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Vai votar, mas você sabe pra quê?

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Quais as funções de vereadores e prefeito e o que eles podem prometer para fazer pela cidade

Maré de Notícias #118 – novembro de 2020

Por Daniele Moura

Pouco mais de 147,9 milhões de eleitores no país estarão aptos a votar nos próximos dias 15 (primeiro turno) e 29 (segundo turno) de novembro para escolher 5.568 prefeitos, 5.568 vice-prefeitos e 57.942 vereadores em todo o Brasil, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mas você sabe para que serve um vereador e as funções de um prefeito?

O que são vereadores?

Cabe ao vereador propor, discutir e aprovar as leis que serão aplicadas em cada cidade. Entre essas leis, está a Lei Orçamentária Anual, que define onde deverão ser aplicados os recursos dos impostos. Também é dever do vereador acompanhar as ações do Executivo, que, no caso, é o prefeito, verificando se estão sendo cumpridas as metas de governo e se estão sendo atendidas as normas legais. 

Os vereadores, na Câmara Municipal – também chamada de câmara de vereadores -, discutem e votam projetos que envolvem impostos municipais, educação municipal, linhas de ônibus e saneamento, entre outros temas que envolvam a cidade. Esses projetos, emendas e resoluções têm de passar por comissões, para serem votados no plenário da Câmara, e, depois de aprovados, precisam ser apreciados pelo prefeito, que pode vetá-los total ou parcialmente ou aprová-los. Quando há aprovação, o projeto é publicado no Diário Oficial da cidade e vira uma lei.

Muitos candidatos a vereador fazem promessas que fogem da sua área de atuação, como a realização de obras de construção de hospitais e escolas. A segurança pública, por exemplo, é de responsabilidade do Governo do Estado. As cidades podem contar também com guardas municipais, e vereadores não têm poder de decisão nessa área. Um vereador pode, no máximo, pressionar na Câmara, mas nunca garantir a execução da obra. Vereador propõe leis. 

Fiscalização

Os vereadores têm o poder e o dever de fiscalizar a administração do prefeito, cuidando da aplicação do dinheiro e observando o orçamento. É dever deles acompanhar o cumprimento das leis e da boa aplicação e gestão do dinheiro público. Também são os vereadores que julgam as contas públicas da cidade, o que acontece todo ano, com a ajuda do Tribunal de Contas do Município.

Cada câmara pode ter, no mínimo, nove vereadores e, no máximo, 55. O total de vagas depende do tamanho da população de cada cidade. O salário varia entre 20%  e 75% do que recebe um deputado estadual, e o percentual aumenta de acordo com o número de habitantes. No Rio, o salário do vereador é um dos maiores do país: R$ 18.991,68.

VOCÊ SABIA?

A população pode assistir às sessões legislativas ou ir conversar com os vereadores em seus gabinetes na Câmara, aqui no Rio, na Cinelândia (Palácio Pedro Ernesto – Praça Floriano, s/n). Caso o eleitor descubra alguma irregularidade na Câmara ou na Prefeitura, é possível fazer uma denúncia ao Ministério Público. 

Direitos do vereador 

  • Imunidade parlamentar: os vereadores podem expressar livremente suas opiniões sem que possam sofrer ameaças judiciais, evitando que sua capacidade de exercer suas competências sejam limitadas (isso não significa que o vereador possa cometer crimes de ódio nem fazer apologia a crimes);
  • Direito à renúncia: o vereador pode renunciar ao seu cargo quando bem entender;
  • Direito a exercer outra profissão: o vereador pode ser médico, engenheiro, professor, policial, qualquer profissão, desde que isso não prejudique suas atividades como vereador;
  • Receber de 25 a 75% do salário de um deputado estadual como salário.

O Gestor Municipal

O prefeito é o chefe do Poder Executivo de um município. Isso significa que está nas mãos dele o poder de administrar a cidade, de cobrar impostos (IPTU – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana e Imposto Sobre Serviços – ISS), e taxas que, por sua vez, devem custear obras, serviços e políticas. Ele deve cumprir as leis aprovadas pela Câmara Municipal, submeter contas à fiscalização e elaborar um orçamento do ano, que será aprovado ou alterado pela Câmara. O gestor municipal conta com a ajuda de funcionários públicos, secretários e assessores. 

Como administrar a cidade?

