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Diário no front

Em entrevista exclusiva, médico desabafa sobre como é sua rotina de trabalho em uma clínica da família e na UPA da Maré na pandemia

Por Hélio Euclides em 11/03/2021 às 6h, editado por Daniele Moura.

A pandemia colocou em evidência alguns profissionais, em especial os da saúde. São especialistas e técnicos que se afastaram de familiares, deixam o descanso de lado para se dedicar aos doentes provenientes do coronavírus. O Maré de Notícias entrevistou Caio de Oliveira Aarestrup, médico que atua há dois anos na Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva, na Nova Holanda, onde presta atendimento primário, com consultas para tratamento e acompanhamento de moradores da Maré. Em outro turno, o profissional trabalha há 20 meses como plantonista na Unidade de Pronto Atendimento, na Vila do João, onde recebe pacientes na emergência que muitas vezes correm risco de morte e precisam de transferência. 

Abaixo, acompanhe a rotina do doutor Carlos, que além de atuar no atendimento das enfermidades do dia-a-dia, no último ano ainda socorreu pacientes que contraíram algo ainda novo, a covid-19.

Maré de Notícias: Como foi este ano para um médico que atua na linha de frente numa favela carioca?

Caio Oliveira Aarestrup: Da parte profissional como médico foi um ano de muitos desafios, muitas informações novas em todos os momentos e das mais variadas fontes. Filtramos as informações que mais beneficiavam os pacientes com o máximo de comprovação possível para o momento. Convivemos ainda com problemas que afetaram praticamente todo o Brasil, com escassez de respiradores e de médicos.

MN: Como está sendo enfrentar o coronavírus na Maré?

COA: Em relação aos moradores da Maré foi mais um desafio, pois as orientações sobre isolamento dos pacientes são muito difíceis de serem seguidas, já que muitos moradores necessitam utilizar transporte público para ir trabalhar diariamente se expondo ao risco de contágio da doença. O perfil das casas também são fatores complicadores, pois quando uma pessoa está com a doença deve se isolar o máximo possível dos outros moradores,  e casas apertadas e com muitos moradores aumentam a chance de todos da moradia serem infectados. 

MN: O que foi mais marcante no atendimento neste um ano de pandemia?

COA: Foram muitas marcas que a pandemia me causou, cada vida de paciente perdida prematuramente e são muitas. Quando houve superlotação no município, na primeira onda, os pacientes morriam à espera de um leito de CTI (Centro de Terapia Intensiva). Perdemos amigos, funcionários da UPA e jovens saudáveis, com toda a vida pela frente. São tempos de muito trabalho, eu assim como muitos colegas profissionais da área da saúde entrei em estresse intenso devido à sobrecarga com trabalho, precisei diminuir o número de plantões devido ao esgotamento. 

MN: Pode se dizer que a população percebe o tamanho do problema?

COA: Em relação a preocupação e medidas de prevenção percebo que não há um padrão na população, vejo pelas ruas pessoas sem nenhuma apreensão, ao contrário de pacientes que vão a consulta e relatam que sequer estão saindo de casa. O problema do primeiro grupo é que o vírus não para de circular, portanto um apelo que faço é que tomem o máximo possível de medidas de prevenção como forma de amor ao próximo. Não usar máscara não é apenas não se proteger, é não resguardar o outro, é poder contagiar uma pessoa que pode ter complicações.

MN: Nesta pandemia qual período o senhor mais trabalhou?

COA: Desde o início da pandemia não parei de receber pacientes com suspeita ou com covid confirmado. A primeira onda no ano passado foi a que eu mais trabalhei. O aumento de forma intensa recente no número de suspeitos está novamente preocupando. A parte pessoal como médico o ano de 2020 foi desafiador, felizmente contei com o apoio da minha esposa Raquel ao meu lado para superar a saudade imensa da família que mora em Minas Gerais e dos amigos que estou vendo pouquíssimo.

MN: O que discorda no Brasil na questão do combate ao vírus?

COA: Na minha opinião foram inúmeros erros, o negacionismo em relação a doença, o combate inexplicável a medidas simples como uso de máscara, o combate ao distanciamento social, o investimento em tratamentos sem nenhuma comprovação, contrastando com a falta de investimento em compra de respiradores e agora com a lentidão no programa de vacinação.

MN:O que podemos esperar para o futuro?

COA: Existem diferentes futuros possíveis. O futuro com a falta de medidas de distanciamento social e outras medidas de prevenção a propagação do vírus é visto com grande preocupação. Infelizmente quem já teve a doença pode pegar novamente com novas variantes, além de transmiti-la. Já o futuro com medidas de prevenção a propagação salvaria muitas vidas, que teriam a doença até que sejam vacinadas. Hoje apenas a vacina pode reverter o nosso quadro e fazer com que tenhamos o máximo de normalidade de volta.

MN:Qual recado o senhor daria para o território?

COA: Deixo um pedido aos moradores da Maré, que façam distanciamento, usem máscara e se vacinem quando chegar sua vez na fila, são atitudes de amor a si mesmo, ao próximo, e um ato de cidadania.

Marcas do que não se foi: as sequelas do vírus presentes no corpo

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Relatos de pessoas que tiveram covid confirmam que a doença não passa quando acabam os sintomas

Por Edu Carvalho em 11/03/2020 às 6h, editado por Daniele Moura

Falta de paladar, olfato, dor de cabeça, cansaço e perda de memória. Numa rápida publicação nas redes sociais, buscando personagens para esta matéria, foram os fatores mais evidenciados por quem contraiu o coronavírus ao longo do último ano. Mesmo aqueles que testaram positivo e durante 14 dias apresentaram sintomas leves, o clima de apreensão persiste meses após o contato com o vírus inimigo. 

