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Novas regras para o churrasquinho de rua

Decreto cria regras para o funcionamento de churrasquinhos  e garantir  algumas   normas sanitárias. Mas tem  comerciante insatisfeito

Maré de Notícias #110 – março de 2020

Flávia Veloso

Assinado em janeiro de 2020 pelo atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella, o Decreto nº 47084 estabelece normas regulatórias para a venda de churrasquinhos de rua, principalmente em cuidados com a higiene e manipulação de comidas e utensílios. A autorização de comércio ambulante no município é prevista em Lei desde 1992 e a venda de churrasquinhos em calçadas é considerada profissão desde 2015. Embora a regulamentação valha, em teoria, para toda a cidade, o desafio será  aplicar essas regras nas favelas, já que não há  nenhum acompanhamento da Prefeitura,  como em outras partes do município.

Qualidade que não deixa a desejar

Luciana Ribeiro dos Santos e seu esposo Jailson Jovêncio, que trabalham vendendo churrasquinhos há mais de dois anos na esquina da Rua B1 com a Rua B8, na Vila dos Pinheiros,  nunca precisaram de autorização para trabalhar. Sempre trabalharam na rua e nunca tiveram qualquer diálogo ou regras para cumprir, a partir de órgãos  da Prefeitura.

“Eu trabalhava em outro lugar, mas resolvi sair. Com o dinheiro que recebi da rescisão do meu outro trabalho, comprei essa carrocinha. Fui muito insistente para que desse certo. Eu abria todos os dias e trabalhava até de madrugada. O pessoal foi conhecendo meu serviço, fui fazendo clientes, e aí consegui diminuir o ritmo. Então,  hoje, trabalho de terça a sábado”, contou Luciana,que sustenta dois filhos e paga o aluguel onde mora a partir da renda que ela e o marido tiram da venda de churrasco e de seu famoso baião de dois.

Luciana Ribeiro dos Santos e seu esposo Jailson Jovêncio no Churrasquinho da Via B1, Vila do Pinheiro. Foto © Douglas Lopes

Mesmo sem qualquer alvará de funcionamento, Luciana diz que  não descuida das regras de higiene do local, mantendo seus produtos bem-guardados e manuseados. Mas se a regulamentação fosse aplicada no comércio dentro das favelas da Maré, provavelmente, ela teria de abrir mão de alguns serviços e produtos que oferece.

Na pista é outra história

Francisca Val vende churrasquinhos no Centro há 20 anos e vê a regulamentação como positiva | Flávia Veloso

Francisca Val trabalha na esquina da Avenida Presidente Vargas com a Rua Miguel Couto, há 20 anos. A cearense, moradora do Morro da Conceição, no Centro, há 25 anos, acredita que o Decreto de regulamentação do churrasquinho de rua é algo positivo. Ela começou a adaptar seu trabalho às novas normas: “Já li todo o Decreto, fiz o curso com a Vigilância Sanitária exigido pela Prefeitura e só estou esperando o Carnaval passar para que eu traga a nova barraca e comece a trabalhar conforme a regulamentação, com luvas, touca e todas as regras de higienização e armazenamento de alimento necessárias.”

Val tentou, por 10 anos, conseguir sua licença para vender churrasquinhos na calçada. Os anos sem autorização fizeram com que a Guarda Municipal levasse sua carrocinha e seus materiais duas vezes, o que gerou prejuízos de milhares de reais para a comerciante. Ela espera que agora – autorizada a vender e regularizada junto às normas sanitárias da Secretaria Municipal de Saúde –  seu negócio tenha segurança e não seja tirado dela novamente.

O medo de Val não é infundado. O Decreto considera que a autorização do uso de espaço público pode ser revogada a qualquer momento,  mesmo pagando corretamente uma taxa anual para que seu comércio funcione normalmente. Isso gera uma preocupação grande por essa a sua única  fonte de renda.