Para colocar em prática seus planos, o prefeito, além dos impostos municipais, também conta dinheiro do governo federal e estadual. Por exemplo, 22,5% dos recursos arrecadados pela União com Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) são repassados aos municípios; 50% do imposto sobre propriedade rural situada no território do município; e 25% do ICMS, imposto estadual, também vai para as prefeituras. Em muitos casos, os recursos que chegam às prefeituras possuem destinos obrigatórios, como para a saúde e a educação. Essas e outras verbas a que municípios têm direito podem ser encontradas nos artigos 158 e 159 da Constituição.

Saúde, Educação e Transporte

As prefeituras têm a missão de cuidar dos atendimentos básicos do Sistema Único de Saúde, ou seja, UPAs, Clínicas da Família e postos de saúde. Para isso, precisam destinar pelo menos 15% do dinheiro que recebem, mais as verbas  repassadas pelo Governo Federal e Estadual. Laboratórios e hemocentros também são controlados pelo município.

Os municípios cuidam da Educação Infantil (creches e pré-escolas) e do Ensino Fundamental. (1° ao 9 °anos) e devem gastar, pelo menos, 25% de sua receita em Educação. A prefeitura também cuida do sistema de transporte urbano da cidade. Esses serviços são geridos por empresas que conseguem esse direito por meio de concessões. Entretanto o poder público municipal deve fiscalizar a qualidade desses serviços e, em casos extremos, romper o contrato com empresas que não ofereçam um serviço satisfatório.

E, por fim, o prefeito deve ser cobrado por ações na cidade, como: elaboração de um plano municipal de habitação; execução de ações relacionadas ao parcelamento; uso e ocupação do solo; demarcação de terras; programas de construção e melhoria das condições habitacionais e licenciamento urbanístico e ambiental; e regularização da habitação de interesse social em áreas de preservação permanente.

Serviços mantidos pelas prefeituras

  • Administrar serviços públicos locais;
  • Limpeza e iluminação públicas;
  • Coleta de lixo;
  • Conserto de vias;
  • Sistema de transporte urbano;
  • Ambulâncias e serviços de saúde municipais;
  • Educação infantil (creches, pré-escolas) e ensino fundamental;
  • Formação da Guarda Municipal.

Requisitos

Para se candidatar a vereador ou prefeito, é necessário ter o domicílio eleitoral na cidade em que pretende concorrer até um ano antes da eleição, estar filiado a um partido político, ser naturalizado brasileiro, alfabetizado, estar em dia com a Justiça Eleitoral, ser maior de 18 anos e, para homem, ter certificado de reservista.

O site do TSE traz informações completas sobre doadores, gastos de campanha e empresas que prestam serviços a candidatos a prefeito de todo o Brasil. Se você quiser mais detalhes sobre os doadores, pesquise os nomes no Google, inclusive, para levantar se são vinculados a alguma empresa ou instituição. É o tipo de informação que pode ser importante na hora de definir entre candidato A ou B. Todos queremos representantes honestos, e é sempre bom saber sobre as propostas que fogem à alçada do candidato.

Favela também é lugar de adoção

Nem sempre esse ato de amor é realizado de uma forma tradicional

Maré de Notícias #118 – novembro de 2020

Por Hélio Euclides

Énois | Laboratório de Jornalismo – Por um jornalismo diverso e  representativo

Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território.
Edição: Elena Wesley

“Receber alguém como filho mediante ato jurídico”. Dessa forma é definida a palavra adoção no dicionário Michaelis. Para muitos, que desejam formar uma família ou simplesmente ampliá-la, é mais do que isso. A relação afetiva com uma criança pode surgir de forma inusitada, por caminhos difíceis de explicar, mas que aproximam parentes, vizinhos ou até desconhecidos em um ato de amor. É dessa forma que o processo tem acontecido no Conjunto de Favelas da Maré, onde o trâmite judicial dá lugar a meios informais. O acolhimento sem documentação, contudo, traz outros desafios às famílias que, diante das dificuldades de acesso a serviços básicos, precisam encontrar estratégias para garantir os direitos dos adotados. 

Helena Edir comprova que a prática é antiga na Maré. Em 1984, a moradora da Nova Holanda adotou um bebê de três anos, após o falecimento da mãe biológica. “Eu era madrinha de batismo e não tinha outra pessoa próxima para cuidar da criança”, lembra. Helena chegou a procurar assistência jurídica para dar entrada no processo, mas o advogado aconselhou a aguardar o menino completar 12 anos. O profissional acreditava que o status de solteira, a baixa renda como auxiliar de tesouraria e a residência na favela poderiam dificultar a obtenção da guarda. “Só depois dei entrada. Anexei toda a trajetória da vida dele comigo desde a creche até o ensino fundamental. Ele foi chamado para uma audiência, confirmou tudo que eu tinha informado, e o juiz me deu a guarda definitiva”.