Mas para muitos, a situação foi outra. É o caso de Carlos Eduardo Prazeres, maestro da Orquestra Maré do Amanhã, no Rio, acometido pelo vírus no início de dezembro de 2020, onde foi internado por 15 dias, sendo oito deles em um leito de UTI. Não bastasse o sofrimento alinhado ao medo da morte, hoje Carlos luta contra os impactos deixados. ‘’Não consigo fazer esforços maiores, andar longas distâncias, sem que me falte o ar. Tive 60% do pulmão comprometido e vou passar alguns meses fazendo exercícios respiratórios com um fisioterapeuta para retomar minha rotina’’, conta ele, que teve atendimento médico pelo plano de saúde. 

‘’Foram dias para esquecer, assim como todo o ano de 2020’’, reflete o dono da batuta que rege o projeto formado por crianças e adolescentes do conjunto de favelas da Maré. Em uma publicação feita em seu Facebook após a volta pra casa, Carlos fez um desabafo ‘’Deus me abençoou e voltei da morte, mas muitos não escapam. Tenham responsabilidade, nada de balada, nada de festa, em respeito ao seu pai, sua mãe, seus avós’’.

Manuela Moraes, 32, teve covid um pouco antes do Natal. Passado o período de resguardo, foi em viagem com família, seguindo todas as orientações, para a região dos Lagos do Rio.’’Senti muita tosse e muito cansaço. Atividades bestas pareciam muito desgastantes, como arrumar a cama. Eu tinha que parar e dar aquela respirada, fazia mais um pouco. Até na fala dava pra sentir que eu puxava um pouco mais de ar, uma certa dificuldade’’, diz.

Mateus Costa – Arquivo pessoal

Tendo asma, acreditou que os sintomas poderiam ser em relação à doença preexistente, mas ao comentar com uma amiga que é médica sobre seu estado, ouviu a recomendação de buscar saber mais sobre o que estava acontecendo. Foi ali que o conselho para procurar ajuda veio, na figura de um fisioterapeuta respiratório. “Quando fiz a avaliação, ele perguntou o que eu tinha dificuldade. Quando colocamos o oxímetro e fizemos exames, deu para perceber uma pequena lesão de um lado do pulmão e que meu batimento cardíaco estava alto. Sem que fizesse esforço, registrava 120 e quando se movimentava, superava 140.  Os cuidados seguem por três vezes na semana. Sintetizando seu estágio, Manuela é enfática: ‘’Ainda estou no processo dos cuidados, mas sigo com os cuidados’’.

Mateus Costa é profissional de saúde em Barra Mansa, e em julho do ano passado, logo quando entrou na linha de frente para atendimento aos que precisavam, viu sua atuação mudar de lado, engrossando o número de casos. Oito meses depois do contágio voltou ao front e lida com as sequelas.“Eu tenho um pouco de esquecimento. Às vezes eu falo uma coisa e passa um tempo, não lembro. Acabo esquecendo, por exemplo, onde coloco as coisas minutos depois de ter guardado’’, diz o rapaz de 22 anos, que teve acompanhamento médico durante a doença. Para a volta ao trabalho, deu início a um check-up, ainda não terminado ‘’por conta da correria’’, mas já recebeu as duas doses do imunizante.

Robson Melo  não conseguiu nem começar o check-up. ‘’Não tenho plano de saúde, dependo do SUS. Onde me consulto o elevador não funciona, você sobe e desce de escada. É tudo feito pra que você desista. Então imagina conseguir um check-up?’’, é  o que relata o ator e morador da Rocinha, favela na Zona Sul do Rio de Janeiro, que testou positivo em dezembro passado.

‘’Quando comecei a ter os sintomas da covid, os primeiros foram a dor no corpo e febre por dois dias. Fui pra Clínica da Família, que receitou azitromicina, ivermectina e vitamina C com zinco’’ conta o rapaz que já tinha doenças preexistentes, como pressão alta, sobre o coquetel indicado para tratamento em casa. Mas antes de contrair, já pairava medo em sua cabeça. ‘’Olhava o panorama do país, e pensava que um vírus desse aqui vai fazer um estrago muito grande’’, sinalizava, já por morar na favela com maior índice de tuberculose no país. 

Dos resquícios do novo coronavírus, ficaram alguns sinais. ‘’Às vezes tenho episódios de falta de ar, o que não tinha. Eu me levanto e sinto o corpo não corresponder’’. Além desses dilemas, somam-se as questões psicológicas, como ansiedade extrema, episódios de depressão e tristeza. Sem trabalho, aponta que uma das maiores dificuldades é ter recurso financeiro para dar atenção à saúde. ‘’Eu tento ao máximo me cuidar e cuidar do corpo, nos recados que ele manda’’ fala, enfatizando que vem tentando consulta em hospitais, mas não consegue. ‘’A vida é frágil, mas você dormir e acordar com a certeza dessa fragilidade, te dá impotência e medo”, finaliza. 

Para a médica Mariana Sochaczewski, que já atuou no Hospital dos Servidores, Miguel Couto e Souza Aguiar, ambos públicos no Rio, e hoje atende em um espaço médico com preços populares, a recomendação é estar atento aos sinais do corpo. ‘’Como o vírus pode acometer cada pessoa de forma diferente, esses cuidados devem ser orientados de forma individual e específica no momento da alta hospitalar’’, reforça, elevando a atenção para a ida ao médico para avaliação completa. 

