Operações conjuntas do governo estadual e federal nas favelas da Maré priorizam uso da força e a presença armada do Estado no conjunto de favelas
“Medo dessa operação.” “Vem operação ai.” “Logo agora faltando pouco tempo para as férias das crianças, sem aula, não mando meu filho de jeito nenhum.” “Fiquemos atentos.”
Após o anúncio e a visibilidade nacional dada a uma operação conjunta do Governo do Estado do Rio de Janeiro e o Governo Federal, moradores do conjunto de favelas da Maré vivem dias de expectativa e medo. O Governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio de pronunciamentos do governador Claudio Castro, tem previsto o uso da força e forte presença bélica como estratégia da chamada “Operação Maré”. A ação foi anunciada dias depois do programa do Fantástico, da TV Globo, noticiar imagens de uma investigação da Polícia Civil.
Na contrapartida do que se espera sobre o uso da inteligência no campo da segurança pública, o que o Governo do Estado tem anunciado é o forte uso da força. De acordo com o governador Cláudio Castro a operação na Maré contará com a atuação de mil homens das forças de segurança estaduais, 12 blindados, 50 viaturas, três aeronaves, drones com inteligência artificial de reconhecimento facial e de placas, cinco ambulâncias e uma unidade para demolição de barricadas. O governador também afirmou que serão utilizadas ainda câmeras nas operações.
O momento atual é de diálogos entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e o Governo Federal e não há previsão concreta sobre o início das ações. Há monitoramento das vias próximas à região da Maré. A assessoria da polícia militar, da Polícia Civil e do Governo do Estado do Rio de Janeiro não retornaram o Maré de Notícias sobre prazos e detalhes sobre as ações, até o fechamento desta matéria.
Descumprimento contínuo de determinações jurídicas federais
Apesar do avanço da discussão à nível federal sobre a redução das violências e violações durante operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro – fruto do trabalho de organizações da sociedade civil que buscam alternativas a lógica militarizada – o eixo Direito à Segurança Pública e acesso à Justiça da Redes da Maré, que é uma dessas organizações que protagoniza esses movimentos, vêm mapeando uma série de violações e de descumprimentos das determinações da ADPF das Favelas nas operações policiais na Maré.
Sobre as dinâmicas das operações na Maré, desde junho de 2020, período da primeira decisão liminar da ADPF das Favelas, 77 operações policiais ocorreram em ao menos uma das 16 favelas da Maré. Nessas 77 operações policiais:
- 49 pessoas foram mortas por arma de fogo;
- 34 dias de atividades suspensas nas escolas;
- 47 dias sem atendimento nas unidades de saúde;
- 413 violações de direitos, sendo 131 denúncias de invasões a domicílios.
Em absoluto descumprimento às determinações da ADPF. Durante esses três anos não foi identificado o uso de câmeras em fardas e viaturas policiais em nenhuma operação policial. Em apenas uma operação houve a presença de ambulâncias no território para socorrer feridos. O plantão do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro foi acionado 18 vezes pela Redes da Maré e, até o presente momento, as famílias em acolhimento não obtiveram retorno sobre as denúncias. Além disso, o Estado do Rio de Janeiro ainda apresentou versão do seu Plano de Redução da Letalidade Policial e Controle de Violações de Direitos Humanos que notoriamente não atende a todos os requisitos impostos pelo STF.
“É porrada na criminalidade”, afirmou o governador Cláudio Castro durante a posse do novo secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, José Renato Torres do Nascimento. O posicionamento favorável e indiscriminado ao uso da força não é novo em discursos do governador.
Onde nasce a violência?
“Para a gente chegar a isso, muita coisa aconteceu antes. E uma das coisas foi justamente a falta de compromisso e de soberania do Estado naquilo que é público, naquilo que ele faz em relação à própria cidade. E a resposta para esse fato não pode ser de efeito”, destacou Eliana Sousa, fundadora e diretora da Redes da Maré, em entrevista para a Folha de São Paulo.
Eliana chama a atenção para o fato de em muitas outras áreas, para além da segurança pública, o Estado não cumprir com seus deveres na Maré. Também destaca a instabilidade e o medo que anúncios como o feito pelo governo do estado gera em milhares de moradores da Maré e afirma que a organização está num processo de diálogo com a prefeitura, o governo do estado e o governo federal para que outras demandas do território também possam ser observadas e atendidas nesse momento. Ela reitera que não haja apenas um super investimento em segurança pública.