Em alguns casos, a família biológica e a adotante se unem pelo que acreditam ser o melhor para a criança. Foi o que aconteceu na chegada de Estevão à família Santos. Embora já tivessem Larissa e Isaque, Jaqueline e Rogério Ferreira desejavam cumprir um sonho de infância: ter um filho do coração. E a oportunidade surgiu durante um plantão de Jaqueline numa maternidade, ao descobrir que a paciente não poderia levar o recém-nascido para casa. A mãe havia perdido a guarda dos três filhos mais velhos, e a avó, que já era a responsável legal dos meninos, informou não ter condições de cuidar do bebê. “Nós conversamos com a família do Estevão, e eles disseram que seria melhor que ele ficasse conosco, porque se fosse para a adoção formal, perderiam o vínculo totalmente. Tentamos por meios legais, mas a juíza não autorizou por não termos laço sanguíneo. Só depois dele ficar 20 dias no abrigo que conseguimos convencer a avó a pegar a guarda, para que ele ficasse com a gente. Pretendo regularizar, mas tenho medo de iniciar o processo e eles tirarem o meu menino, que retornaria ao abrigo”, conta a moradora da Vila dos Pinheiros.

Mesmo já tendo dois filhos biológicos, Jaqueline Ferreira tinha a vontade de adotar, que se realizou com a chegada de Estevão – Foto: Matheus Affonso

Conselho tutelar e Juizado recomendam a adoção tradicional

O receio dos adotantes não é em vão. A conselheira tutelar Maria Elisângela da Silva Viana, que está em seu segundo mandato na região da Maré, explica que geralmente o Juizado da Infância e da Adolescência dá parecer favorável à família adotante, mas que a criança pode passar um pequeno período em um abrigo. As decisões buscam se basear no Estatuto da Criança e do Adolescente que, no Artigo 19, estabelece que “é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. 

Embora não tenha números oficiais sobre os acolhimentos informais, Elisângela conta que são muitos os casos de adoção “à brasileira” na Maré. “Nesses casos a mãe indica um vizinho para cuidar, e anos depois as duas famílias procuram o conselho para regularizar a situação. São histórias mirabolantes. Às vezes a avó não tem a guarda, mas assume o papel de mãe, ou o pai adotivo registra o bebê com a mãe natural e só depois de anos pede para modificar a certidão de nascimento. São guardiões de fato, mas sem registro”. 

A conselheira acrescenta que desconhece casos em que a criança tenha sido removida da convivência com a família substituta depois de anos para encaminhamento a abrigo, porém ressalta a importância do trâmite judicial, que prevê acompanhamento familiar com psicólogos, assistentes sociais e oficinas sobre acolhimento. “As pessoas acham o processo legal burocrático, mas essa adoção improvisada é complicada. Não tem uma certidão no nome dos pais que criam, fica difícil o atendimento médico e a escola. Só depois da criança grande é que tentam sensibilizar o juiz. Na prática, o acolhimento no abrigo é a última das instâncias e em casos específicos em lei. O que é feito na Maré é uma guarda de fato pré-estabelecida, sem que a criança ou o adolescente estejam em risco”, conclui.

Para Alice*, construir uma família vai além de ter um laço sanguíneo com os seus membros – Foto: Matheus Affonso

“Adoção-pronta” compõe maioria dos casos tramitados na Vara de Infância

A psicóloga Lygia Santa Maria Ayres publicou, em 2011, o artigo “Adoção-Pronta”, termo que define a “prática de entrega e colocação familiar, ainda que não disposta juridicamente”. O estudo da pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) apontou que a adoção “à brasileira” tão comum na Maré representava a forma mais usual de legitimação de inserção de uma criança em uma família substituta, sendo 95% dos 42 casos de institucionalização de adoção tramitados no Juizado. “Desconheço estudo com enfoque na favela. Mas esse jeito não oficial tem sido a maior forma de adoção de crianças”, comenta Lygia.

Alice Oliveira (*) aguarda o fim da pandemia para regularizar a adoção de seu segundo filho, após frustrações por não chegar ao fim em tentativas de adoções nos trâmites legais. “Meu marido e eu esbarramos em impossibilidades no meio do processo, como doença e desemprego. Sabemos que pulamos fila e que vamos passar por um juiz duro, mas fizemos por amor”. Enquanto a situação ainda segue na informalidade, a avó biológica de Everton (*), que cria seus dois irmãos, vai ao cartório sempre que autorizações legais são necessárias. A família faz questão que o menino de seis anos de idade mantenha o convívio com os demais familiares.

