Home Blog Page 105

Parque Rubens Vaz: pequeno no tamanho, grande no amor

Para os seus moradores, território vai muito além de três ruas

Maré de Notícias #148 – maio de 2023

Por Hélio Euclides

Em 1954, nasceu o Parque Rubens Vaz, localizado entre a Nova Holanda e o Parque União. Na época, a área também era conhecida como Areal (devido à areia que era trazida pela drenagem e canalização do canal da Zona Portuária) e como Caracol (uma referência à Passarela 10, que tinha formato circular e ficava na entrada da favela). A ocupação teve início ao lado do canal do Rio Ramos, atualmente poluído e não mais um córrego, e sim um valão.

Com o tempo, os moradores aterraram a área usando carvão, serragem e entulho. Na nova favela, João Araújo foi uma das primeiras lideranças do lugar, que começava a organizar as construções e abrir as ruas. Os moradores retribuíram dando seu nome à nova favela (posteriormente, João Araújo virou nome de rua no Parque Rubens Vaz).

No entanto, depois do aterramento e de erguidas as casas de madeira, a construção em alvenaria foi proibida. A polícia também combateu o crescimento da favela. O advogado Margarino Torres defendeu o direito dos moradores, consolidando a ocupação. Em agradecimento, a favela mudou de nome e virou Parque Margarino Torres. Em 1965, mais uma vez a comunidade mudaria de nome, dessa vez em definitivo: o governo resolveu homenagear um major da Força Aérea Brasileira (FAB), e surgiu o Parque Rubens Vaz .

Nordeste ali do lado

Assim como em outros lugares da Maré, no passado era necessário atravessar a variante, hoje Avenida Brasil, para buscar água em barris conhecidos como rola-rola. Com o tempo, a população cresceu e novas lideranças surgiram, incluindo João Crisóstomo, ex-presidente da Associação Pro Melhoramento do Parque Rubens Vaz, que recentemente recebeu uma homenagem com seu nome em um Espaço de Desenvolvimento Infantil.

Atualmente, o Parque Rubens Vaz possui duas creches, uma escola, um campo sintético e uma quadra coberta, além de muitas casas. A maioria dos moradores é provenientes do Nordeste, com destaque para os maranhenses, como destaca Vilmar Gomes, conhecido como Magá, presidente da Associação de Moradores de Rubens Vaz e que está na favela há 52 anos.

Magá lembra com carinho dos pioneiros de luta: “Eu me inspiro na liderança João do Leite, que foi presidente da associação e da época da Comissão da Luz. Um fato que marcou quando eu tinha 17 anos foi quando o então presidente, Índio da Maré, quis acabar com o campo de futebol para ali fazer um loteamento.” 

Segundo ele, “na época, formamos uma comissão com 16 jovens, e conseguimos convencê-lo da importância do esporte e lazer. Também criamos a quadra, com esforço de trabalho em feira e engraxando sapatos”. O presidente lembra de outra liderança forte, Ricardo Ferreira, conhecido como Robô, que asfaltou as ruas, então de paralelepípedos.

Sem saneamento

Hoje, o que falta para o presidente é saneamento básico: “O que se faz é enxugar gelo. Os governantes precisam olhar com carinho para a drenagem dos valões e a limpeza das galerias de águas pluviais, algo que não é feito há séculos. No verão, com as chuvas, a água ultrapassa o joelho dos moradores que moram próximos ao valão.” Magá lembra do tempo antes da poluição, e sente saudade de quando havia ali um riacho “’limpinho”, onde se pegava tainha.

 Antigamente, para chegar à Nova Holanda, era necessário passar pelo Beco do Seu Zé, que já não existe mais. Já para ir ao Parque União, era preciso percorrer a Avenida Brasil, pois não havia a Rua Principal. A abertura da rua ocorreu apenas em 1990. Para Jader Lopes, de 30 anos, cria da favela, é um privilégio morar perto da Avenida Brasil. 