‘’Se o paciente tiver um quadro mais grave ou com sintomas severos ou tiver alguma comorbidade, deve procurar atendimento quando tiver o diagnóstico suspeito ou confirmado. Cada alteração deve ser compartilhada com um profissional da saúde, porque os “sintomas” tardios podem variar de cansaço, inflamações, dores, confusão mental, esquecimento até dificuldade para respirar, e procurando atendimento médico precocemente, as chances de tratamento e alívio dos sintomas é muito maior’’

alerta a médica Mariana Sochaczewski

Fora da contagem oficial

Iniciativas fazem os seus próprios levantamentos para mapear dados sobre a covid-19 de moradores de favelas, indígenas e quilombolas

Por Andressa Cabral Botelho em 11/03/2021 às 6h, editado por Edu Carvalho e Daniele Moura

Se para contabilizar os números de casos e mortes ao longo de um ano no Brasil foi criado um consórcio com veículos da mídia (TV Globo, G1, GloboNews, O GLOBO, Extra, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e UOL), o jornalismo comunitário e periférico, junto de organizações locais, também teve a necessidade de unir forças para dimensionar o que viam acontecer diretamente a cada beco ou esquina. Muitas vezes deixadas de lado, os números das favelas acabavam por ficar subnotificados nas secretarias municipais e estaduais de saúde. Com propósito de informar, os territórios também criaram seus painéis e boletins epidemiológicos, acompanhando dia a dia a disseminação do coronavírus. 

Uma dessas iniciativas é o Painel Unificador Covid-19 nas Favelas do Rio, uma articulação entre 20 coletivos de favelas das cidades do Rio, Itaguaí e Mesquita. O diferencial do painel é que ele utiliza uma série de metodologias de coleta de dados, como relatorias locais, identificação dos casos por meio de CEPs, dados coletados pelo Voz das Comunidades e dados das secretarias estadual e municipal de saúde. “Aliar essas diversas metodologias foi fundamental e é uma característica do nosso painel, pois assim ele não depende somente de dados públicos e faz assim como a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda: também contar casos suspeitos por avaliação de sintomas”, conta Theresa Williamson, diretora executiva da Comunicação Catalisadora, a ComCat, e uma das principais articuladoras do Painel. 

Além do levantamento, os coletivos do Painel pensam juntos em estratégias de comunicação para informar sobre a doença, cuidados e vacinação. O painel foi lançado em julho, mas antes do seu lançamento o grupo encontrava-se para pensar em metodologias para agrupar esses dados. Atualmente, o grupo tem discutido sobre algumas ações a serem tomadas para enfrentar a pandemia nesses territórios, como campanhas de conscientização nas ruas e redes sociais e mobilização pela vacinação. Ao longo de março, o coletivo pretende reforçar a ação de enfrentamento da covid-19 nas favelas, lançada no dia 10 de fevereiro, pensando em desenvolver uma série de materiais sobre a importância da vacinação de quem mora nas favelas.

Cartaz da campanha Se Liga no Corona!, um dos parceiros do Painel Unificador Covid-19 Nas Favelas do Rio. Crédito: Fiocruz

A Maré, de acordo com os dados do Painel Unificador, é, disparada, a favela com o maior número de casos por covid-19: são 3.155 pessoas infectadas, além de 170 mortes. Números que chocam aos olhos, tanto em comparação às outras favelas quanto ao número oficial apresentado pelo painel da Prefeitura do Rio – que em 14 de março era de 1.627 casos. Entretanto, é justamente o número do levantamento que se aproxima do real impacto da pandemia no território. Para realizar a contagem, foram utilizadas duas metodologias em dois momentos. A primeira se deu a partir do boletim De Olho no Corona!, projeto iniciado em março onde a equipe abriu um canal de diálogo com a população para fazer esse levantamento. Desta forma, além dos números oficiais do painel da Prefeitura, o boletim incluía o número de casos e mortes suspeitas, porém sem confirmação. A partir de agosto, o projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid passou a realizar testes na Maré, além de oferecer isolamento às pessoas que testaram positivo e atendimento por meio da telemedicina. Com números concretos, a contagem deixou de ser pela relatoria de casos suspeitos e passou a ser a partir dos resultados de testes positivos para a covid-19, tornando possível ter uma dimensão maior e mais aproximada da situação do conjunto de favelas da Maré em relação à pandemia. 

Graças ao acompanhamento feito pelo painel é possível perceber que juntas, elas possuem mais casos que alguns países inteiros. Até 10 de março, as 228 favelas que fazem parte do coletivo registraram 32.597 casos e 3.503 mortes registradas, seja por fontes oficiais ou relatorias locais. E sim, são registros maiores que países como Austrália (com cerca de 29 mil casos e 909 mortes), Tailândia (cerca de 26,4 mil casos e 85 mortes) Angola (cerca de 21,1 mil casos e 515 mortes) e Haiti (aproximadamente 12,5 casos e 251 mortes).

A contagem a partir do Alemão

Outra iniciativa, também na cidade do Rio, foi o Painel Covid-19 Nas favelas, desenvolvido pelo portal Voz das Comunidades. O levantamento existe desde abril de 2020 e hoje reúne dados de 25 favelas da cidade. O site é atualizado diariamente utilizando os dados oficiais do painel da Prefeitura, além de considerar também informações das Clínicas da Família das favelas, que indicam casos suspeitos de covid-19.