MAIS INFORMAÇÕES:  http://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=305374  (Lei de 2015, autorizando venda de churrasquinho);  http://smaonline.rio.rj.gov.br/legisconsulta/60309DECRETO%20RIO%2047084_2020.pdf (Decreto de regulamentação)

Absolvição unânime: impunidade

Tribunal militar absolve cabo que deixou morador da Maré paraplégico

Hélio Euclides, Thathiana Gurgel e Dani Moura

“Acordo e durmo pensando no que aconteceu naquele dia, pensando que eu vivo hoje e que, em fevereiro, poderiam ser cinco anos de luto, ao invés de cinco anos de luta.” Vitor Santiago Borges teve sua vida transformada pelo Estado brasileiro, quando estava com 29 anos, no conjunto de favelas da Maré, Zona Norte do Rio, onde nasceu e cresceu.

O caso aconteceu durante a ocupação militar quando Vitor voltava para casa com quatro amigos, após a comemoração de uma partida de futebol. O carro em que ele estava foi alvejado pelos militares. Cinco anos depois da noite do crime, o cabo do Exército Diego Neitzke, que atirou contra Vitor deixando-o paraplégico e com uma perna amputada, foi absolvido por unanimidade.

Legítima defesa imaginária

Inicialmente, o Ministério Público Militar denunciou o cabo por lesão corporal gravíssima contra Vitor e lesão corporal leve contra seus amigos que estavam no carro, mas depois sugeriu suavizar a pena. O promotor militar alegou que o soldado agiu em “legítima defesa imaginária” e que ele deveria ser absolvido da acusação de lesão corporal gravíssima. O conceito faz parte das propostas de lei enviadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, com o objetivo de aumentar as circunstâncias em que militares podem matar sem serem punidos, mesmo nos casos que tramitam na Justiça comum.

Vitor conta que não sabe o que é legítima defesa imaginária, mas que após a noite do crime, nada do que aconteceu em sua vida é imaginário: “Eu vivo na carne, eu vivo na pele, tudo o que aconteceu naquele dia, naquele 12 de fevereiro de 2015. Se esse cabo for absolvido, os casos daqui para frente podem até piorar. Isso dá brecha para militar entrar aqui, polícia entrar aqui e fazer o que quiser, a hora que quiser e se esconder atrás da lei.”

No caso de Vitor, o cabo agiu amparado na chamada “excludente de ilicitude”, que não configura crime uma ação, mesmo que fatal. Mesmo sem ter sido aprovado no Congresso ainda, o projeto já é colocado em prática: desde 2010, nenhum militar foi condenado por morte ou lesão em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs). Desde o final de 2017, os membros das Forças Armadas que cometeram crimes passaram a ser julgados pela Justiça Militar. E foi nela que o cabo, que deixou Vitor paraplégico, foi absolvido por unanimidade.

  A decisão — tomada em conjunto por quatro oficiais militares e pela juíza federal Marilena Bittencourt, da 4ª Auditoria do Fórum de Justiça Militar do Rio — seguiu posicionamento do Ministério Público Militar (MPM), que havia pedido a absolvição do cabo. O promotor Otávio Bravo defendeu a inocência de Neitzke, com base na teoria da legítima defesa putativa, ou seja, o militar atirou, porque imaginou que estava sob risco.

 Aos 34 anos, Vitor afirma que não foi um acidente e que o crime se enquadra em tentativa de homicídio: “Eu não estava na hora errada e no lugar errado. Simplesmente abriram fogo contra o carro e é um absurdo uma pessoa dessas ficar livre, enquanto eu preso nas minhas limitações para o resto da vida.  No final das contas, eu fui alvejado e tive a vida modificada completamente por quem deveria ter trazido segurança pra cá, por quem um dia eu confiei, mas parece que Segurança Pública e Inteligência não cabem na mesma frase…”, declarou Vitor, que ficou 98 dias internado no hospital e teve uma perna amputada, além  de estar paraplégico.

Os militares alegaram que o carro em que Vitor estava não parou e não obedeceu aos sinais de alerta dos militares. O motorista, amigo de Vitor, foi denunciado por desobediência.  “Os militares dizem que estavam à vista, mas se encontravam abrigados. Os civis vinham de jogo, sem armas, e já tinham parado na entrada da favela. Não viram o sinal dos militares e podiam estar distraídos. Também não acredito que o carro iria para o lado esquerdo, para cima da tropa”, comenta o promotor.