“Quando não tinha o conhecimento geográfico da Maré, falava com orgulho que o Rubens Vaz era o coração do bairro. O Parque é o primo queridinho das comunidades vizinhas. Uma pena que cresceu bastante a questão imobiliária, que deu fim à nossa praça”, diz. Seu amigo Douglas Oliveira, de 27 anos, acredita que a história não pode ser esquecida. “É preciso lembrar que os nossos pais lutaram por moradia, por acesso à educação, entre outras políticas públicas. Precisamos fazer o mesmo pela família e pela favela”, conclui.

Foto: Matheus Affonso

A importância do funk na cultura e economia periférica

0

Bailes acontecem na Maré desde a década de 80 gerando renda para diversas famílias

Maré de Notícias #148 – maio de 2023

Por Andrezza Paulo

O funk carioca foi o gênero musical brasileiro mais ouvido no exterior em 2022, de acordo com o canal de streaming Spotify e sua importância como gerador de renda não é novidade. A economia gerada pelos bailes auxilia no sustento de centenas de moradores da Maré, além de incentivar a cultura periférica e proporcionar lazer para a população. Hoje um dos mais famosos bailes é o da Disney, na Vila do João, que atrai milhares de pessoas para a comunidade nos fins de semana. Os da Nova Holanda e do Parque União também não ficam para trás, ultrapassando as barreiras territoriais e alcançando multidões.

Os bailes funks acontecem na Maré com frequência desde a década de 1980. Edina Bezerra é mãe solteira de três filhos e tira o sustento nos bailes há 16 anos, com sua barraca de bebidas. “Comecei porque a renda era pouca, trabalhava em casa de família, mas a vida era muito difícil”, relata. 

Seus filhos não morem mais com ela; se não há crianças que a tornam mal vista no mercado de trabalho, hoje são a idade e os problemas de saúde que fazem com que seja virtualmente impossível Edina arranjar um emprego: “Estou com 53 anos e não consigo mais trabalho com carteira assinada. Vim da Paraíba com 11 anos, trabalhei muito, sou hipertensa e já operei o joelho. Continuo nos bailes para pagar minhas contas e conseguir construir minha quitinete. Essa é a minha luta”.

Mc Cabelinho, um dos maiores destaques do funk atual, realizou show lotado no Baile da Nova Holanda, em março deste ano – Foto: Matheus Affonso

Sem dados

Mesmo importante como gerador de renda, o impacto do funk na economia não é avaliado há mais de uma década. Em 2009, o ritmo gerava mais de R$ 10 milhões por mês para o estado do Rio de Janeiro, segundo dados de uma pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

Em 2015, depois de apresentar seu trabalho sobre os trabalhadores dos bailes no 2º Simpósio de Pesquisadores do Funk Carioca, o fotógrafo Bira Carvalho falou em uma entrevista à Agência Brasil sobre a importância dos bailes na economia dos moradores da Maré: “O funk gera renda para a comunidade, para o vendedor de gelo, para o rapaz que vende a bebida e a água, para o salão de beleza, o barbeiro, ele gera renda na questão da roupa”. 

Sonho em real

O funk dá visibilidade às favelas no cenário musical e incentiva os jovens das periferias a acreditar em outras possibilidades através das letras das músicas. Em 2022, foi criado no Rio de Janeiro o #estudeofunk, um programa artístico desenvolvido pela Fundição Progresso para, segundo o programa, “fomentar a cultura do funk carioca e profissionalizar artistas da nova cena musical”.