O cenário foi diferente para a primeira experiência de adoção de Alice. Em 2000, a moradora da Nova Holanda chorava por não poder engravidar, quando recebeu o telefonema de uma amiga sobre uma mãe de outro município que desejava dar seu filho devido a problemas familiares. “Elias(*) era uma criança que entraria na fila de adoção, mas dificilmente seria adotado, pois tinha suspeita de HIV, má formação da traqueia e sífilis congênita. Deixei meu trabalho para cuidar dele, que ficou muito tempo internado. No ano seguinte oficializamos a adoção”, conta. Elias, no entanto, não se sente adotado. “Até os meus amigos não acreditam. Não me sinto diferente, somos uma família”.

BOX: Como adotar?

Qualquer pessoa maior de 21 anos pode se dirigir à 2ª Vara da Infância da Juventude e do Idoso que fica  no Sambódromo do Rio de segunda a sexta das 13h às 19h. (Praça Onze de Junho,  403,  21- 2503-6300)

Para entrada no processo de habilitação tem que participar de reunião que acontece toda última sexta-feira do mês, na qual a equipe explica quais os procedimentos necessários para habilitação dos pretendentes e quais as  documentações exigidas para iniciar o processo. Depois, as famílias são encaminhadas para grupos de apoio à adoção e avaliação com equipe técnica. Mais informações no site: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/inf-juv-idoso/cap-vara-inf-juv-idoso/adocao/procedimentos?inheritRedirect=true 

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* Alice Oliveira, Everton e Elias são nomes fictícios utilizados na reportagem com o objetivo de preservar a identidade das fontes.


O nosso dia irá chegar

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Por Fillipe dos Anjos em 04/11/2020, às 14h

SOBRE O AUTOR: Fillipe dos Anjos é formado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi Conselheiro Estadual de Saúde e atualmente exerce o cargo de Secretário Geral das Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro – FAFERJ

Falar de favela é sempre complicado… Principalmente no dia de hoje, 04 de novembro, dia estadual da favela. Envolve um turbilhão de sentimentos e emoções que desafiam a razão que qualquer texto escrito possa ter. Há quem diga que favela não é lugar de morar; tem gente que só quer andar tranquilamente na favela onde nasceu; e outros falam que você pode sair da favela, mas a favela não sai de você. Todos têm sua razão e isso mostra que nesses territórios a emoção fala mais alto. Mesmo com todas as nossas contradições uma coisa é unanimidade: a Favela é território da resistência. 

Historicamente, as favelas nascem no final do século XIX quando os negros e negras escravizadas conquistam sua liberdade após séculos de luta. Nesse contexto, o Estado brasileiro, que deveria adotar uma política de inclusão dessa população, recém-liberta e sem moradia, adota uma política genocida chamada eugenia, que em uma de suas faces, consiste em abandonar os negros à própria sorte ao passo que estimula a chegada de imigrantes europeus ao Brasil. O objetivo dessa barbárie era o “branqueamento” da população brasileira e a extinção da raça negra do Brasil, vista naquele momento como inferior intelectualmente.

Da noite para o dia, os negros e negras que haviam conquistado sua liberdade a custa de muito sangue, se viram abandonados sem nenhuma política pública de emprego, educação ou moradia digna. A saída encontrada por esses homens e mulheres foi ocupar as encostas dos morros onde ninguém imaginaria que pessoas poderiam morar. Nasce a favela sob o signo da resistência, da coragem e da luta pelo direito fundamental à vida.

Ao longo da nossa história, a necessidade de lutar por direitos fez a favela se organizar em diversos movimentos. Entre esses movimentos, a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, FAFERJ, surge em 1963 como forma de luta por direitos a essa população e mais adiante como resistência à ditadura militar, implantada no Brasil após um golpe civil militar em 1964. O regime militar representou um período de terror paras comunidades, onde toda espécie de violação aos direitos humanos era permitida. Os incêndios criminosos, remoções violentas e atuação de esquadrões da morte marcaram esse período de terrível. Também houve resistência à ditadura nas favelas, embora as execuções e violência tenham abafado essa história de luta. Nesse período, a FAFERJ caiu na clandestinidade e teve seus diretores perseguidos pela ditadura militar. Vale a pena ressaltar que a atuação das milícias de hoje está diretamente ligada à atuação desses esquadrões da morte durante o regime militar. 