O promotor ainda citou que o cabo portava um fuzil 762, no módulo automático, que dispara 10 tiros por segundo. “Nem sabemos, ao certo, quantos tiros foram disparados, pois não teve perícia no local”, explica. Ele referiu que o acusado deu a justificativa de legítima defesa, mas que não houve agressão eminente. “O cabo não deve ser punido, pois foi legítima defesa imaginária. O militar cometeu um erro, prova disso é o Vitor quem mostra. Tomei a decisão de pedir a absolvição, o que é uma injustiça para Vitor. A minha posição você, Vitor, vai entender, pode não aceitar. Peço a absolvição pela minha consciência de que foi uma política de segurança incompetente”, expõe. Para Otávio, os militares não tiveram treinamento policial, já que soldado é treinado para a guerra.

Cláudio José, advogado de defesa do cabo, também alegou legítima defesa: “Quem luta pela Segurança não pode ser acusado de crime”, disse. Ele acrescentou que o Estado reconhece a falha operacional, com uma indenização, que o pedido de perdão vai vir no campo civil. Por fim, Marilena Bittencourt, juíza da Justiça Federal, disse não existir prova suficiente para a condenação, lamentou a tragédia ocorrida e afirmou que nem sempre a Justiça atinge a todos.

Se perde a batalha, mas não a guerra

Vitor Santiago, que acompanhou na primeira fila o julgamento, estava contrariado com o resultado. “Foi corporativismo militar, passaram a mão na cabeça. Eu que estou preso, quando desejo subir um degrau ou na dificuldade de tomar um simples banho. A Justiça é para os poderosos. O que eu sei é que não estava no lugar errado, nem na hora errada, mas perdi minha perna”, comenta.

Irone Santiago, sua mãe, também estava presente e mencionou que a tragédia já resultou em dois aneurismas cerebrais. “Tinha de ser julgado na Justiça comum. O resultado foi: quem pagou foi o meu filho, que ficou paraplégico”, resume.

Vitor segue aguardando a sentença sobre sua ação indenizatória e sua defesa pede à União casa e carro adaptados; compensação por danos morais e estéticos; a continuidade da pensão por invalidez e do fornecimento de materiais médicos, que ele já recebe em tutela de emergência.  Mas para ele, a indenização não é suficiente. “Queria a condenação, para servir de exemplo para outros casos. O cabo fez parte do fato, não foi um erro mecânico. Volto chateado e com o sentimento de ausência de uma Justiça justa para todos”, avalia. Vitor é pai de uma menina de 7 anos.

Vitor conheceu a Redes da Maré, por meio do projeto Maré de Direitos, que presta acolhimento sociojurídico para os moradores vítimas de violações de direitos e busca encaminhar e acompanhar essas pessoas no acesso à Justiça e a outros direitos. No caso de Vitor, a Redes acompanha desde o início, dando suporte, acolhimento sociojurídico e articulando com a rede de saúde para que seu processo de reabilitação seja feito.

Relembre o caso

Na noite do dia 12 de fevereiro de 2015, Vitor tinha acabado de assistir ao jogo do Flamengo na Vila do João com mais quatro amigos e estava voltando para casa, de carro, na Vila do Pinheiro, também na Maré, quando o veículo foi alvejado por seis tiros de fuzil pelo Exército. Aos 29 anos, ele foi atingido por dois tiros: um na coluna, deixando-o paraplégico, e o outro atingiu a perna direita e saiu na esquerda, resultando em sua amputação e mais 98 dias de internação no hospital, 10 dias em coma, internações em CTIs, fisioterapia respiratória, motora, hemodiálise, transfusão de sangue e cirurgia no pulmão.

O carro de Vitor foi fuzilado durante a ocupação das Forças Armadas na Maré, em 2015. As tropas ocuparam o conjunto de favelas de abril de 2014 a junho de 2015. Por dia, foram gastos 1,2 milhão de reais, totalizando quase R$600 milhões em 15 meses. Segundo pesquisa da Redes da Maré sobre o período de ocupação do Exército, a sensação de insegurança continuou para 69,2% dos moradores entrevistados.

