ADPF das Favelas: ‘desrespeito à decisão do STF é grave por ser afronta contínua à democracia’

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Em reunião na Maré na última quinta-feira (4), organizações que compõem a ADPF das Favelas realizaram balanço da última audiência pública sobre o tema e definiram próximos passos

Por Andrezza Paulo (*), Daniele Figueiredo (*) e Tamyres Matos

Uma decisão da maior corte de Justiça no Brasil constantemente desrespeitada pelas forças de segurança do Rio de Janeiro. O que fazer diante da gravidade da questão? As organizações que lutam pela redução da letalidade policial nas operações nas favelas do Rio, realizaram, na última quinta-feira, o Encontro Amicus Curiae (“amigos da corte”) ADPF 635. O objetivo da reunião foi discutir a audiência pública ocorrida no dia 28 de junho – que não teve a presença de Cláudio Castro, governador do Rio – e os próximos passos da mobilização ainda em 2022.

A ausência do chefe do executivo estadual, além de outros sinais, deixa transparecer, segundo análise das organizações presentes, uma postura “anti-diálogo” do estado. “A sociedade civil esteve bastante desconfortável naquele espaço. É importante ressaltar que o plano de redução da letalidade policial não pode ser algo programático, tem que ser efetivo, com a questão orçamentária definida e uma regulamentação prática”, analisou a advogada Daniela Fichino, coordenadora do colegiado da ONG Justiça Global.

É importante ressaltar que, no dia da audiência pública, a Maré foi alvo de diversas operações, que seriam, segundo nota da Polícia Militar, para cumprir mandados de prisão de “criminosos envolvidos com roubos de veículos e cargas, além de retirar barricadas das vias da região e a captação de dados de inteligência’’. Segundo coleta de atendimentos do Maré de Direitos, projeto que acolhe denúncias de violações de direitos em operações policiais, da Redes da Maré, moradores relataram casos de tortura, além de agressões e invasões de domicílio. Não havia no local a presença de ambulância para pronto-socorro, como determina a ADPF das Favelas.

Um dos principais questionamentos a respeito da audiência pública de junho é sua legitimidade. Segundo o advogado João Gabriel Pontes, um dos responsáveis pelo jurídico do coletivo Amicus Curiae ADPF 635, o evento “não pode sequer ser chamado de audiência pública”. “Em primeiro lugar, não houve, por parte de nenhuma das autoridades presentes, a apresentação dos eixos temáticos que deveriam compor o plano de redução da letalidade policial. Ao contrário, a audiência se iniciou sem a exposição dos pontos a serem debatidos com a sociedade civil. Em segundo lugar, porque não houve diálogo efetivo entre Estado e sociedade civil. Na verdade, parecia que as autoridades públicas presentes seguiam uma orientação de não fazer nenhum pronunciamento no evento”, relatou. 

O advogado chama a atenção para a ausência de figuras-chave para que qualquer plano de preservação de vidas tenha resultados reais nas periferias do Rio. “Além da ausência do governador do Estado, tivemos ainda a ausência do secretário da Polícia Civil e do secretário da Polícia Militar naquela oportunidade. Isso demonstra a total falta de disposição do Poder Executivo de conversar com as pessoas sobre o tema da segurança pública no Rio de Janeiro”, criticou.

Para Nina Barrouin, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a articulação da audiência e a presença excessiva de policiais tornou o ambiente desconfortável. 

“O local estava cheio de agentes das forças de segurança e a mesa que conduziu os trabalhos sequer abriu com um momento de explicação sobre a proposta do Estado. O ambiente era muito hostil e era nítido que a audiência estava sendo feita apenas pra legitimar o plano do Governo”, contou.