O projeto começou quando o coletivo percebeu que muitas pessoas dos Complexos do Alemão e Penha que estavam com covid-19 eram contabilizadas em bairros próximos, como Bonsucesso, Ramos, Olaria, sobrecarregando os números desses bairros e subnotificando as favelas.

“Nós sabíamos de duas pessoas do Alemão com covid-19 constando no painel, mas na verdade tinham 10, 15 pessoas no nosso conhecimento. Tinham pessoas que faziam o teste em Bonsucesso e esse resultado acabava constando com esse bairro e não Alemão”

conta Melissa Cannabrava, coordenadora de comunicação do Painel.

Em junho, por exemplo, o boletim De Olho no Corona! destacou justamente esse ponto: enquanto Bonsucesso, com mais de 18,7 mil habitantes possuía 448 casos confirmados e 57 óbitos, a Maré, com cerca de 140 mil moradores, tinha 229 casos e mortes. Deste modo, o  levantamento entendia que parte dos casos do conjunto de favelas era notificado como casos do bairro vizinho.

Melissa destaca, ainda, que os dados fornecidos pelas unidades de saúde nas favelas foram de extrema importância para ter uma dimensão maior dos números, tendo em vista que a Prefeitura considerava apenas os casos confirmados mediante testagem. “A Clínica da Família apontava para cinco casos suspeitos. Esse dado entrava no nosso painel, mas não no da Prefeitura, que só constava casos confirmados”. 

Povos originários em situação de invisibilidade

Não muito diferente daqueles que moram nas favelas e periferias, os povos originários também vêm sofrendo com descaso e subnotificação dos casos de covid-19 e da mesma forma, optaram por criar boletins e painéis de contagem que contemplem as suas populações. Desde maio, organizações indígenas e quilombolas de diversas regiões do país têm encaminhado as suas informações sobre o impacto da covid-19 em seus territórios para desenvolver boletins.

No caso dos indígenas, a contagem é feita pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que desde maio faz um levantamento apontando a quantidade de povos indígenas impactados pela doença, assim como os números de casos e mortes pelo novo coronavírus. De acordo com o último boletim da Apib, de 08 de março, 163 povos indígenas foram afetados, com cerca de 50 mil pessoas infectadas e 991 mortos em decorrência da doença.

Assim como nas favelas, existe uma subnotificação, tendo em vista que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) contabiliza apenas o número de casos de indígenas em aldeias e reservas, excluindo aqueles que vivem nas cidades. Em contexto urbano, esses indígenas são contabilizados como pardos, subnotificando o número de indígenas mortos e sobrecarregando o número de negros. Outro fator que dificulta a contagem por parte da Sesai é o medo que alguns indígenas em contexto urbano têm de sofrerem racismo, algo bastante recorrente, de acordo com o Relatório Apib.

Semelhante à Apib, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) criou um comitê de enfrentamento à covid-19, que realiza desde o levantamento de dados até elaboração de um plano de vacinação junto a órgãos do governo federal. Os quilombos rurais carecem de estrutura básica, como fácil acesso a saneamento básico, vivendo em situação de vulnerabilidade social, impossibilitando essa população a ter os cuidados básicos de higiene necessários neste momento. Um outro fator agravante, segundo o Observatório da Covid-19 nos Quilombos, desenvolvido pela CONAQ em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) é o não reconhecimento dessas pessoas como quilombolas durante o atendimento, o que ajuda a diminuir o número real de casos e mortes.

Até o dia 08 de março, data do último boletim epidemiológico da CONAQ, foram 5.013 pessoas contaminadas e 212 quilombolas que morreram em decorrência do novo coronavírus. Destas mortes, 38 foram no estado do Rio, o segundo do país em número de óbitos de remanescentes de quilombolas, ficando atrás apenas do Pará, com 61 mortes.

A luta pela vacinação 

Em 24 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal aprovou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742, com o objetivo assegurar a vida e a saúde quilombola na pandemia da covid-19. Diferente dos povo indígenas, os quilombolas não foram incluídos em nenhum dos grupos prioritários do plano de vacinação contra a covid-19 e com a conquista do último mês, o governo federal tem até um mês para desenvolver um plano de combate ao novo coronavírus voltado para as comunidades quilombolas. “O STF dá um passo importante ao reconhecer o direito de quem é de direito. As comunidades são um grupo numeroso e a população negra é que mais morre pela covid por não conseguir acesso a saúde, essa decisão nos faz avançar na equidade”, destaca Biko Rodrigues, um dos coordenadores da CONAQ. 

No mesmo mês, diversas organizações se articularam para lançar no dia 10 de fevereiro o Dia Estadual de Mobilização para Enfrentamento da COVID-19 nas Favelas do Rio de Janeiro, com o objetivo de garantir de forma prioritária a vacinação para a população que mora nas favelas e periferias do estado do Rio. 

“A população favelada e periférica deve ter prioridade na vacinação por alguns fatores. Primeiro porque geralmente estes territórios são mais precarizados em relação ao acesso à água, a questão da moradia – com famílias grandes e moradias pequenas onde todo mundo tem muito contato o tempo todo -, o que dificulta a contenção do vírus. Em segundo lugar porque são as pessoas que moram nestes territórios que trabalham em diversas áreas, inclusive áreas essenciais, embora não listados como tal”, observa Douglas Heliodoro, membro do Coletivo Conexões Periféricas, de Rio das Pedras, Zona Oeste da capital fluminense. Para Douglas, a vacinação para moradores de favelas e periferias é fundamental pois, por mais que se more na favela, essas pessoas precisam se deslocar pela cidade para trabalhar e, assim, permitem que haja uma circulação ainda maior do vírus. 

