquer quantia é bem-vinda).

O que acontece depois das perdas?

Em questão de minutos, construções de uma vida inteira são reduzidas a pó. O triste episódio de Marcílio Dias, infelizmente, não é uma novidade para as 16 favelas da Maré. Um dos casos mais antigos e mais graves provocou a remoção de nove mil pessoas para diversos locais da cidade. Os moradores mais antigos da Nova Holanda não esquecem o desastre que destruiu cerca de mil barracos, há 53 anos, na Favela do Pinto.

Por sorte ninguém ficou ferido no incêndio que ocorreu em Marcílio Dias, mas as famílias que habitavam no Beco da Amizade, próximo à Rua do Alpiste, perderam tudo. O incêndio começou às 22h e logo moradores acionaram o Corpo de Bombeiros, do quartel da Penha. Profissionais de outros quatro quartéis, Irajá, Parada de Lucas, Ramos e o Grupamento Técnico de Suprimento de Água para Incêndios deram apoio. 

“Os bombeiros foram chamados, com um tempinho chegaram e foi uma trabalheira só. Durante a madrugada, buscamos dar assistência aos bombeiros ao oferecer café. Comecei a agir quando recebi uma ligação da Defesa Civil Municipal para ir buscar na Avenida Brasil, por volta das 1h”, comenta Geraldo de Oliveira, fundador e coordenador da Biblioteca Comunitária Nélida Piñon. 

“Durante a noite ficamos juntos com quem perdeu os barracos. Colocamos todos num salão de festa próximo. Conseguimos oferecer um lanche para eles. As 8h recebi outra ligação da 4ª CAS (Coordenadoria de Assistência Social) que enviou uma equipe para cadastramento das famílias que perderam seus bens. No outro dia voltaram e liberaram colchonetes, lençóis, cobertores e o cheque social para o aluguel”, detalha. Ele conta que os moradores receberam doações de material de higiene, fraldas, leite e alguns alimentos. Além de cestas básicas, moradores participaram de uma ação social na última quarta-feira (6) na biblioteca para resolver o problema de documentação.

Desamparo de famílias ainda em risco 

Apesar da assistência, um lado do galpão, onde as casas foram atingidas pelas chamas, começou a receber os benefícios. Já o outro lado ficou com apenas com o medo de ficar em suas casas. “A Defesa Civil acompanhou o lado que as casas pegaram fogo. O grande problema é a outra parede que também ficou deteriorada, com famílias que não tiveram nenhuma assistência”, lembra Ana Cunha, presidente da Associação de Moradores de Marcílio Dias. 

Defesa Civil interdita apenas área de acesso, o que deixa moradores com medo de desabamentos e sem auxílio | Foto: Gabi Lino

“A Defesa Civil veio e interditou a escada, mas como vou chegar a minha casa? Além disso, a casa é colada na parede do galpão e a estrutura tem rachadura e tudo corre risco”, explica Maria da Conceição. Isso é confirmado pela vizinha Rosana dos Reis. “Tenho quatro filhos e me sinto insegura com as rachaduras. Espero que as autoridades olhem por nós”, diz.

Moradores relatam que em alguns casos a Defesa Civil recomendou que moradores não fiquem no fundo das casas. “Eu durmo no chão com meus filhos e agora estamos sentindo areia cair na nossa cabeça. Eles recomendaram não dormir no fundo da casa, mas se cair as paredes do galpão, atinge a casa inteira. Minha filha grávida de 39 semanas mora na casa ao lado e nesse momento deveria se encontrar calma, algo que não acontece”, conta Tatiane Andrade. Já Ricélio Joaquim perdeu a casa e ficou fora do cadastro. “Não recebi o auxílio, pois estava no trabalho. Perdi televisão, geladeira e fogão. Agora não sei para onde ir. A informação que a associação de moradores passou é que tenho que requerer a visita novamente da Defesa Civil. Mas acho difícil eles retornarem só para verem uma casa”, comenta.

Sociedade civil se une

Na hora de dificuldade é necessário que alguém ofereça a mão para a superação dos problemas. É isso que um grupo de 25 jovens está realizando para amenizar as causas do incêndio. O coletivo Reconstruindo Histórias tem como foco transformar a realidade dos moradores que sofrem com a invisibilidade. “No dia do incidente estava presente e fiz o levantamento das pessoas que perderam suas casas e comecei a mobilizar Defesa Civil e Subprefeitura, que através disso foi concedido o aluguel social. Começamos a nos mobilizar nas redes sociais e fazer uma ponte com o poder público. Fomos na Bolsa de Gêneros Alimentícios para montar bolsas para os moradores e conseguimos outras doações, como quentinhas, roupas, legumes, vale gás e eletrodomésticos”, diz Anderson Jedai, poeta e liderança de Marcílio Dias.

O grupo deseja melhorar a qualidade de vida dos moradores e promover o desenvolvimento territorial, através da mobilização e protagonismo local. “Entendemos que criando oportunidades educacionais, culturais e socioeconômicas através de projetos e ações para a população, o território se torna potente. Nosso objetivo no futuro é trabalhar a arte, cultura e desenvolvimento territorial. Montar uma base forte para se pensar cursos e empregabilidade, tendo parceria entre o público e o privado”, expõe. 

Resposta da Prefeitura

A Defesa Civil informou por meio de nota que realizou a “vistoria no galpão localizado na Rua do Alpiste, 801, que por conta do incêndio ocasionou a interdição de 21 moradias, localizadas no Beco da Amizade, que tiveram destruição total ou parcial. Todos os imóveis envolvidos no sinistro foram vistoriados pela Defesa Civil e assistidos pela Secretaria de Assistência Social. Caso haja interesse de algum morador em solicitar uma vistoria para outro imóvel, deverão solicitá-la através do tel. 1746 ou 199”.

Um funcionário da 4ª CAS, que preferiu não se identificar, revelou que a primeira etapa foi concluída. “Nos dias após o incêndio ficamos na comunidade os dois dias após o incêndio para agilizar alguns benefícios. Continuamos acompanhando eles. Estamos partindo para a segunda parte, pois ainda há demandas como documentação e cadastro. Estamos organizando com a associação de moradores para os próximos atendimentos”, concluiu. A Secretaria Municipal de Habitação declarou que entregou cheques do Auxílio Habitacional Temporário a 21 famílias afetadas pelo incêndio.

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