Mulheres de fé

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Primeira mulher pastora do Estado e budista moradoras da Maré conversaram sobre intolerância religiosa


Simone Lauar

Estamos vivendo em um momento marcado pela intolerância, onde as pessoas têm dificuldades em aceitar opiniões diferentes das suas, sendo até desrespeitosos em alguns momentos. Assuntos como religião, por exemplo, tem gerado diversos debates nas redes sociais e veículos de comunicação não apenas pela divergência de pensamento, mas pelos ataques que algumas religiões têm sofrido. 

Mas aqui na Maré existem duas mulheres fortes e espiritualizadas que discordam de todo esse ódio gratuito. Tive a honra de conversar com elas, mulheres de religiões diferentes, que sentaram lado a lado e falaram de sua fé e a falta de respeito que estão colocando nas religiões de hoje: Maria José Fernandes, 78 anos, primeira pastora evangélica do Estado do Rio de Janeiro e Elisabete Regina Ramos, 60 anos, budista Nichiren desde 1984.

Maria, como muitas mareenses, vem no Nordeste, do Estado da Paraíba há 45 anos. Em 1973, ela foi diagnosticada com câncer na língua. O médico, dissera na época, que ela só tinha seis meses de vida: “Estava na fila do hospital quando uma senhora me entregou um folheto de uma Igreja em Engenho Novo e pediu para minha mãe me levar até lá.” Maria foi, e a partir desse momento, ela se se tornou parte da Congregação Igreja Tabernáculo da Aliança do Senhor, na Vila dos Pinheiros, uma das 16 favelas que compõem a Maré, e se tornou a primeira pastora do Rio de Janeiro.

Já Elisabete Regina Ramos, 60 anos, também moradora da Vila dos Pinheiros, é natural do Maranhão e budista Nichiren desde 1984. Conhecida como Bete, veio pro Rio com 16 anos, e aos 25 se converteu budista, depois de anos sendo católica. “Comecei em uma época que budismo era uma novidade na favela. Pouquíssimas pessoas eram, pois o Budismo é propagado de pessoa pra pessoa, e não como é em outras religiões”, lembra. Bete faz parte da BSGI – Brasil SoKa Gakkai Internacional – junto com Elias Fernandes, filho de Maria José.

Bete e Maria são vizinhas, pessoas de fé diferentes e se respeitam. “Eu acho, sinceramente, que essas pessoas que se desfazem da fé do outro não tem Deus no coração. Você tem que respeitar as pessoas como seus irmãos. Quando a pessoa tem Deus no coração, não sente prazer em se desfazer da religiosidade do outro”, observou Maria José. “Nós Budistas acreditamos na lei do retorno. Não podemos e não devemos criticar ninguém, pois isso volta para a sua vida e se torna seu karma. Temos que ser solidários e acreditar num mundo melhor para todos nós. Independente de qual seja a sua fé, congregação… O que seja”, afirma Bete.

Duas mulheres fortes, unidas pela fé e não pelas suas religiões. Moram aqui na Vila dos Pinheiros, na Maré, e dentro de cada fé, elas resgatam vidas e estruturam almas consideradas perdidas. Uma aula de humanidade no meio de tantas barbáries desgovernadas e sem sentido.

Mulheres em luta

Mulheres mães que tiveram seus caminhos atravessados por falhas políticas de segurança pública contam suas histórias sobre como resistem e dão novos rumos às suas vidas 

Maré de Notícias #110 – março de 2020

Flávia Veloso e Miriam Krenzinger

Nos últimos 20 anos a cidade do Rio de Janeiro vem sendo palco de vários movimentos e coletivos de mulheres – mães e familiares moradoras de favelas e da periferia – que se organizam na luta diária pelo acesso à justiça, à reparação e ao direito de preservarem a memória dos entes queridos que foram brutalmente feridos ou mortos em decorrência dos confrontos entre grupos armados – policiais, milícias e traficantes.

Frente à ausência de apoio das instituições governamentais, de reconhecimento das violações e dos danos causados por parte de agentes do Estado, algumas mulheres-mães têm se articulado para fortalecer a forma de lidar com as dores e os sofrimentos gerados pela violência institucional e violência das armas. Alguns desses grupos resistem há anos e servem de exemplos para outras mães e mulheres, como o Mães de Manguinhos, Movimento Moleque, Mães de Maio (SP), Mães da Maré, entre diversos outros coletivos que seguem na mesma luta.