Especialistas e profissionais de saúde sintetizam, em depoimento, o que viram do primeiro ano da pandemia

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O retrato do primeiro ano da pandemia sintetizado por quem esteve diariamente na linha de frente

Por Edu Carvalho em 11/03/2020 às 6h40, editado por Daniele Moura

Para entendermos exatamente o que acontecia a partir de 11 de março de 2020, precisou que toda a população global voltasse sua atenção para profissionais da saúde nas mais diferentes vertentes. É na voz destes profissionais que, todos os dias, descobrimos os passos de uma pandemia distante de chegar ao fim. Como forma de homenageá-los, reunimos depoimentos exclusivos e publicados ao longo dos últimos doses meses. 

“Falo com segurança e propriedade: não tenham medo”.

Enfermeira Mônica Calazans, primeira pessoa a ser vacinada contra a Covid-19 no Brasil.

‘’É um momento único na história do mundo moderno, em termos de saúde pública. Ao mesmo tempo que é desafiador participar disso, é uma coisa inédita na carreira. É um momento de mais dedicação, envolvimento, pessoalmente falando. Me dediquei muito a imunizações, a infectologia, então participar ativamente desse processo, em todas as esferas onde atuo, é um desafio, uma honra, ao mesmo tempo de colaborar de alguma maneira. Você sentir seu esforço, seu estudo, sua dedicação profissional, com algum resultado importando no andar das coisas. A beira dos dois mil mortos, é um misto de enfrentamento de uma guerra, de que você está na frente de batalha, ativamente. 
Poucas horas de sono, muito estudo, muita leitura, muitas reuniões, muitas decisões, mas com coragem e disposição para contribuir’’.

Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

’Essa pandemia me pegou completamente desprevenido. Não acreditava como ela seria, e nesse momento, tenho alguma ideia do que ela está sendo, e de que não terminará tão cedo. Vamos sofrer muito e vamos ter ainda muitas mortes antes de conseguir chegar a uma imunidade. Infelizmente, tem muitas surpresas pela frente. Mas tem algumas coisas que acho que foram positivas: descobrir que vivemos em um mundo extremamente desigual, e que a desigualdade faz mal para civilização. Espero que a gente consiga, pelo menos, não esquecer disso. E no momento seguinte, após estarmos esperando a próxima pandemia, a gente resolva diminuir a desigualdade. Ela só diminuirá se nós quisermos. E dessa maneira, estaremos nos preparando melhor para a próxima pandemia, fruto da destruição que nós estamos preparando no mundo”.

Gonçalo Vecina Netto, médico sanitarista, professor e um dos fundadores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

‘’Estamos vivendo a maior crise sanitária dos últimos cem anos. O mundo todo. Precisamos entender as dificuldades e dores desse momento, muitas pessoas e famílias marcadas para sempre com essa pandemia. É impossível alguém que não tenha alguém próximo que perdeu para essa doença. Estamos num momento de tristeza, mas ao mesmo tempo, um momento onde consegue entender a importância da solidariedade e de pensarmos no outro. Tanto nas medidas de prevenção, como na utilização de máscaras, que é um respeito ao outro, no distanciamento físico, também num respeito ao outro. E todas as medidas que precisamos tomar nesse momento, culminando agora com a vacinação, que é uma estratégia coletiva, é uma estratégia que eu preciso pensar não só em mim, mas nas pessoas que estão próximas. E a vacina é a única coisa que pode nos tirar dessa pandemia. E nós precisamos nos unir para que o maior número de pessoas possa ser vacinada no Brasil, além de todas as dificuldades, o ano de 2021 ainda vai trazer desafios, com essa campanha tão lenta de vacinação até aqui. Precisamos pressionar para que o governo faça novos acordos, e tenhamos uma ampliação na compra de vacinas e possamos ampliar a oferta de vacinas para nossa população. É isso que a gente espera”. 

Ethel Maciel, enfermeira, epidemiologista, pesquisadora do CNPq e presidente da Rede Tuberculose, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

‘’Foi muito ruim, mas infelizmente vai piorar muito’’

Miguel Nicolelis, neurocientista, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

‘’De início, não imaginava que poderíamos chegar a esse ponto. O fortalecimento de políticas anti-científicas, a utilização de medicamentos ineficazes, entre outros fatores, desencadeou uma falta de esperança e de que realmente o pior estava ainda por vir. Observo que muitos profissionais estão desgastados, com insônia, medo, depressão e estresse. Muitos estão desistindo de sua carreira profissional e com sobrecarga de trabalho, mudando até de profissão’’.

Jonathan Vicente, biomédico, mestrando em Medicina Preventiva/Saúde Coletiva na Universidade de São Paulo-USP, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

‘’Informação sobre ciência errada tem grande potencial de prejuízos à sociedade, mesmo se corrigirmos depois. Ao mesmo tempo, o público exige dos cientistas e de nós comunicadores respostas rápidas e completas que nem sempre temos. Outro desafio são as fake news, também carregadas de ideologia. Informar é um problema menor, fizemos isso a vida toda. Já lidar com desinformação é mais complexo: não adianta só encher as pessoas de informação. Estamos aprendendo’’.