O projeto tem três ciclos de vivência, e selecionou em cada um deles 50 talentos do funk, incluindo MCs, beatmakers e bailarinos de passinho. Tudo acontece no estúdio equipado na sede da Fundição Progresso, na Lapa; ali, uma equipe técnica especializada (muitos são crias de favelas cariocas como Vidigal, Cidade de Deus e Vila Kennedy) ajuda os artistas emergentes a produzir tanto as músicas como os clipes de divulgação, 

Para Taisa Machado, diretora artística do #estudeofunk, o ritmo representa a coletividade e a voz das favelas: “O funk é o retrato das periferias urbanas do país. Ele é jovem, ousado e marginalizado. É o palco onde nossas vozes são ouvidas, onde nosso corpo é visto. É onde podemos mostrar nosso talento, ganhar dinheiro e realizar nossos sonhos. O funk é uma fábrica de sonhos”, explica.

Os bailes funks acontecem com frequência nas ruas e quadras da Maré desde a década de 1980 – Foto: Matheus Affonso

Mulheres do Funk

Muito antes da Mc Carol cantar proibidão na Europa, Ludmilla fazer uma participação no filme Velozes e Furiosos e Anitta chegar ao Top Global Spotify com Envolver, as mulheres já desempenhavam um papel crucial no cenário do funk carioca. 

Em 2005, Denise Garcia dirigiu Sou feia mas tô na moda, filme que mostra como o funk carioca se reinventou no início dos anos 2000, deixando de ser visto como um espaço masculino, de brigas de corredor e violência, para se tornar “o funk do prazer”. 

As maiores protagonistas deste fenômeno foram, sem dúvida, as mulheres: Verônica Costa, Bonde das Faz Gostoso, Gaiola das Popozudas, Bonde das Boladas, As Tchutchucas, Juliana e As Fogosas, As Danadinhas, Mc Kátia e Nem, Mc Sabrina, Valesca Popozuda, Deize Tigrona e Tati Quebra-barraco são os maiores expoentes. Esses nomes continuam a inspirar as funkeiras contemporâneas e não só como MCs. 

É o caso de Taisa, que além de diretora artística, é atriz, escritora, roteirista e “chefe” no Afrofunk Rio. “O Afrofunk tem como foco a memória e a equidade racial e de gênero”, conta. No final de 2014, ela decidiu juntar suas pesquisas em funk e danças de matriz africana e iniciar uma oficina para, segundo ela, “descolonizar os quadris”, mas não sabia onde isso a levaria. “O meu amor pelo funk e pelos bailes atravessou a minha vida e me levou para esse lugar que é estar no Afrofunk. Sempre curti um baile, mas nunca imaginei que ia ser reconhecida como uma pessoa que trabalha com funk.”

MC Carolzinha é moradora da Cidade Alta e iniciou no funk há mais de 20 anos. “O espaço que eu conquisto sendo mulher preta e periférica é muito importante por falar nas minhas letras o que eu penso, o que eu vivo, o que eu conquisto. Apesar de o racismo ainda ser muito grande, hoje a gente consegue dialogar e ser ouvida, e me sinto privilegiada por fazer parte desse movimento”, revela.

A artista também fala dos desafios enfrentados como mulher no mundo do funk: “Nós damos a vida a um ser humano, sustentamos a casa, alimentamos uma família, então o sexo frágil, na verdade, é o mais forte da sociedade. Dentro desse movimento do funk, o nosso sexo sempre foi vulgarizado e fazer parte dele me trouxe mais posicionamento, me fez entender a mulher preta que eu sou, me fez abrir os olhos como mãe e como filha, e de enfrentar coisas que eu jamais saberia que existiam por trás dos muros da minha favela. É entender a mulher como potência não só do lar, como também potência da sociedade.”

DJ Rennan Valle toca em bailes de diversas favelas desde os 13 anos. Cria da Maré, hoje é DJ dos bailes do Parque União e Nova Holanda – Foto: Matheus Affonso

Criminalização

O ritmo já era considerado “som de preto” quando chegou ao país nos anos 1970, inspirado na música afro-americana de James Brown. Um dos nomes mais importantes para o desenvolvimento do funk foi o DJ Marlboro, que introduziu a batida eletrônica ao ritmo e lançou, em 1989, o CD Funk Brasil, que ganharia o Brasil. 