Resistência e luta

E muitas mulheres, como Bruna e Mônica, (depoimentos em destaque) que lutam por memória, respeito e reparação, encontram diversas barreiras institucionais e resistências por parte dos agentes do Estado para acessarem a Justiça e o sistema de garantias individuais e sociais. Além do medo de se exporem, o descrédito nos órgãos da Justiça decorre, principalmente, da total falta de transparência das informações e de providências efetivas que poderiam/deveriam elucidar as violências sofridas por seus familiares.

Nesse cenário, destaca-se o projeto de Olho da Maré, uma iniciativa do eixo de “Segurança Pública e Acesso à Justiça” da Redes que  busca sistematizar dados sobre os confrontos bélicos que envolveram grupos armados e forças policiais. As informações são publicadas anualmente desde 2017 no Boletim “Direito à Segurança Pública na Maré”. O monitoramento busca dar visibilidade ao conjunto de violações de direitos fundamentais sofridas pelos moradores das 16 favelas do Complexo da Maré para, a partir disso, subsidiar o movimento das mulheres mães da Maré vítimas do Estado, bem como, pensar a implementação de políticas públicas que tenham como prioridade garantir da vida da população.

Vítimas de violações

  Os dados publicados nas quatro edições do Boletim, entre 2017 e 2020, revelam um quadro dramático sobre a violência armada e institucional que atinge nossos/as moradores/as: 132 pessoas foram mortas, 121 feridas. Nossas crianças ficaram 89 dias sem acesso às escolas e mais de 60 mil atendimentos deixaram de ser prestados nos 101 dias em que as unidades de saúde ficaram fechadas. Somente em 2019, houve 117 dias de tiroteios em diferentes partes da Maré, englobando os que ocorreram durante operações policiais ou em ações das redes ilícitas e criminosas.

As vítimas de letalidade violenta são, em maioria, jovens pardos e negros, representando 94% casos. Esta informação está diretamente correlacionada ao sofrimento de mães e mulheres familiares que perderam filhos, netos, irmãos ou maridos, num contexto em que não há garantia, mínima, do acesso  justiça e ao direito à segurança.

A luta ainda é delas

E vale ressaltar que,  mesmo nos casos de violações de direitos cometidas contra homens, geralmente, são as mulheres que buscam acolhimento e orientação psicossocial e jurídica junto a projeto Maré de Direitos[1] da Redes da Maré. Quando olhamos, ainda, para outras formas de notificações sobre violações de direitos fundamentais, identifica-se que são as mulheres registraram 58% das ocorrências.

Os dados e, assim como, os depoimentos demonstram a relevância dos movimentos das Mulheres-familiares-Mães que ao criarem espaços de partilha de trajetórias singulares, que ao mesmo tempo são muito similares, sensibilizam outras mulheres a aderirem às suas lutas por mais justiça. De forma coletiva, as mulheres unidas ficam mais fortalecidas para fazerem os registros e denúncias das violências sofridas (por familiares) e do genocídio, em curso, de jovens moradores da Maré.  As três narrativas indicam o quanto o território dominado pelo confronto das armas, que fere e deixa marcas permanentes nos seus locais de moradia e nas suas famílias, pode ser também o território da solidariedade, da ajuda mútua, da convivência acolhedora que possibilita reviver a presença de quem partiu gerando memória, respeito também fortalecimento para si. Segundo Bruna Silva,“ juntas somos mais fortes. Não merecemos o fim que nossos filhos tiveram. Merecemos viver com dignidade. Todas as vidas importam isso é pelo que a gente briga”.

E é, justamente, por meio da troca de afetos com outras mulheres que também passaram pela mesma situação, que Mônica consegue se fortalecer:  “O que te faz não enlouquecer de vez, não se internar dentro de casa, não se suicidar ou se deixar morrer, é a companhia das outras, a força das outras que têm a mesma dor que você, que passa pelas mesmas violações. Essa troca me ajuda a equilibrar minha saúde mental, me faz pensar que eu posso de alguma forma continuar a viver. Você pode passar um batom, fazer as unhas, o cabelo, pode sorrir, sair para dançar, ter um relacionamento, pode viver, ter momentos felizes, mesmo com essa dor”, observa Mônica.