É curioso perceber como muitas favelas se formaram em decorrência a remoções e incêndios criminosos em outras favelas. A exemplo disso, temos a formação da Nova Holanda em 1962, uma das 16 favelas que compõem a Maré, a partir da demolição da favela do Esqueleto, no Maracanã, onde hoje é a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e da remoção de pessoas de favelas como Morro da Formiga e Morro do Querosene. Outro caso foram os incêndios nas favelas da Catacumba (1967) e Praia do Pinto (1969), Lagoa e Leblon, bairros que hoje estão entre os três metros quadrados mais caros da cidade e que já passavam por processo de especulação imobiliária. Na época, os moradores da Catacumba foram removidos para a Barra da Tijuca, formando a Cidade de Deus, e os moradores da Praia do Pinto foram para Cordovil, onde hoje fica a Cidade Alta.

Justamente no período dos incêndios, especificamente de 1968 a 1973, foi realizado o maior programa de remoções de favelas da cidade, por meio da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana (CHISAM), autarquia do governo federal em parceria com o Governo da Guanabara. Mais de 175 mil moradores de 62 favelas foram removidos – de forma provisória ou definitiva – para 35.517 conjuntos habitacionais ou Centros de Habitações Provisórios (CHP), localizados em maioria nas zonas Norte e Oeste. Antes de se tornar moradia fixa, a Nova Holanda era um CHP.

O movimento de favelas pós-ditadura

A redemocratização do Brasil em 1985 trouxe um sopro de esperança para o povo brasileiro e, consequentemente, para os movimentos de favela, que puderam voltar as suas atividades agora em uma nova democracia. A Constituição Cidadã de 1988 em seu Capítulo II falava dos direitos à moradia digna, educação, saúde, emprego. É nesse período anterior à escrita da constituição que a FAFERJ ressurge junto ao movimento estudantil, movimentos de mulheres, movimento sindical, movimento negro… A principal luta dos movimentos de favela era garantir à risca a nova constituição federal e fazer valer os direitos sociais que foram conquistados na luta por democracia. 

Da redemocratização até os momentos atuais podemos perceber que a desigualdade social e democracia são como água e óleo: não se misturam. Defenderemos sempre a democracia como valor fundamental, mas na favela existe a democracia real? A mesma democracia que vigora no asfalto vigora na favela? A resposta é não, pois a desigualdade social ainda é a pedra fundamental da sociedade brasileira. Enquanto houver desigualdade, nunca haverá democracia.

As elites nacionais lucram com a miséria do nosso povo e a escalada de violência gera um capital político enorme para essas novas forças de extrema direita que surgiram das urnas nas últimas eleições. Essa nova extrema direita usa um discurso religioso radical e coloca a favela como lugar de violência e pobreza. Vale ressaltar que as favelas não declararam guerra a ninguém. Não existe uma guerra, esse discurso é muito equivocado. Nossos territórios são ocupados por gente trabalhadora e de bem que sustenta esse país pagando uma das maiores cargas tributárias do mundo. As favelas geram milhares de emprego e representam a força de trabalho que move a cidade e o país. As favelas são pólos de arte e cultura e esporte abandonados pelo Estado. 

Abandono que sentimos na pele com a chegada do novo coronavírus ao Brasil. Vale deixar registrado que durante essa pandemia mortal houve diversas operações policias causando morte nas comunidades. Isso representa o terrorismo de Estado ao qual somos submetidos. Não tivemos acesso a testes e a tratamento de saúde adequado contra o novo coronavírus. 

Essa pandemia também revelou heróis e heroínas do povo brasileiro. Milhares de lideranças comunitárias abandonaram seus lares e suas famílias para lutar contra a pandemia distribuindo de cestas básicas, kits de higiene formando redes de solidariedade. Centenas de lideranças comunitárias perderam as vidas em todo Brasil. A esses homens, mulheres e seus familiares seremos eternamente gratos e prestamos nossas sinceras homenagens. 

Esperamos que um dia essas autoridades que nos abandonaram e que agiram deliberadamente nos desvios de dinheiro da saúde possam ser julgadas e condenadas por seus crimes contra o povo brasileiro e a humanidade. 