Não demorou muito para o funk se integrar à cultura carioca e, alinhados com a batida extremamente dançante, os artistas ousaram criar letras que falavam abertamente sobre a realidade das favelas. Assim como a capoeira, o samba e outras manifestações culturais de raízes negras foram perseguidos no passado, o funk sofre constantes ataques e criminalização.

A lei estadual nº 5543, de setembro de 2009, definiu o funk como um movimento cultural e musical de caráter popular e é responsabilidade do poder público garantir que o movimento tenha espaço para realizar suas manifestações. Além disso, os assuntos relativos ao funk deverão, prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura.

Para Taisa Machado, “o funk segue sendo perseguido pelo Estado, apesar de algumas iniciativas de incentivo e valorização já estarem ocorrendo. Em geral, ele é tratado com violência, como caso de polícia e não, como movimento cultural. O mais interessante nisso tudo é como a favela resiste”.

A produtora revela que, apesar do histórico repleto de desafios, o ritmo também avança enquanto cultura e movimento: “É o caso do #estudeofunk, do Afrofunk Rio, da Casa Funk e de mais um monte de gente que está mergulhada nessa ideia de estudar e entender o funk carioca. Quanto mais soubermos sobre a nossa cultura, mais forte ela e nós ficamos. A meta é fazer o Estado e a sociedade reconhecerem a importância do funk, respeitar nossos bailes, nosso público e nossos artistas.”

Jornal do Brasil de 1992 classificava o funk como um movimento que levava “desesperança”

12ª Operação Policial na Maré em 2023: mais um dia de medo e incertezas

Ação conjunta das polícias militar e civil impacta mais uma vez aulas, acesso à saúde e outros direitos para moradores na Maré 

“Acordei com eles forçando a minha janela”; “Acordei no susto do toda me tremendo”; “Aqui no sem terra tá cheio de polícia, estavam tentando abrir minha janela!”; “Surreal isso cara, ninguém merece acordar assim, tô assustada até agora”; “Mais um dia, mais uma quinta-feira. Até quando?”; “Eu tô surtando hoje”. Esses são alguns dos relatos e desabafos de moradoras e moradores das favelas Parque União e Nova Holanda que receberam nesta quinta-feira, 18 de maio, mais uma operação policial com equipes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), do Batalhão de Ações com Cães (BAC) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil. 

A ação foi iniciada antes das 6h da manhã, quando mais uma vez as milhares de pessoas que moram na região, se preparavam para iniciar o dia. Nessas primeiras horas do dia, veículos blindados e agentes policiais das delegacias envolvidas na operação circulavam pelo território. Um helicóptero também dava voos rasantes pelas ruas, amedrontando moradores. Alguns relatos sobre invasão de domicílios chegaram para o Maré de Notícias: pessoas que tiveram suas portas e janelas arrombadas por agentes policiais sem mandado judicial. A página de comunicação local “Maré Vive” publicou o relato:

As clínicas da família Diniz Batista dos Santos e Jeremias de Moraes da Silva, acionaram protocolo de acesso mais seguro e interromperam o funcionamento nesta quinta-feira, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde. 22 unidades escolares municipais também suspenderam atividades, afetando pelo menos 7897 alunos. Operações policiais como a que a Maré vive hoje negam aos moradores o acesso à diversos direitos como a educação e a saúde, mas também à mobilidade. A sensação de medo, incerteza e insegurança que essas operações recorrentes geram no cotidiano afeta também a saúde física e mental das pessoas que vivem, estudam e trabalham nas favelas da Maré.

A equipe do Eixo Direito a Segurança Publica e Acesso à Justiça da Redes da Maré está acompanhando a ação e acolhendo moradores que tenham sofrido violações de direitos, no prédio central da Redes da Maré, na Rua Sargento Silva Nunes, 1012, Nova Holanda.


