Tribunal militar absolve cabo que deixou morador da Maré paraplégico
Hélio Euclides, Thathiana Gurgel e Dani Moura
“Acordo
e durmo pensando no que aconteceu naquele dia, pensando que eu tô vivo
hoje e que, em fevereiro, poderiam ser cinco anos de luto, ao invés de cinco
anos de luta.” Vitor Santiago Borges teve sua vida transformada pelo
Estado brasileiro, quando estava com 29 anos, no conjunto de favelas da Maré,
Zona Norte do Rio, onde nasceu e cresceu.
O
caso aconteceu durante a ocupação militar quando Vitor voltava para casa com
quatro amigos, após a comemoração de uma partida de futebol. O carro em que ele
estava foi alvejado pelos militares. Cinco anos depois da noite do crime, o
cabo do Exército Diego Neitzke, que atirou contra Vitor
deixando-o paraplégico e com uma perna amputada, foi absolvido por unanimidade.
Legítima defesa imaginária
Inicialmente,
o Ministério Público Militar denunciou o cabo por lesão corporal gravíssima
contra Vitor e lesão corporal leve contra seus amigos que estavam no carro, mas
depois sugeriu suavizar a pena. O promotor militar alegou que o soldado agiu em
“legítima defesa imaginária” e que ele deveria ser absolvido da acusação de
lesão corporal gravíssima. O conceito faz parte das propostas de lei enviadas
pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, com o objetivo de aumentar as
circunstâncias em que militares podem matar sem serem punidos, mesmo nos casos
que tramitam na Justiça comum.
Vitor
conta que não sabe o que é legítima defesa imaginária, mas que após a noite do
crime, nada do que aconteceu em sua vida é imaginário: “Eu vivo na carne, eu
vivo na pele, tudo o que aconteceu naquele dia, naquele 12 de fevereiro de
2015. Se esse cabo for absolvido, os casos daqui para frente podem até piorar.
Isso dá brecha para militar entrar aqui, polícia entrar aqui e fazer o que
quiser, a hora que quiser e se esconder atrás da lei.”
No
caso de Vitor, o cabo agiu amparado na chamada “excludente de ilicitude”, que
não configura crime uma ação, mesmo que fatal. Mesmo sem ter sido aprovado no
Congresso ainda, o projeto já é colocado em prática: desde 2010, nenhum militar
foi condenado por morte ou lesão em operações de Garantia da Lei e da Ordem
(GLOs). Desde o final de 2017, os membros das Forças Armadas que cometeram
crimes passaram a ser julgados pela Justiça Militar. E foi nela que o cabo, que
deixou Vitor paraplégico, foi absolvido por unanimidade.
A decisão — tomada em conjunto por quatro
oficiais militares e pela juíza federal Marilena Bittencourt, da 4ª Auditoria
do Fórum de Justiça Militar do Rio — seguiu posicionamento do Ministério
Público Militar (MPM), que havia pedido a absolvição do cabo. O promotor Otávio
Bravo defendeu a inocência de Neitzke, com base na teoria da legítima
defesa putativa, ou seja, o militar atirou, porque imaginou que estava sob
risco.
Aos 34 anos, Vitor afirma que não foi um
acidente e que o crime se enquadra em tentativa de homicídio: “Eu não estava na
hora errada e no lugar errado. Simplesmente abriram fogo contra o carro e é um
absurdo uma pessoa dessas ficar livre, enquanto eu tô preso nas minhas
limitações para o resto da vida. No
final das contas, eu fui alvejado e tive a vida modificada completamente por
quem deveria ter trazido segurança pra cá, por quem um dia eu confiei, mas
parece que Segurança Pública e Inteligência não cabem na mesma frase…”,
declarou Vitor, que ficou 98 dias internado no hospital e teve uma perna
amputada, além de estar paraplégico.
Os
militares alegaram que o carro em que Vitor estava não parou e não obedeceu aos
sinais de alerta dos militares. O motorista, amigo de Vitor, foi denunciado por
desobediência. “Os militares dizem que
estavam à vista, mas se encontravam abrigados. Os civis vinham de jogo, sem
armas, e já tinham parado na entrada da favela. Não viram o sinal dos militares
e podiam estar distraídos. Também não acredito que o carro iria para o lado
esquerdo, para cima da tropa”, comenta o promotor.