“Considerando que a violência é um processo complexo, multicausal e multiescalar, as estratégias de enfrentamento também devem ser sofisticadas e variadas. As respostas devem ser preventivas e integradas, com soluções a médio e longo prazo. Soluções que somente poderão ser eficazes se aplicadas junto a outras estratégias de efetivação de direitos para os moradores destes territórios, para além das ações policiais”, destaca também nota pública da Redes da Maré sobre a ação.
Para Daniel Hirata, professor de Sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF), a existência e práticas dos grupos armados em favelas se devem também por meio da conivência do Estado em diversos níveis, “direta ou indiretamente, do executivo, do legislativo, dos órgãos de fiscalização, das forças policiais. Então, atuar contra a penetração desses grupos no Estado seria forte”. O professor ainda complementa que a “atuação do Estado com relação aos grupos armados, deve ser feita não só a partir de ações reativas e repressivas, mas, sobretudo, num trabalho proativo e de atuação sobre as bases políticas e econômicas desses grupos”.
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O Ministério da Justiça e Segurança Pública informou, em nota na última quarta-feira, 4 de outubro, que o Secretário Executivo Ricardo Cappelli recebeu notificações do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro com questionamentos e exigências sobre o apoio da Força Nacional às polícias estaduais do Rio de Janeiro e o secretário irá dialogar com o procurador do MPF.
Até que esse diálogo aconteça, as forças federais não irão atuar na operação conjunta com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, na Maré, segundo a nota.
Opinião de quem tem o cotidiano afetado
De acordo com o relatório “Saúde na Linha de tiro: impactos da guerra às drogas no acesso à serviços de saúde no Rio de Janeiro”, que integra o projeto Drogas Quanto Custa Proibir, coordenado pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), o número de pessoas com hipertensão arterial, insônia prolongada, depressão e ansiedade é maior nas comunidades mais expostas a tiroteios com presença de agentes de segurança.
O Censo de Empreendimentos da Maré de 2014 mostra que nas favelas da Maré há mais de 3 mil empreendimentos da área de serviço e que são responsáveis por gerar emprego e renda para mais de 9 mil pessoas com mais de 15 anos de idade. “Acontece a operação, aí a consulta é adiada, aí tu vai levar mais não sei quanto tempo. As escolas fecham, as crianças, coitadas das crianças, ficam sem aula. Pelo menos a gente já está acostumado com a rotina, com o dia a dia. E tendo a operação, vai adiantar o quê? Eles vão botar cursos gratuitos para o povo? Eles vão ver emprego pro povo? Eles não vão trazer nada de benefício,” desabafa uma comerciante da Maré.
A moradora, que preferiu não se identificar, também relatou os impactos das operações no cotidiano dos comerciantes locais: “O comércio fechado, a gente deixa de ganhar, a gente tem conta pra pagar. Quem tem o seu comércio próprio, que vive daquilo, vai atrasar as contas, vai atrasar a dívida, vai piorar a vida das crianças, vai piorar a vida da saúde, vai piorar tudo. E o dinheiro que é investido? Você acha que vai 100% para educação? 100% pra alguma coisa? E ninguém tá pedindo nada, o morador não tá pedindo nada.”
Paulo César Ramos Justino, de 43 anos, morador da Vila do Pinheiro destaca os desafios para acesso a empregos fixos para moradores de favelas. “Eu tô há 8 meses parado fazendo o bico no caso, mas não tô com minha carteira assinada, porque eu coloquei meu currículo numa empresa e eu senti que essa empresa não me chamou porque eu moro em comunidade, porque a qualquer hora pode ter operação e o funcionário tem que faltar 2, 3 dias. Então, assim, como é que você entra numa empresa, já de início você vai faltar 3 dias? Na verdade, pra sociedade a gente é invisível. Todas as pessoas que moram em favela, comunidade, são invisíveis para a sociedade”.
Outro morador que também preferiu não se identificar, transmite a descrença sobre a resolução dos desafios impostos pela segurança pública na Maré por meio de operações policiais. “A gente sabe que isso nunca vai acabar. Isso aí é só um paliativo para dizer que fez e que pegou dinheiro para determinada coisa (…) a gente tenta viver aquele sonho achando que a polícia entrando na comunidade fazendo determinada coisa vai mudar, mas na verdade não vai mudar em nada, vai continuar tudo na mesma.”