O Conjunto de Favelas da Maré vive nesta quinta-feira a 12ª operação só neste ano de 2023. Em 2022, 27 operações aconteceram nas 16 favelas da Maré. Essa semana o Complexo da Penha também foi alvo de operações policiais na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Um morador, o músico Fábio Gomes, foi baleado durante a ação do CPX. Até o momento do fechamento desta matéria a operação ainda seguia em curso.

Memória e luta por preservação da área verde da Maré

0

Conhecido como Pulmão da Maré local tem impacto social e histórico no território

Por Teresa Santos e Hélio Euclides

Quem caminha pelo Parque Ecológico da Maré talvez não saiba que, há 80 anos, o local era o lar de macacos e peixes. Conhecida pelos moradores como “Mata”, a área de 44 mil metros quadrados abriga também uma flora rara e especial, como coqueiros imperiais, pinheiros e espécimes de pau-brasil. 

No entanto, o parque sofre com a falta de manutenção há anos. Os moradores estão empenhados em manter o parque vivo, como Agenor Linhares, de 77 anos, que mora em frente à área e se dedica a capinar e retirar o lixo da área “A limpeza do local pelos órgãos competentes só acontece de tempos em tempos, então faço a minha parte.”

Pulmão verde

Simone Cynamon é arquiteta e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) na área de habitação saudável. Segundo ela, a região da Maré é densamente ocupada e se situa em uma ilha de calor. “O ruído, a poluição atmosférica e, principalmente, o calor excessivo afetam o organismo humano como um todo: a visão, as pessoas ficam estressadas, têm doenças respiratórias”, explicou. 

Coordenadora do projeto Maré Verde do Eixo de Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré (DUSA), Mariane Rodrigues reforça a importância do parque para a comunidade ao seu redor. Segundo ela, “percebemos que o espaço influencia na saúde da Maré. O que o local precisa é de reflorestamento, capinação, iluminação pública e brinquedos”. 

A opinião dela é compartilhada por Cláudia Lúcia, presidente da Associação de Moradores do Parque Ecológico. Ela lembra que a Maré é cercada pela Avenida Brasil e pelas linhas Vermelha e Amarela, o que afeta a saúde respiratória de todos. “Aqui é o pulmão da Maré. Se não fosse o parque, a saúde dos moradores seria precária”, afirma.

Lazer é saúde

Mata tem área de 44 mil m² e árvores raras e especiais, como coqueiros imperiais, pinheiros e pau-brasil – Foto: Gabi Lino

Além das árvores, o parque conta com 18 canteiros que fazem parte do programa Horta Carioca (que fomenta o cultivo de verduras e legumes na área) e duas quadras de esportes. Mas os benefícios não param por aí. 

Os parques são espaços de convivência, como bem lembrou Mariane Rodrigues: “Se o espaço for deixado mais agradável, haverá maior interação entre os moradores.” Simone Cynamon destaca que uma área verde “é a parte viva das cidades”. 

Considerados locais de tranquilidade, eles permitem o contato com a natureza e a contemplação do nascer do sol e do entardecer, por exemplo. Podem ainda ser cenário de atividades lúdicas, educativas, culturais e para a prática de atividade física. “As áreas verdes urbanas têm a função técnica, estética, cultural, evolutiva e até espiritual”, lembra  a pesquisadora da Fiocruz.

Vinícius Gama, diretor do grupo teatral Sempre Unidos, relembra a década de 1990, quando usava o palco do anfiteatro construído no local. “O espaço nos fortaleceu com uma população que nos ajudava e ainda lotava as arquibancadas”, afirma. 

Ele sente falta do tempo em que o parque tinha ocas, banheiros, iluminação e churrasqueiras: “Havia piqueniques e encontros com crianças da igreja. Elas conviviam com a natureza e viam a Maré do alto. Essa é uma área importante que precisa ser preservada.”

Para Simone Cynamon, existem inúmeras formas de potencializar os benefícios que a Mata pode trazer — por exemplo, usando a área para a captação da chuva e o direcionamento da água para regiões desabastecidas da comunidade; para tratamento de esgoto; como ponto de coleta seletiva de lixo; e, até mesmo, para geração de energia limpa e renovável, como biogás e energia solar. 