Os três depoimentos a seguir de mães tiveram filhos vitimados pela violência do Estado ilustram suas dores e suas lutas.

Sete meses sem conseguir atendimento médico

Laurizete Pereira dos Santos há mais de sete meses tenta fazer com que seu filho consiga tratamento médico. Tudo começou em julho de 2019 quando Isaac foi ferido por uma bala, durante uma operação policial na Baixa do Sapateiro, na Maré, que atingiu sua coluna e o sistema digestivo, fazendo com que ele perdesse força das pernas e abrindo um grande ferimento na barriga. Isaac teve o sistema digestivo operado e ficou internado por duas semanas no Hospital Evandro Freire. Desde então, o rapaz vem sendo tratado em casa por Laurizete. Os cuidados da mãe conseguiram que o ferimento fosse cicatrizado, mas a recuperação de Isaac parece ainda distante.  Impossibilitado de andar, fazer esforços e com o sistema digestivo lesionado internamente, Laurizete vive para cuidar do filho: “Depois que isso aconteceu com ele, fiquei três meses com os hormônios desregulados por causa do estresse. E minha luta tem sido sozinha, porque o pai e o irmão dele saem para trabalhar. Nossa vida mudou. Eu passo madrugadas acordada com ele, porque muitas vezes não consegue dormir. Meu sono vem, mas eu preciso estar ali cuidando dele”. (Laurizete Pereira dos Santos, moradora do Parque Maré)

Todas as vidas importam

Bruna Silva, em 2018, perdeu seu filho Marcos Vinícius, de 14 anos, durante uma operação policial na Maré. O garoto estava a caminho da escola, quando foi alvejado por um tiro disparado por um agente da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE). O caso repercutiu nas mídias e a mãe de Marcus Vinícius decidiu não se calar, iniciando uma trajetória de trabalhos e ações na área da segurança pública.

Bruna escolheu a luta também para preservar a memória do filho, junto a uma rede de apoio com outras mães e mulheres: “A gente se enterra em casa quando enterra um filho, automaticamente a gente morre com ele. Mas eu digo que é preciso que a gente viva, resista. A maneira que eu encontrei de não adoecer foi dando suporte a essas mães que passam pela mesma situação” . (Bruna Silva, ativista do Coletivo Mães da Maré)

“Primeiro você destrói o humano, para depois justificar o corpo no chão”

Rafael da Silva Cunha tinha 15 anos quando foi apreendido pela polícia e levado à 4ª Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), na Avenida Presidente Vargas, por ter cometido um ato infracional. Rafael foi condenado a cumprir medidas socioeducativas no Centro de Socioeducação Dom Bosco na Ilha do Governador. Foi nesse momento que a luta de sua mãe, Mônica Cunha, começou. Após a primeira entrada, Rafael passou mais três vezes pelo sistema socioeducativo do Estado. Aos 20 anos, Rafael foi morto pela polícia quando já estava rendido. Nessa época, Mônica decidiu criar uma rede informativa com o objetivo de conscientizar outras mães sobre os direitos de seus filhos menores de idade em conflito com a lei. Assim nasceu o Movimento Moleque, que existe até hoje. (Monica Cunha- líder do Movimento Moleque)

Da Maré para Tóquio

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Morador da Nova Holanda consegue bolsa para estudar em universidade do Japão em 2020

Ana Clara Alves e Jonatas Magno

Os cursos preparatórios e pré-vestibulares comunitários espalhados pela Maré tem preparado moradores a ingressar em instituições de excelência há anos. Com isso, vem aumentando o número de moradores da Maré em colégios Federais e Estaduais, assim como nas instituições de ensino superior. Um deles é Matheus Motta, 18 anos, morador da Nova Holanda. Ele fez preparatório para o 6º ano e foi aprovado no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), estudando no colégio de aplicação até o final do ensino médio, em 2019. Recentemente foi aceito na Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, a Tokyo University of Foreign Studies (TUFS), onde será bolsista ao longo dos quatro anos de ensino.