Luiza Caires, jornalista, editora de Ciências do Jornal da USP. Mestre em Comunicação e divulgadora científica, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

‘’O Brasil infelizmente ocupa posição de destaque mundial no evento histórico pandemia de Covid-19, não só por incompetência, mas também por ação deliberada do governo Bolsonaro’’.

Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, professor e pesquisador, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

“Cuide de você e de todos! Entenda que o momento, mais do que nunca, exige um comportamento coletivo e individual responsável. As vacinas farão a diferença, mas enquanto isso, pessoas vacinadas ou não precisam manter o distanciamento social e o uso de máscaras e buscar ficar mais em casa, saindo apenas quando essencial.”

Isabella Ballalai, Vice- Presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

“As vacinas sozinhas não são a solução para a pandemia! Para vencermos a COVID-19 use  máscaras, lave as mãos , mantenha distância de 1, 2 metros e evite aglomerações.”

Juarez Cunha, Presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

“Não podemos pensar somente nos nossos familiares e amigos e sim no coletivo. Quando ficamos doentes, usar máscara é um ato de amor. No momento atual todos devemos utilizar para o bem comum. Os meus, os seus e os nossos parentes merecem respeito. A ciência trabalha para uma melhor qualidade de vida de toda comunidade.”

Elvira Alonso Lago, médica em Gastroenterologia Pediátrica integrante dos Ensaios Clínicos Biomanguinhos/Fiocruz, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

“A vacina é  essencial para o combate à COVID-19,  mas o real controle vai depender da participação de cada um de nós.”

Maria de Lourdes de Sousa Maia, coordenadora da Assessoria Clínica (Asclin) do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos – Fiocruz), em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

“Estamos num momento difícil, que vai passar. A Ciência de qualidade é inquestionável, e nos ajudará a sair dessa.”

Eliane Matos dos Santos, professora titular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em depoimento exclusivo ao Maré de Notícias

  “Próximos dias da pandemia serão horríveis”

Drauzio Varella, no último domingo, no Fantástico, da TV Globo

 ‘Teremos o março mais triste de nossas vidas’

Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fiocruz, em entrevista à BBC News Brasil

“A ciência já fez sua parte: há estudos e planos sobre lockdown e vacina. A bola agora está com a política. E o governo federal nos abandonou.”

Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, bióloga e divulgadora científica brasileira

O Corre Coletivo – Audiolivro – O Inimigo Invisível

Na história, você conhece o Jonas, um garoto de quebrada que, entediado ao assistir a aulas à distância, imagina como é o coronavírus observando a sujeira de sua borracha. Jonas imagina o Corona como um vilão e, sua irmã, Joana, como a heroína fazendo um corre importante no seu bairro. Ao longo da história, misturam-se os olhares desses dois irmãos que encaram a realidade do cotidiano da periferia diante da pandemia da Covid-19.

Nessa jornada, os irmãos dão-se conta da importância de se prevenirem para cuidar de si e do coletivo. Esse audiolivro surgiu da HQ “O Inimigo Invisível” criado pelo O Corre coletivo em parceria com o Sesc Interlagos. As tiragem impressa da HQ será distribuída na zona sul, lar do Sesc Interlagos e d’O Corre – uma HQ em preto e branco toda feita para imaginar, colorir, educar e cada um ser o herói da sua jornada. Já a HQ digital você encontra aqui mesmo, nas nossas redes sociais, onde poderá ler, baixar e se for um coletivo ou organização social sem fins lucrativos, poderá também distribuir.

Baixe a hq no link: https://www.sescsp.org.br/files/artig…? e ouça o áudio livro folheando as paginas. Irá ampliar sua experiência!

O Corre – quem fez o quê:

Coordenação Ana Paula (@anaprarua) é ilustradora, artista visual e arte educadora

Revisão Bianca Martins (@biancamartins_sp) é estudante de psicologia e poeta

Ilustrador Ciano Buzz (@cianobu) é ilustrador, educador e roteirista

Diagramação Ewerton Silva (@ewerton.silvaj) é estudante de marketing

lustrador Lukera Andrade (@lukeraandrade) é biólogo, roteirista e ilustrador

Coordenação Weslley Silva (@wee_lelo) é arte educador, roteirista e ilustrador

Locução informativa Kaique Santos (kaique_santosz) é jornalista e articulador

Narração Lucas Andrade (@lukeraandrade)

Dublagem:

Ma’ Sol (@masolzs) dublou Joana
Ciano Buzz (@cianobu) dublou Jonas
Teresinha André de Andrade dublou Dona Lurdes
Ana Paula (@anaprarua) dublou Professora

Participação especial
@brunarte @barbizinhe @carol_candido.jpg @lua.nacrvlh

Edição, decupagem, mixagem e foley Weslley Silva (Lelo ) (@Wee_Lelo)

Contato [email protected]

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O enfrentamento da pandemia na Maré

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O conjunto de favelas tem gratuitamente telemedicina, testes PCR´s e sorológicos, além de acompanhamento social para o isolamento seguro.

Por Daniele Moura com conteúdo do projeto Conexão Saúde em 11/03/2021 às 6h. Editado por Edu Carvalho

Ninguém imaginava que um ano após a Organização Mundial da Saúde anunciar a pandemia do novo coronavírus, o Brasil viveria o pior momento desde que a covid chegou no país. Com recordes diários tanto do números de mortes como da média móvel dos óbitos, o panorama brasileiro tende a ficar pior. Especialistas da Fiocruz preveem que até o fim de março teremos três mil mortes diárias. Isso representa mais de 7 aviões 747-300 caindo por dia. Mas não há comoção parecida com desastres aéreos. A paralisia que acomete o Brasil parece ser mais danosa que o próprio vírus. 