Só não vale deixá-lo abandonado. “Se temos um espaço desse que não está sendo mantido ou que é subaproveitado, a perda é enorme para a comunidade em geral”, ressalta a arquiteta, lembrando ainda que, sem manutenção, a área pode se tornar um enorme foco de ratos, mosquitos e outros vetores transmissores de doenças.

Outros tempos

No ano 2000, a área na Vila dos Pinheiros foi oficialmente batizada pela Prefeitura com o nome de Parque Ecológico da Maré. No ano passado, ele foi renomeado como Parque Municipal Ecológico Cadu Barcellos, em homenagem ao cineasta cria da Maré e morto em 2020.

A área do parque fazia parte da Ilha do Pinheiro. Em 17 de julho de 1935, ela foi incorporada ao Instituto Oswaldo Cruz (atual Fiocruz). Segundo o livro Um lugar para a ciência: A formação do campus de Manguinhos (Editora Fiocruz, 2003), a instituição mantinha ali um laboratório e um museu de hidrobiologia (ciência que estuda a biologia aquática). Havia também um aquário marinho e tanques com peixes. O isolamento da ilha favoreceu ainda a criação em liberdade e a observação de macacos-rhesus (que não são nativos do Brasil).

Em 1949, o cenário começou a mudar. Os processos de aterramento, poluição e ocupação passaram a dificultar a continuação das pesquisas na região. Quanto menos isolada a ilha, mais fácil se tornava a fuga dos macacos para áreas agora habitadas, tornando os macacos uma ameaça às espécies nativas.

Um dos autores do livro sobre a criação do campus de Manguinhos, o arquiteto e urbanista Renato Gama-Rosa, pesquisador do Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz (DPH/COC) lembra que esse processo foi descrito pelo também pesquisador Léjeune de Oliveira (1915-1982) nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, de 1958.

 “Ele aponta que a poluição foi causada, entre outros fatores, pela lavagem de navios e pelo despejo do esgoto não tratado, contaminando a área com resíduos de petróleo, lixo urbano e poluição fecal das áreas habitadas da Zona Norte”, explica.

Os estudos foram sendo descontinuados e, em 1980, os macacos-rhesus foram transferidos para o campus de Manguinhos da Fiocruz. Segundo Renato, ainda há descendentes dos primatas da Ilha do Pinheiro na instituição. Entre as atividades atualmente conduzidas com esses animais, estão estudos voltados para o desenvolvimento de vacinas contra doenças como leishmaniose e febre amarela.

A área fazia parte da Fiocruz e abrigou tanques de peixes e laboratório de hidrobiologia – COC-Fiocruz
Das poucas construções, existia uma oficina mecânica e as residências do mecânico e do zelador – COC-Fiocruz

Fala, prefeitura

A Secretaria Municipal de Ambiente e Clima (SMAC) informou que está elaborando um projeto de revitalização para o parque, incluindo a reestruturação do programa Hortas Cariocas. Segundo a pasta, há também estudos para a construção de uma praça e de um mirante, além de ações de reflorestamento. Para tanto, a secretaria afirmou ter realizado uma vistoria técnica no mês de abril para levantar as demandas e reavaliar a situação do parque.

A Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb) está antecipando o cronograma de vistoria, e prometeu que visitará o local para avaliar a condição dos brinquedos e do mobiliário para, assim, programar os reparos necessários.

Procurada, a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) afirmou manter contato e parceria com a Fiocruz na elaboração de um projeto grande para o parque, cujo andamento tem sido acompanhado pela redes de Maré.Até o fechamento desta edição, a Fundação Parques e Jardins não retornou o nosso contato.