O bagulho é doido né? Eu não falei que a história da favela é de resistência? Mas essa história não acabou ainda. Nesse dia 04 de novembro, dia estadual da favela, a FAFERJ segue na luta, eu sigo na luta e sei que você também segue. Somos a maioria da população. Individualmente fazemos nossa parte, mas juntos faremos a diferença. Eu sou porque nós somos. Marielle presente!

Você sabia?

Há pelo menos 10 anos comemora-se no dia 04 de novembro o Dia da Favela, como forma de relembrar o histórico de luta, resistência e sociabilidade das favelas, mas apenas em 2019 que a data passou a fazer parte do calendário estadual, graças à Lei Ordinária N° 8489/2019.

Alô, dona de casa! O carro de som chegou!

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Enquanto muitos apostam na internet, os tradicionais carros de som  continuam fazendo sucesso pelas ruas da Maré

Por Thaís Cavalcante em 04/11/2020, às 12h

Basta circular pelas ruas da favela para ouvir um carro de som tocando aquele forró, seguido de um anúncio do show que vai acontecer no final de semana; ou até um enfeitado para passar aquela telemensagem romântica. Quem sabe até o carro do ovo com a promoção de 30 ovos por 10 reais. A tradição dos anos 90 veio para ficar porque funciona. Um trabalho intenso que envolve a circulação do carro por horas a fio com um som preso no veículo. Os pneus aguentam quebra-molas, ruas estreitas, buracos e lombadas altas. Já os moradores, se acostumaram com a rotina de comunicados e comerciais sonoros nas ruas principais. 

Quem também aposta nos carros de som como forma de propaganda eficiente são os candidatos da região e com as eleições chegando, não é difícil encontrar os jingles eleitorais tocando repetidamente pelas ruas, becos e vielas. Muitos escolhem musicalizar os números da candidatura, outros preferem as populares batidas de funk e em paródias. O importante é alcançar o maior número de pessoas e essa missão não é tão difícil com esse mar de gente andando pelas ruas. Com as famosas propagandas volantes, as favelas, o subúrbio e o interior tem a garantia de que sua mensagem está chegando no público certo. Alô, dona de casa!

Para todos os que trabalham anunciando, divertindo e emocionando seus ouvintes, toda a informação divulgada vai ter alguma utilidade. Não à toa, o carro de som é o segundo meio de comunicação mais lembrado pelos consumidores quando o assunto é obter informações sobre ofertas e promoções, de acordo com pesquisa da Federação de Comércios de Bens, Serviços e Turismo (Fecomércio) feita em 2015.

Edvaldo Farias, morador do Parque União, tem 30 anos e quase metade de sua vida foi dedicada às gravações e divulgações de propaganda para carro de som e rádio de poste, no Parque União e Nova Holanda. Ele divide o negócio com seu irmão e seu pai. “Me espelhando no meu pai eu pude aprender essa profissão tão maravilhosa e hoje eu consigo viver de tudo aquilo que ele me ensinou”, diz.

Sobre rotina de trabalho, ele garante que não existe. Ainda que tenham anúncios fixos, outros são rotativos, como propagandas de eventos, igrejas e lojas. Nesta atividade, o que se vende é o tempo de veiculação da propaganda. Além de toda a procura para anunciar no veículo sonoro ou na rádio de poste, quem oferece o serviço também precisa entender a necessidade do cliente, o tempo da propaganda, qualidade e até o volume do som – que pode aproximar, mas também afastar os ouvintes.

Acessibilidade em quatro rodas

A propaganda em carro de som é muito popular também por sua acessibilidade. Na Maré, por exemplo, nem todo mundo sabe ler. Isso equivale a 6% dos moradores, em sua maioria pessoas com mais de 65 anos, que enfrentaram no passado grandes dificuldades de letramento e condições precárias na educação básica. Edvaldo admite essa realidade e se orgulha por sua atuação neste contexto.

 “Infelizmente, nós ainda temos um grande público que não tem facilidade e acesso à internet e que não sabe ler ou escrever direito. A propaganda sonora vem com um formato que facilita a informação. Como o carro de som é auditivo, ele puxa a atenção para ele, o ouvinte pode estar conversando ou trabalhando, mas quando o carro passa as pessoas acabam ouvindo, então ele alcança um público grande”, lembrou Edvaldo. O computador está em 42% das residências mareenses e o acesso à internet apenas em 36%, segundo o Censo da  Maré 2019. Ele acredita que o carro de som, se comparado com a internet, é tão importante quanto, por isso esses meios de comunicação não devem ser considerados inimigos. Afinal, os dois tem o mesmo objetivo: divulgar e fazer a propaganda, mas cada um do seu jeito. “Um nós alcançamos o público pela audição. A internet já alcança visualmente”, avalia.