Com a falta de uma política de saúde pública global que direcione os brasileiros na prevenção e diminuição do contágio, o país parece não viver a pandemia. Não há vacinas suficientes, não há leitos, nem tão pouco equipamentos de proteção gratuitos à população, sobretudo os mais pobres. Isso sem falar nas medidas possíveis de assistência social para os mais impactados como o auxílio emergencial. E os números não param de crescer. 

O Brasil permanece, desde o final de maio de 2020, como o terceiro país com maior ocorrência de casos e na segunda posição em número de mortes, totalizando 11.483.370 casos confirmados e 270.917 óbitos até o dia 14/03/2021, segundo o Consórcio de Imprensa. Na cidade do Rio de Janeiro, segundo o Painel Rio COVID-19, administrado pela Prefeitura, foram contabilizados 213.488 casos confirmados e 19.380 mortes até a mesma data. Destes, 1.627 casos confirmados e 170 óbitos foram de moradores da Maré. Só nos últimos 14 dias – de 23/02 a 08/03 – foram 54 novos casos e 3 mortes nas 16 favelas do território. Já pelo Painel Unificador das Favelas, monitoramento onde se contabiliza casos suspeitos e confirmados por líderes comunitários de 70 favelas da cidade, a Maré já soma 3.155 casos. Ainda pelo Painel são 32.597 casos nas favelas da cidade.

Para enfrentar o problema, a Redes da Maré desde abril de 2020 está atuando com a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus, que inicialmente doou itens alimentícios e kit de higiene e desde julho, se desdobrou no projeto Conexão Saúde numa parceria da organização com Dados do Bem, SAS Brasil, Fiocruz, União Rio e Centro Comunitário de Manguinhos, com financiamento do Todos pela Saúde. A iniciativa oferece telemedicina, testagem gratuita e o acompanhamento para o isolamento seguro. O Centro de Testagem de Manguinhos inaugurou em 09/12/2020, quatro meses após o centro da Maré e contou, até 12/03/21 com 1.589 amostras de testes coletados, sendo 236 positivos.

Já o Centro de Testagem da Maré – situado na Nova Holanda, na Rua Teixeira Ribeiro – já testou até o dia 8 de março, 10.678 pessoas, sendo que 1.763 estavam positivas para o novo coronavírus.  Todos os casos positivos testados pelo projeto são notificados ao Poder Público e, portanto, passam a compor os dados oficiais do Painel Rio COVID-19. No entanto, ao monitorar os números de ambas as fontes, é possível perceber um atraso, por parte do município, de pelo menos duas semanas em relação à divulgação dos casos positivos reportados pelo Conexão Saúde às autoridades.

O projeto também oferece telemedicina tanto para casos de covid quanto outras especialidades, respondendo às demandas reprimidas em função da diminuição do atendimento nas unidades de saúde e oferecendo alternativas aos moradores para que sejam atendidos sem precisar sair de casa, evitando aglomerações. No caso de pacientes teste de covid-19 positivo é possível realizar o acompanhamento dos casos e encaminhamento para rede pública de atendimento, quando necessário. Desde julho do ano passado foram feitos 2.449 atendimentos médicos por telemedicina pelo Conexão Saúde, sendo 706 casos com suspeita ou confirmação de covid-19. E em 8 de março foram 16 casos ativos. Já o Programa de Isolamento Social oferece acompanhamento social às famílias, orientação para o cuidado e fornecimento de insumos como kits limpeza e higiene e alimentação no período da recuperação da doença. Ao todo até o dia 08/03, 404 moradores foram incluídos no programa, 32 casos estão em acompanhamento e cerca de 4 mil kits de refeições foram entregues.

Desde que começamos a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus começamos ouvir os moradores e suas famílias sobre as questões que envolvem a covid. Como não havia testagem, e poucas informações sobre a doença, e muitas demandas sociais para cumprir, priorizamos essa escuta e a partir dela iniciamos o Conexão Saúde.” 

Henrique Gomes, coordenador do programa de Isolamento Domiciliar Seguro do Conexão Saúde, o diferencial do projeto foi ter tido como base as demandas dos moradores da Maré.

Revolta da Vacina 

Vivemos um momento muito preocupante com o cenário atual de politização da vacina contra a covid-19, promovendo visões negacionistas e anticiência sobre a pandemia. Mas se olharmos para trás veremos que há 116 anos vivíamos um cenário também de revolta à vacinação.

Em 1904, a então capital do país, passou por reformas urbanas que visavam remodelar a cidade, tornando-a reflexo do Brasil republicano moderno que acabara de se constituir. O País enfrentava três grandes epidemias na época: a peste bubônica, a febre amarela e a varíola e programas obrigatórios de higienização utilizaram recursos arbitrários para lidar com a população – incluindo remoções forçadas e as chamadas guardas “matamosquitos”, que invadiam casas, muitas vezes acompanhadas por soldados da polícia. Especificamente em relação à varíola, foi criada uma lei que instituiu a vacinação obrigatória em massa da população.