Afronta à democracia

Daniel Hirata, pesquisador e coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (Geni), ligado à Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa que a desconsideração por parte do poder público estadual das determinações estabelecidas pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma decisão política. “O desrespeito a uma decisão da mais alta corte do Poder Judiciário do Brasil não é só uma questão da área de segurança pública, mas diz respeito a nossa institucionalidade democrática. Ou seja, desrespeitar uma decisão do STF é uma afronta aos poderes democráticos instituídos. Essa questão se coloca como algo que é muito mais grave do que normalmente se discute. Temos um Governo do Estado e comandos das forças policiais que afrontam o Supremo. É por aí que nós temos que entender a profundidade do nosso problema”, explica.

Daniel relembra que, quando se trata das operações realizadas, as forças policiais sempre utilizam a justificativa dos “critérios técnicos”, no entanto, não há espaço para debate público sobre quais são estes critérios e quando eles são cabíveis ou não. Ele acredita que tais dados e evidências devem ser tornados públicos, ou seja, é preciso que sejam apresentados quais são estes critérios técnicos que balizam as decisões para submeter estes critérios ao debate público. 

“Há uma analogia bastante forte entre ciência e democracia no sentido de que sob certas regras você toma decisões que devem ser sempre submetidas ao escrutínio público. Não basta dizer que existem critérios técnicos, é necessário que se exponham esses critérios tecnicamente fundados, que se submetam ao debate público para que se possa avaliar se estes são os melhores critérios, se a tecnicidade foi construída de maneira adequada.”

Daniel Hirata

Recentemente, o relatório Chacinas, criado pelo Geni, apontou que a zona norte do Rio, que concentra o maior número de favelas na cidade, foi alvo de 222 operações policiais entre 2007 e 2021 com três ou mais mortes — essas ações respondem por um total de 959 mortos. O relatório ainda aponta que, dos 10 bairros mais afetados por chacinas policiais, seis estão na zona norte, enquanto os outros quatro, na zona oeste. Eles são Costa Barros (25), Maré (21), Penha (20), Jacarezinho (19), Santa Cruz (19), Vicente de Carvalho (18), Senador Camará (18), Bangu (16), Complexo do Alemão (13) e Cidade de Deus (11).

“Os resultados que as forças de segurança do Rio de Janeiro têm para mostrar são muito ruins. Trata-se de uma política que é muito letal, as forças policiais da cidade do Rio de Janeiro são responsáveis por 3 em cada 10 mortos, no estado são 2 em cada 10, estes números são muito superiores aos padrões internacionais. Não por acaso também o controle do crime comum não tem sido enfrentado da maneira como deveria. Ou seja, são ações ineficazes para a redução da criminalidade organizada e muito letais. O controle da criminalidade organizada precisa caminhar em conjunto com a dignidade da vida humana.”

Daniel Hirata
Foto: Douglas Lopes

Do que trata a ADPF?

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, foi proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) em 2019 com o intuito de combater as violações ocorridas durante ações policiais dentro das periferias do Rio de Janeiro. Em 2020, após uma decisão do ministro Edson Fachin associada à ação judicial, as operações policiais no Rio foram suspensas devido à pandemia de covid-19. Em março do primeiro ano da pandemia, houve retração das investidas policiais, mas logo depois os números dispararam.

As mortes em operações monitoradas no ano de 2020, tiveram uma forte queda no começo da epidemia (queda de 82,6% em março), mas superaram as de 2019 em abril e maio (aumento de 57,9% em abril e 16,7% até 19 de maio). Os dados coletados pela Rede de Observatórios da Segurança, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), indicam que, durante a epidemia, nos meses de abril e maio, as polícias do Estado do Rio de Janeiro usaram mais força letal do que em 2019, quando o Rio de Janeiro teve o recorde de 1.810 mortes causadas por intervenção policial.

ADPF é um tipo de ação judicial, prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal de 1988, que tem por objetivo impedir que o poder público pratique condutas inconstitucionais contra a sociedade. A ação foi construída coletivamente com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, MNU, Iser, IDMJR, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Mães de Manguinhos, todas entidades e movimentos sociais reconhecidas como amicus curiae (amigo da corte) no processo.

(*) Andrezza e Daniele são alunas da primeira turma do Laboratório de Jornalismo Maré de Notícias

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