Matheus sempre estudou na rede pública de ensino e o que o motivou a tentar o curso no Japão foi a vontade de estudar no exterior. Apesar do interesse no campo das ciências humanas, ele não sabia qual faculdade iria fazer. Ao tomar conhecimento que o curso na TUFS abrangia a sua área de interesse, uniu essa certeza com a vontade de estudar fora e iniciou o processo seletivo para concorrer à vaga. Em Tóquio, ele vai cursar Estudos Japoneses, além de adquirir fluência em japonês para que ele possa se comunicar no país. A proposta é que a UERJ reconheça o diploma dele com base nas disciplinas eletivas que forem escolhidas.

Percurso 

A longo de sua trajetória estudantil, Matheus sofreu dificuldades que qualquer outro morador periférico sofre, como lidar com uma realidade naturalmente opressora analisando a questão da violência. Isso porque, por mais que estudasse fora da Nova Holanda, ele ficou impossibilitado de sair de casa antes de alguma operação começar, perdendo dias de aula. Apesar disto, percebe que essa dificuldade não pode se comparar a de moradores que estudam dentro da Maré, e que quase toda semana tem suas aulas paralisadas por conta de operações. Ele acredita que seu diferencial para os outros moradores da comunidade foi o acesso a informações e as oportunidades que teve. Enquanto estudava na Maré, passou por testes e conseguiu ingressar em um preparatório, conhecido atualmente como Instituto Apontar, que o auxiliou no ingresso em escolas de excelência. Isso o possibilitou entrar no CAp-UERJ, onde recebeu uma educação de qualidade e o fez crescer como estudante e cidadão. 

De início, os pais de Matheus ficaram bastante receosos com o fato do filho ir estudar no Japão. Após reunião no colégio com uma pedagoga e um aluno que já participou do projeto, eles ficaram mais tranquilos. Antes de embarcar para Tóquio,  ainda deu tempo para ele dar mais orgulho para sua família ao passar para Jornalismo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Matheus não sabia de fato o que queria, mas escolheu Jornalismo por considerar que fala bastante, gostar muito de contar história, se achar bastante comunicativo e gostar de escrever também. Por já ter feito a primeira fase da prova, resolveu fazer a específica também e acabou conseguindo ingressar, mas por agora, a sua escolha será estudar no Japão. 

Perguntado sobre um sonho, Matheus não conseguiu pensar em algo material. Ele só espera que daqui a quatro anos esteja de fato se formando, feliz, com a certeza de que fez a escolha certa e que tenha conhecido não só o Japão, mas também o mundo, e tido contato com várias culturas que resultaria num crescimento pessoal. 

A Maré em números

Segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), contou-se 135.989 moradores na Maré, incluindo a favela Marcílio Dias. Já o Censo Maré, realizado três anos após o do órgão estatal, fez o levantamento de 139.073 pessoas. 

Devido à mobilização de organizações locais e ao movimento Maré Que Queremos – uma parceria da Redes da Maré com diversas organizações das 16 favelas, incluindo associações de moradores -,  a oferta de escolas de educação infantil e de ensino fundamental na Maré aumentou. Hoje o território tem 44 escolas, mais que o dobro de 2013, época da realização do censo. Esses espaços oferecem de creche ao ensino médio em um complexo chamado “Campus Educacional da Maré”.

Dentre os habitantes das favelas, 6.302 (6%) dos entrevistados não sabem ler ou escrever, sendo 3.356 (6,2%) mulheres e 2.925 (5,8%) homens. Além disso, os dados do Censo apontam que entre os moradores do Complexo da Maré, 11.145  (8,01%) nunca frequentaram a escola e 74.359 (53,47%) não chegaram a completar o Ensino Fundamental. Dos 25.866 que concluíram o ensino fundamental, apenas 835 não deram continuidade no ensino médio. E apenas 1334 habitantes ingressaram no ensino superior. 

A intensidade do “maternar” periférico

Maré de Notícias #110 – março de 2020

Jessica Pires: recente mãe da Mariá, comunicadora popular e jornalista do Maré de Notícias

Que a maternidade é uma das experiências mais intensas que uma mulher pode viver, é fácil imaginar. Mas a intensidade e os desafios que uma mulher periférica experimenta ao decidir viver essa relação são muitos. E nem tenho a pretensão de, aqui, dizer quais são todos eles, porque para começar, como qualquer outra relação, aprendi que cada história de mãe é especialmente única.

