Dados do 8º Boletim Direito à Segurança Pública e Acesso mostram que desprezo à perícia continua em 2024
Maria Teresa Cruz
Entre terça e quinta-feira desta semana, cinco pessoas foram mortas no Conjunto de Favelas da Maré durante duas operações policiais que, ao todo, duraram mais de 40 horas e impactaram profundamente o cotidiano de 140 mil pessoas. A primeira começou ainda na madrugada do dia 11 de junho e terminou 32 horas depois, já na quarta-feira. A segunda teve início no começo da tarde de quinta-feira, horário de saída de alunos do turno da manhã das escolas da Maré. Nenhuma perícia foi realizada no caso das mortes de moradores. “Caveirão está no morro e está dando muito tiro. Crianças perdidas da rua que saíram da escola e ainda não chegaram em casa” dizia um relato por escrito de uma moradora.
Não demorou muito para que a Polícia Civil divulgasse, em nota, o motivo da operação desta quinta-feira: realizar perícia no local em que um policial militar do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) foi morto, dois dias antes. No mesmo dia em que o PM morreu, outros quatro moradores foram mortos. Até o momento, não houve confirmação de que a Delegacia de Homicídios, que esteve no local para iniciar investigação da morte do agente, tenha também realizado o procedimento nos outros 4 casos. A não realização de perícia fere o que é preconizado pela Arguição de Preceito Fundamental 635, a ADPF das Favelas, e mostra que, muito mais que um caso pontual, é uma conduta propagada e aceita pelo Estado.
Dados do 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, divulgados com exclusividade pelo Maré de Notícias nesta sexta-feira mostram que, em 2023, nas 34 operações policiais, oito pessoas foram mortas e em nenhum caso foi realizada perícia. Quatro dessas mortes apresentavam indícios de execução, segundo a pesquisa. A ausência de perícia impacta diretamente a investigação, o devido processo legal sobre o fato e uma eventual responsabilização do Estado sobre essa morte. Desde 2016, início do monitoramento que deu origem ao boletim, de 128 mortes, somente em cinco casos houve perícia no local.
“Apenas através desse procedimento, conseguimos compreender como aconteceu as dinâmicas de mortes em operações como dessa semana. É inadmissível como o ‘não direto’ ao processo investigativo está colocado para os moradores da Maré. Tal fato escancara a desigualdade de como a política de segurança não contempla e não está direcionada para as pessoas que moram na Mare”, analisa Liliane Santos, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré.
O levantamento também expõe o desrespeito sistemático a preceitos da ADPF, ação que tem por objetivo reduzir a letalidade e violência policial em operações, que voltará nas próximas semanas à pauta do Supremo Tribunal Federal. O argumento dos que criticam a ADPF é que ela teria contribuído para expansão de redes ilícitas e grupos criminosos na região. A realidade, mostrada pelos dados, é que o desrespeito aos preceitos da ADPF violentam os direitos fundamentais do morador de favela ao mesmo tempo em que não reduziram efetivamente a criminalidade.
Em 2023, seis recomendações da ADPF foram desrespeitadas. Na operação desta semana entre terça e quarta, que durou 32 horas, 5 preceitos da ação foram ignorados: 1) Ausência de equipamento GPS e equipamento de gravação de áudio e vídeo no uniforme dos agentes; 2) operação próxima a escolas e postos de saúde; 3) descumprimento de inviolabilidade de domicílio; 4) ausência de ambulância para socorro às vítimas; 5) não realização de perícia em caso de homicídio.
Na imprensa, o governador Cláudio Castro mentiu ao dizer que as operações seguiram 100% do que é preconizado na ADPF.
Sem controle
Além da ausência de perícia, que contribui para a impunidade e para a manutenção de práticas ilegais, outro destaque foi a ausência no uso de câmeras corporais pelos agentes da segurança pública, importante dispositivo para combater ilegalidades durante as operações. Em 2023, somente em 7 das 34 operações policiais foi observado o uso de câmera de vídeo nos uniformes dos agentes.
O Estado cometeu 211 violações de direitos humanos durante as incursões dos agentes de segurança pública no conjunto de favelas ao longo de 2023. A campeã foi invasão de domicílio, que aconteceu em 77% das operações, seguida de dano ao patrimônio. Em terceiro lugar, vem o furto de pertences e em quarto lugar, ameaça. Existe uma maior incidência de violações de direitos em operações policiais planejadas, o que denota um modus operandi que desrespeita o morador e que não segue qualquer tipo de protocolo de controle e uso da força por parte do Estado.
Um dos relatos de uma vítima dessas violações obtido pela equipe retrata o processo de criminalização da pobreza, que considera suspeito todo e qualquer cidadão que viva naquele território. Nesse caso, uma profissional teve seu estabelecimento invadido pela polícia durante uma operação, o material de trabalho destruído e pertences furtados. “Vi uma cena de terror! Tudo o que conquistei com muito suor foi destruído. Quebraram a porta, armário, teto de PVC, geladeira, jogaram meus materiais de trabalho na rua. Minhas espreguiçadeiras quebradas, e o estoque de guaraná, coca-cola, entre outras bebidas, tomaram tudo. Levaram o som, a sanduicheira e alguns produtos de bronzeamento”.
Os dados mostram redução de 70% no número de mortes na comparação com 2022 em contraste ao aumento no número de operações: foram 20 a mais do que no ano anterior. Esse quadro segue a tendência do estado do Rio de Janeiro, que registrou redução de 34% na letalidade policial em operações. Por outro lado, a presença ostensiva da polícia no território gera outros tipos de violência aferidos pelo monitoramento, bem como afeta o acesso da população a direitos básicos, como saúde e educação.
Estudantes perderam um quarto do semestre letivo no ano passado por causa do fechamento de escolas durante operações. No acumulado do ano, a população ficou 26 dias sem atendimento no sistema de saúde por interrupção no funcionamento das unidades em dias de atuação policial. O levantamento também mostra que 7 em cada 10 vítimas de algum tipo de violência são pessoas negras, apresentando prevalência de violações sobre as pessoas pretas, pois estas compõem mais de um terço das vítimas, superando o número de vítimas pardas, que é o perfil majoritário nas favelas da Maré.
Até o momento, em 2024, já observamos um aumento da letalidade policial em operações. De janeiro a junho, 12 pessoas foram mortas em 17 operações policiais, o que dá duas mortes por mês.
A polícia civil e militar, em reiteradas notas repete, em toda operação policial, um script que varia entre combate a crime organizado, repressão a quadrilha de roubo de carga ou veículos. Além disso, tem por prática enviar o balanço da operação, comumente refutado pela equipe de pesquisa de campo da Redes da Maré. Nessas duas últimas operações, por exemplo, a nota da Polícia Militar enviada para o Maré de Notícias trazia números diferentes do que foi divulgado em sites noticiosos e o governo do Estado falou em três mortes, sendo uma a de um policial militar, enquanto na realidade foram cinco as mortes ocorridas nos últimos dias.
O boletim
O 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré lançado anualmente conta com a participação de moradoras e moradores, para executar com qualidade o compartilhamento de informações precisas, que resultem em políticas públicas para garantir direitos e serviços aos mais de 140 mil moradores da Maré. Cada boletim traz uma reflexão sobre os impactos da violência armada na região das favelas da Maré, amparada em uma contextualização das dinâmicas políticas do Estado e do País.