Quem também aposta nesse meio tradicional é Alexandre Campos, mais conhecido nas festas da favela como DJ Mastter. Ele também atua em outras frentes: seja como produtor musical ou radialista. Ele grava comerciais, anúncios de comércios locais e rádio poste. Conhece bem as ofertas que conquistam e sabe como o resultado de um trabalho impacta na vida dos clientes que contratam os seus serviços. 

Sua carreira começou nos anos 80, quando veio de São Paulo para a Maré. “Eu comecei fazendo festas na casa de um amigo meu, ouvindo discos de soul, rádio AM e FM, programas de charme e funk. Depois comecei a tocar nas festas da Maré e até fora do Rio”, conta ele, que também enxerga potencial e experimenta o trabalho de carro de som fora das favelas.

Comunicando em todos os momentos

Durante a pandemia, todo mundo teve o trabalho impactado. Para os comerciantes que precisaram fechar seus estabelecimentos para diminuir o contágio do coronavírus, por exemplo, a renda diminuiu e a alternativa foi contratar menos anúncios ou até suspender temporariamente os serviços de propaganda volante. Com a reabertura, o mercado de divulgação parece se aquecer, assim como o comércio local da Maré, que segue funcionando normalmente.

Além da utilidade comercial, os carros de som foram importantes meios de comunicação aliados na prevenção da covid-19 na Maré. Os projetos e coletivos atuantes na linha de frente utilizaram, além de faixas, panfletos e comunicados nas redes sociais, os carros de som. Um contato direto com os moradores através de mensagens de alerta e dicas de prevenção, ensinando como lavar as mãos e trazendo a importância de usar a máscara de proteção para evitar a contaminação da doença.

Além dos materiais para mídias sociais e cartazes espalhados por favelas do Rio, a campanha Se liga no Corona! também teve uma ação sonora. Nos carros de som que circularam pela Maré, o cantor Nego do Borel dava algumas recomendações sobre o que é o novo coronavírus e os cuidados de higiene que as pessoas precisam ter ao sair nas ruas. A campanha é resultado de uma articulação entre a Fiocruz, Redes da Maré, Conselho Comunitário de Manguinhos, Conselho Gestor Intersetorial (CGI-Teias Manguinhos), Comissão de Agentes Comunitários de Saúde de Manguinhos (Comacs), Coletivo Favelas Contra o Coronavírus, Jornal Fala Manguinhos! e o Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz, Asfoc-SN.

Confira um dos áudios que circulou em carros de som durante a pandemia, com voz de Karina Donaria, comunicadora e moradora da Maré: http://drive.google.com/file/d/19zxwdXvn52sxfY82dFmQQzNPjaERmfoj/view?usp=sharing

Miss Beleza T Brasil sofre racismo após coroação

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Cria do Jardim Catarina, Eloá Rodrigues sofreu ataques racistas na página oficial do concurso

Por Leonardo Nogueira em 03/11/2020 às 17h

“A gente só vai conseguir viver em uma sociedade melhor quando as pessoas conseguirem naturalizar os nosso corpos e as nossas vivências”, destacou Eloá Rodrigues (27), a Miss Beleza Trans Brasil 2020, que foi consagrada com o título no dia 24 de outubro. Entretanto, em um país que tem em sua estrutura social e econômica o racismo como algo naturalizado, a ocupação de pessoas negras em espaços de poder acaba causando desconforto em pessoas preconceituosas. Após ser eleita, Eloá teve de lidar com uma série de comentários racistas na postagem do Instagram do concurso.

“Um top3 que nos representa! Travesti, Transexual, Preta, preparadas! Buscávamos o conjunto, a essência, uma miss completa. E encontramos”, destaca a publicação do perfil oficial do concurso. Na foto estão as três primeiras colocadas do concurso, que junto à Eloá foram Luna Ventura, representante de Minas Gerais, e Raquel Eshilley, representante do Pará. Entre os comentários, muitos criticaram a escolha e questionaram a beleza de Eloá, tecendo comentários racistas. 