O
promotor ainda citou que o cabo portava um fuzil 762, no módulo automático, que
dispara 10 tiros por segundo. “Nem sabemos, ao certo, quantos tiros foram
disparados, pois não teve perícia no local”, explica. Ele referiu que o acusado
deu a justificativa de legítima defesa, mas que não houve agressão eminente. “O
cabo não deve ser punido, pois foi legítima defesa imaginária. O militar
cometeu um erro, prova disso é o Vitor quem mostra. Tomei a decisão de pedir a
absolvição, o que é uma injustiça para Vitor. A minha posição você, Vitor, vai
entender, pode não aceitar. Peço a absolvição pela minha consciência de que foi
uma política de segurança incompetente”, expõe. Para Otávio, os militares não
tiveram treinamento policial, já que soldado é treinado para a guerra.
Cláudio
José, advogado de defesa do cabo, também alegou legítima defesa: “Quem
luta pela Segurança não pode ser acusado de crime”, disse. Ele acrescentou que
o Estado reconhece a falha operacional, com uma indenização, que o pedido de
perdão vai vir no campo civil. Por fim, Marilena Bittencourt, juíza da Justiça
Federal, disse não existir prova suficiente para a condenação, lamentou a
tragédia ocorrida e afirmou que nem sempre a Justiça atinge a todos.
Se perde a batalha, mas não a guerra
Vitor
Santiago, que acompanhou na primeira fila o julgamento, estava contrariado com
o resultado. “Foi corporativismo militar, passaram a mão na cabeça. Eu que
estou preso, quando desejo subir um degrau ou na dificuldade de tomar um
simples banho. A Justiça é para os poderosos. O que eu sei é que não estava no lugar
errado, nem na hora errada, mas perdi minha perna”, comenta.
Irone
Santiago, sua mãe, também estava presente e mencionou que a tragédia já
resultou em dois aneurismas cerebrais. “Tinha de ser julgado na Justiça comum.
O resultado foi: quem pagou foi o meu filho, que ficou paraplégico”, resume.
Vitor
segue aguardando a sentença sobre sua ação indenizatória e sua defesa pede à
União casa e carro adaptados; compensação por danos morais e estéticos; a
continuidade da pensão por invalidez e do fornecimento de materiais médicos,
que ele já recebe em tutela de emergência.
Mas para ele, a indenização não é suficiente. “Queria a condenação, para
servir de exemplo para outros casos. O cabo fez parte do fato, não foi um erro
mecânico. Volto chateado e com o sentimento de ausência de uma Justiça justa
para todos”, avalia. Vitor é pai de uma menina de 7 anos.
Vitor
conheceu a Redes da Maré, por meio do projeto Maré de Direitos, que presta
acolhimento sociojurídico para os moradores vítimas de violações de direitos e
busca encaminhar e acompanhar essas pessoas no acesso à Justiça e a outros
direitos. No caso de Vitor, a Redes acompanha desde o início, dando suporte,
acolhimento sociojurídico e articulando com a rede de saúde para que seu
processo de reabilitação seja feito.
Relembre o caso
Na noite do dia 12 de fevereiro de
2015, Vitor tinha acabado de assistir ao jogo do Flamengo na Vila do João com
mais quatro amigos e estava voltando para casa, de carro, na Vila do Pinheiro,
também na Maré, quando o veículo foi alvejado por seis tiros de fuzil pelo
Exército. Aos 29 anos, ele foi atingido por dois tiros: um na coluna,
deixando-o paraplégico, e o outro atingiu a perna direita e saiu na esquerda,
resultando em sua amputação e mais 98 dias de internação no hospital, 10 dias
em coma, internações em CTIs, fisioterapia respiratória, motora, hemodiálise,
transfusão de sangue e cirurgia no pulmão.
O carro de Vitor foi fuzilado durante a
ocupação das Forças Armadas na Maré, em 2015. As tropas ocuparam o conjunto de
favelas de abril de 2014 a junho de 2015. Por dia, foram gastos 1,2 milhão de
reais, totalizando quase R$600 milhões em 15 meses. Segundo pesquisa da Redes
da Maré sobre o período de ocupação do Exército, a sensação de insegurança
continuou para 69,2% dos moradores entrevistados.