Apenas 7% dos Jovens na Maré frequentam a universidade

0

Pesquisa realizada pelo Instituto Pereira Passos foi divulgada em abril

Por Lucas Feitoza

As desigualdades das favelas no acesso à direitos em comparação à diversas outras partes da cidade não é novidade. Todos os jornais, desde os de maior alcance, mais conhecidos e famosos, até os locais, falam sobre o assunto explorando em alguns casos o lado que mostra a carência dos favelados.

E de fato existe uma carência, a da atuação do Estado para promoção dessa igualdade. Inclusive no acesso à educação. De acordo com a pesquisa Índice de Progresso Social (IPS) realizada pelo Instituto Pereira Passos (IPP), apenas 7% dos jovens do Conjunto de Favelas da Maré frequentam a universidade, os dados foram divulgados no fim de abril.

Poderíamos comparar com o primeiro lugar que está em Botafogo, na Zona Sul, com 68,69% dos jovens na universidade. Mas deixar a informação livre para a reflexão dos leitores depois da 11ª operação na Maré não é interessante. Precisamos ser mais objetivos.

Baixa presença nas universidades

Há medidas que buscam aumentar o acesso dos jovens da favela às universidades, a Redes da Maré realiza um curso pré vestibular que contribui para esta inserção nos ambientes acadêmicos. Outras instituições também realizam este trabalho, o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) também desempenha a função de preparar jovens para o Exame Nacional do Ensino Médio, entretanto, os alunos encontram obstáculos no acesso ao ensino superior.

Leia mais: 

Entre as dificuldades estão as operações policiais que impedem o acesso aos cursos preparatórios e as universidades. Muitas vezes até a educação fundamental e de nível médio na favela é prejudicada. Apenas esse ano, foram onze operações, a última nesta quinta-feira (11) deixou 9.119 alunos sem aula e 27 escolas afetadas. Onze operações e onze dias de aula a menos para os alunos. Em 2022 foram 15 dias sem aulas na rede municipal da Maré, de acordo com os dados do Boletim Direito à Segurança Pública da Maré, produzida pela Redes da Maré.

A professora Daniele Figueiredo conta que esta é uma das barreiras enfrentadas pelos alunos de favelas. “Toda vez que tem operação os alunos não conseguem ir para a escola, e geralmente (as operações) acontecem no horário escolar, então tem a retenção de aulas, que tem menos dias de aulas e isso é um ponto negativo”. Para ela outra questão que afeta a educação e dificulta o acesso igualitário as universidades é que o estilo usado por muitas escolas colocam o aluno como aprendiz e o professor detentor de todo o conhecimento. “A educação é problematizadora na qual o professor ele pode errar, assim como o aluno também pode, e podem continuar a educação juntos, acho que essa é uma das primeiras barreiras a a ser superadas”, afirma.

A Trajetória de Walmyr Júnior cria da Maré

Do discurso para o Papa Francisco à Horta Comunitária: “É minha herança ancestral que me faz ter essa identidade territorial”

por Andrezza Paulo

Walmyr Júnior, de 38 anos, é historiador, cria da favela Kelson (Marcílio Dias) na Maré, e atua diretamente no local com incentivos à segurança alimentar, ao esporte e na luta contra o racismo ambiental e estrutural. Após um processo de remoção na década de 1970, a família de Walmyr chegou em Marcílio Dias, um território marcado pelo acolhimento às comunidades que foram removidas. Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), Walmyr dedicou parte de seus estudos para entender a construção histórica da Kelson e a trajetória estabelecida pelos seus: “É minha herança ancestral que me faz ter essa identidade territorial. Minha árvore genealógica está aqui, sou cria da Kelson, tenho uma ideia de pertencimento, identidade e muito carinho, então gosto de fazer esse resgate”, conta. 

A caminhada de Walmyr começou ainda jovem, na Pastoral da Juventude da Arquidiocese da Igreja Católica, uma iniciativa com formação integral dos jovens baseada no social e nas preocupações do cotidiano. O mareense diz que foi a partir desse lugar que “experimentou sua fé na humanidade”. Em 2013, Walmyr representou a sociedade civil ao realizar um discurso para o Papa Francisco no Rio de Janeiro. 