Além dos seguidores da página oficial, um dos comentários que mais chamou a atenção foi o de Mariane Cordon Cáceres, representante do estado do Mato Grosso do Sul no concurso. Em vídeo no seu perfil no dia seguinte ao concurso, ela demonstrou insatisfação com a coroação de Eloá. “Representei lindamente o Estado do Mato Grosso do Sul, peguei um ‘Top 5’, que era minha intenção, mas eu sei que, de acordo com a minha desenvoltura e o meu resultado, eu merecia ir muito além e não deveria ter perdido ‘para isso’”. Após a repercussão da publicação, a organização do evento foi notificada e Mariane perdeu o título de Miss pela colocação de cunho racista. Como resposta, a representante do Mato Grosso do Sul alegou que o que falou não foi referente à cor ou ao gênero de Eloá, mas ao seu desempenho, que julgou ser fraco.

Eloá Rodrigues disse não ter entrado em contato com a maioria dos comentários por não ter tido tempo de responder as mensagens que recebeu nas redes sociais. Para ela, nesse momento de alegria, ela prefere curtir a visibilidade para mostrar o quão necessário ainda é debater as pautas que ela defende. Mas a equipe de produção da Miss ficou atenta às redes e está cuidando para tomar as medidas judiciais cabíveis.

Comentários de cunho racista nas redes sociais têm sido frequentes em concursos de beleza. Em 2017, a piauiense Monalysa Alcântara foi escolhida Miss Brasil daquele ano e foi duramente atacada no Twitter, onde pessoas que acompanhavam o concurso alegaram que ela ganhou apenas por ter cabelo crespo ou por entrar no concurso por cotas. Monalysa foi a terceira mulher negra eleita Miss Brasil desde a primeira edição do concurso, em 1954.

Tanto no caso de Eloá quanto no de Monalysa, os comentários podem ser enquadrados como injúria racial, de acordo com o Código Penal Brasileiro. A lei diz que ofender a dignidade de outra pessoa devido a sua raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência é  crime com pena de reclusão de um a três anos. 

A população preta é a maior vítima de homicídios do país. No ano de 2017, mais de 70% das pessoas assassinadas no Brasil eram pretas ou pardas, segundo o Atlas da Violência, estudo produzido por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Enquanto a taxa de homicídios para brancos diminui, a mesma taxa sobe constantemente para a população preta. 

Sobre Eloá Rodrigues

Legenda: Faixa e coroa da Miss Eloá – Reprodução das redes sociais

Cria do bairro de Jardim Catarina, em São Gonçalo, Eloá foi campeã duas vezes consecutivas da competição estadual no Rio, nos anos de 2019 e 2020. Antes de ser miss, ela é uma mulher transgênero, ativista pelos direitos da população preta e LGBTQI+ e presidenta do Conselho LGBTQI+ de Niterói. 

Ingressou na Universidade Federal Fluminense para cursar Ciências Sociais, em 2017, através do Prepara Nem – um pré-vestibular social para pessoas trans, travestis, em situação de vulnerabilidade social e preconceito de gênero. “O Prepara Nem foi o primeiro grande divisor de águas na minha vida, tendo em vista que lá a gente não se prepara só para entrar na universidade, mas também para a militância, para a vida, para a vida em comunidade. Em especial, em comunidades trans, travestis e LGBTI”, observou. 

A próxima parada da Miss Beleza Trans Brasil 2020 será no continente asiático. Eloá irá representar o país no Miss Internacional Queen, que acontecerá na Tailândia. “Ser uma mulher preta e ter a possibilidade de ir para a Tailândia representar o meu país é de suma importância, tendo em vista que um dos meus maiores sonhos é ter a minha voz ouvida e a minha militância reconhecida”, comentou Eloá. 

Uma minoria dentro de outra minoria

O cenário atual brasileiro não só coloca em risco as vidas da comunidade trans, mas de todos os grupos que não fazem parte da elite hegemônica brasileira. Nos oito primeiros meses de 2020, pelo menos 129 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. Um aumento de 70% em relação aos mesmos meses do ano passado (2019). Até o mês de agosto, todas as pessoas trans assassinadas eram do gênero feminino, sejam travestis ou mulheres trans, tendo como tendência serem maioria pessoas negras. Os dados estão no último boletim da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado em setembro de 2020. 

Eloá Rodrigues carrega em seu corpo a fala de uma mulher trans, preta e periférica e sabe da importância e responsabilidade do título. “Eu usar dos acessos que eu já tenho, do título de Miss, de articulações políticas que eu tenho, para conseguir naturalizar a nossa existência, para conseguir uma vivência melhor, não só para mim, mas para outras pessoas trans, é fundamental. Usar desse título para isso, é uma das minhas maiores funções e é o que eu estou empenhada em fazer.”, complementa.