Poderíamos começar falando sobre como a sociedade naturaliza a quase total responsabilidade da criação para as mães, e isso vai muito além da questão da natureza humana de gestar, amamentar… Durante todo este processo e quando o bebê chega, as responsabilidades estão em diversos âmbitos e os impactos para a vida da mãe são muitos, e, decididamente, diferentes daqueles que um homem passa. O cansaço e a responsabilidade são físicas, emocionais e mentais. Dizer que isso não é igual para os genitores, mesmo quando estão dispostos a tentar, já me parece redundante.

Sobre qual aspecto podemos chamar mais a atenção, ressalto que é como todo esse universo de novidades atravessa as mães periféricas e faveladas. Se numa relação na qual existem privilégios como uma licença maternidade considerável, carga horária flexível para retorno ao trabalho, vagas suficientes em creches e acesso à informação, isso tudo é intenso, imagine para quem conta, muitas vezes, com apenas uma outra mulher?

De acordo com os dados do Censo Populacional da Maré, começamos pela declaração da maternidade, que é mais expressiva que a paternidade. Outro dado que chama a atenção é que, entre as pessoas que são consideradas responsáveis pelos domicílios na Maré, 30,3% são mulheres maiores de 15 anos. Além de 19,1% que o fazem de forma compartilhada. Isso quer dizer que, praticamente a metade das mulheres com 15 anos ou mais, é a pessoa responsável por domicílios na Maré. E considerável parte delas também são mães.

Quando se tem um vínculo empregatício formal, a mulher tem direito a, pelo menos, quatro meses de licença-maternidade garantida. A licença-maternidade surgiu no Brasil em 1943 com a CLT, inicialmente com um tempo ainda menor e com o pagamento sendo feito pela própria empregada. Na Constituição Federal de 1988, passamos a ter a garantia de 120 dias (quatro meses). Em contraponto, a mesma Constituição define uma licença-paternidade de cinco dias. Ou seja, o desequilíbrio é constitucional.

E esse é o cenário de relações de trabalho formais, regulamentadas pela CLT. Quando essa não é a realidade, a mulher muitas vezes conta com outras mulheres para poder voltar à sua rotina de trabalho – o que acontece com muita frequência na Maré. São às avós, vizinhas, amigas ou cuidadoras remuneradas que dão conta de dedicar a atenção aos bebês, bem antes do que seria ideal ou recomendado.

O retorno à rotina de trabalho precoce também envolve uma questão delicada e importante até mesmo para a saúde pública: muitas mães acabam deixando de amamentar mais cedo que o recomendado. A Organização Mundial da Saúde recomenda o aleitamento exclusivo até os seis meses e, segundo estudos, também da OMS, a amamentação quase universal poderia salvar mais de 800 mil vidas, anualmente, sendo a maioria de crianças com menos de seis meses de vida, além do custo alto que a inclusão de fórmulas para alternativas ao leite materno no orçamento dessas mães.

Apesar de a Prefeitura do Rio afirmar ser uma de suas prioridades o aumento do número de vagas em creches públicas, não é a realidade que se vê na prática. Detalhe é que uma das metas do Plano Nacional de Educação (em vigência desde 25/06/2014 e estabelece diretrizes, metas e estratégias para os próximos 10 anos da Educação brasileira) é universalizar a Educação Infantil na Pré-escola.

O fato é que a mulher periférica atravessa, de forma muito mais intensa, os desafios gigantes e nada românticos nesta trajetória.  E apesar de ser ela, sermos nós, literalmente, geradoras da base da sociedade, a escolha de se ter condições, políticas públicas ou iniciativas privadas para fortalecer esse processo, definitivamente, não é nossa. 

Dica: O Espaço Casulo, um espaço para troca de ideias e de atividades com enfoque na mulher, tem uma Roda de Gestantes que acontece mensalmente. A próxima Roda será XX com o tema: XX. O objetivo é a troca de informações acerca de temas sobre gestação e maternidade, relatos, dúvidas e conversas. O Espaço Casulo fica na Av. Guilherme Maxwell, 79 – 2º andar (Rua da Passarela 7, em cima da academia).