Já as reformas urbanas,capitaneadas pelo prefeito Pereira Passos, nomeado pelo então presidente Rodrigues Alves, visavam a reorganização do centro da cidade. Este processo envolveu a demolição de cortiços de forma autoritária e sem indenização aos moradores, o chamado “Bota Abaixo”. Removida das áreas centrais da cidade, uma significativa parcela da população – marcadamente pobre e negra – foi obrigada a buscar moradias em morros e regiões periféricas da cidade. Assim surgiram e cresceram as primeiras favelas do Rio de Janeiro.

Neste processo de remoções forçadas e medidas de higienização e imunização violentas, que não priorizaram a disseminação de informação para a população, tensões urbanas foram se intensificando. Em novembro de 1904, motins populares se espalharam pela cidade, sendo duramente reprimidos pelas forças de segurança. Foi a chamada Revolta da Vacina. É importante lembrar que a crescente insatisfação da população foi aproveitada por grupos políticos contrários ao presidente eleito Rodrigues Alves com o objetivo de enfraquecer o governo. Junto à parcela da mídia – especialmente por meio de charges e folhetins, muito comuns à época – tais grupos exploraram o medo de se vacinar, estimulando a circulação de notícias que colocavam em dúvida o efeito da vacina e o mal que podia causar à saúde. Durante muito tempo, dizia-se que, ao tomá-la, era possível adquirir “feições bovinas”, por conta dos animais que deram origem à substância imunizante.

Após alguns dias de motins e confrontos pela cidade, a obrigatoriedade da vacinação foi retirada, deixando um saldo de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos. A repressão foi direcionada aos grupos mais pobres e à população negra, representada, inclusive, no único registro fotográfico que se tem dos manifestantes detidos. Mais tarde, em 1908, após um surto de varíola no Rio de Janeiro, a vacinação contra a doença foi amplamente realizada com aceitação da população, num episódio, portanto, diferente da Revolta da Vacina. 

Programa Nacional de Imunização

Nas décadas que seguiram, o país passou por outros períodos importantes de imunização da população, como a vacinação contra a tuberculose (BCG), em 1927, a eliminação da febre amarela urbana em 1942, a criação da campanha de erradicação da varíola em 1966 e, finalmente, a criação, em 1973, do Programa Nacional de Imunizações (PNI) pelo Sistema Único de Saúde. Desde então, o PNI vem se configurando como uma das principais estratégias de política pública em saúde do país, com impacto direto na relação entre o número de mortes provocadas por doenças. 

No entanto, a partir de 2016 pesquisadores passaram a chamar atenção para a diminuição das metas estabelecidas para os Índices de Coberturas Vacinais (ICV). Este fenômeno, que não é exclusivo do Brasil, é apontado como reflexo de muitos fatores: falta de informação sobre os benefícios das vacinas, notícias falsas que circulam especialmente nas redes sociais, a precarização das Unidades Básicas de Saúde (UBS), dificultando o acesso à atenção primária, e a falta de produtos específicos para a efetivação de alguns planos de vacinação. O ano de 2020, ano da pandemia da covid-19, foi também marcado por um surto do vírus do sarampo, que estava erradicado no país, com certificado concedido pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS/OMS), desde 2016. Foram registrados 8.261 casos da doença em todo território nacional e o vírus permanece ativo em estados como Amapá, São Paulo, Pará e Rio de Janeiro. A partir de 2016 observou-se ainda a queda do ICV para vacinas do calendário nacional, com metas abaixo do esperado para maioria das vacinas infantis – com exceção da vacina BCG. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem, desde 2012, buscando entender este contexto e, em 2019, considerou como uma das dez maiores ameaças globais à saúde, a “hesitação em se vacinar”. No Brasil, este cenário é agravado pela intensa precarização do Sistema Único de Saúde, o SUS, e das condições de trabalho dos profissionais de saúde que atuam no sistema. E é neste contexto que a vacina contra a covid-19 chega ao país, em 17/02/2021, ficando ainda mais evidente a importância do fortalecimento de estratégias como o PNI, que vão atuar de forma direta, em todas as etapas do processo de imunização contra a doença. 

Em meio à precarização destas estratégias de saúde, as desigualdades sociais – que também se refletem nos cuidados básicos e no acesso à saúde primária – representam grande desafio para o enfrentamento da covid-19. Especialmente em territórios periféricos e favelados, estes desafios são relativos à precariedade das infraestruturas de moradias e composição familiar (com alta densidade habitacional), à inviabilidade do distanciamento social (grande parte dos moradores são trabalhadores informais, sem vínculo empregatício e dependem do trabalho presencial para subsistência), ao déficit de infraestruturas urbanas e falta de acesso ao saneamento básico e, muitas vezes, à água.

Apesar das favelas serem atingidas de maneira desproporcional pela epidemia do novo coronavírus, nenhum plano específico de enfrentamento foi criado. Outros grupos vulneráveis foram, com razão, reconhecidos como grupos de risco a serem priorizados. Foram cobertas vulnerabilidades físicas, mas também étnico-sociais, como é o caso da população indígena, ribeirinha e quilombola. Mas as populações urbanas periféricas e faveladas não foram incluídas. Ao contrário, conforme a vacinação avança no Rio de Janeiro, é possível identificar que esta parcela da população não só não foi priorizada, como tem sido negligenciada com uma cobertura insuficiente em relação aos bairros mais ricos da cidade. Só para exemplificar, na zona sul da cidade, foram dadas 71.413 doses da vacina até 09/03, enquanto na Maré foram 3.115 o que demonstra que nesses territórios a vacinação anda bem mais lenta do que os mais ricos da cidade. Por que isso acontece?

Dados do último boletim Conexão Saúde: De olho no Corona