O professor de história emocionou o público em seu discurso ao Papa: “Acredito que tinha tudo para fazer parte das estatísticas e ser mais um jovem exterminado pela violência de nossas cidades. Sempre presenciei, no local onde moro, o tráfico de drogas utilizando-se da juventude como mão de obra barata. Quando usei drogas pela primeira vez senti na minha pele as dores da juventude marginalizada pela dependência química. Superei essa fragilidade quando recebi o incentivo da minha paróquia a fazer uma experiência de voluntariado na comunidade paroquial. Desde então decidi reescrever minha história”, contou. 

Movimento Negro

Após a vivência na Pastoral Jovem, Walmyr iniciou sua trajetória de incidências na favela da Kelson. Embora já atuasse com foco na solidariedade e nas peculiaridades do territorio com distribuições de cestas básicas e eventos externos, foi através do Letramento Racial no Coletivo Enegreci que Walmyr passa a participar de movimentos políticos racializados, como o Movimento Kizomba e se filia ao Movimento Negro Unificado, chegando a ocupar a posição de Coordenador Estadual. 

O Movimento Negro Unificado (MNU) é um grupo de ativismo político, cultural e social que nasce em 1978, na ditadura militar, após uma série de episódios racistas na cidade de São Paulo. O movimento tem como principal luta a defesa do povo negro nos aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos e atualmente representa uma das mais relevantes trajetórias do movimento negro no Brasil. 

Horta Maria Angú: A (in)Segurança Alimentar na Favela

Visita de Tainá de Paula, vereadora e atual Secretária do Meio Ambiente e Clima do Rio de Janeiro, na Horta Maria Angu

Durante a pandemia da COVID-19 e o isolamento social, uma das práticas adotadas pelo historiador foi o cultivo de plantas e alimentícios, o que o levou a questionar novamente o cenário da alimentação nas comunidades: “A favela não tem segurança alimentar, vivemos um nutricídio, uma desertificação alimentar. Era necessário levar essa experiência de estar plantando temperos e hortaliças para que esse movimento seja catalisador de outras iniciativas”, conta.

No auge da pandemia, com a queda generalizada de renda nas favelas e o recorde de desemprego, a falta de alimentos impactou diversos moradores. A horta Maria Angu foi uma iniciativa do Coletivo João de Barro e dos movimentos sociais ligados às universidades que uniram forças para disputar um edital interno da PUC-Rio e financiar a construção dessa horta que nasce da urgência de sanar os problemas causados pela insegurança alimentar. 

Walmyr relata que identificar a fragilidade da Segurança Alimentar na favela, é identificar as consequências do racismo estrutural e ambiental presentes nas decisões dos governantes: “A favela é refém das escolhas do Estado, que escolhe não fazer o saneamento básico, que escolhe não fazer uma coleta de lixo adequada, escolhe não despoluir a Baía de Guanabara, que afeta diretamente a Maré. São as escolhas do Estado para criminalizar determinados territórios pela ausência de políticas públicas. Estamos aqui no território preto, favelado e periférico. Vivemos a consequência do racismo estrutural que se deflagra no racismo ambiental”, revela.

Apesar dos desafios políticos e estruturais, Walmyr, atualmente cursando o mestrado em Ciência da Sustentabilidade na PUC, continua sua trajetória de incidência nas favelas e na luta urgente para que o poder público reconheça e garanta os direitos da população favelada como cidadãos: “Organizamos mutirões quinzenais, estamos montando hortas dentro da Escola Municipal Gonzaguinha e vamos fornecer uma capacitação ambiental. Estamos otimistas com os passos que temos para dar e ao mesmo tempo nos localizar sempre nas necessidades que temos que esperançar. O que me motiva a continuar é sempre ter esperança e superar os processos de opressão que nós vivemos enquanto povo preto e favelado”, finaliza.