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Vitor Santiago e seus cinco anos de luta nada imaginária

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Julgamento do militar que deixou Vitor paraplégico será dia 18/02

Texto e foto: Thathiana Gurgel

“Acordo e durmo pensando no que aconteceu naquele dia, pensando que eu tô vivo hoje e que em fevereiro poderiam ser cinco anos de luto, ao invés de cinco anos de luta.” Vitor Santiago Borges teve sua vida transformada pelo Estado brasileiro quando estava com 29 anos, no conjunto de favelas Maré, zona norte do Rio, onde nasceu e cresceu. Cinco anos depois da noite do crime, o soldado do Exército que atirou contra Vitor deixando-o paraplégico e com uma perna amputada será julgado no dia 18 de fevereiro pela Justiça Militar. A esperança é de que o soldado seja responsabilizado pelo crime que cometeu e que o caso sirva de exemplo para que não se repita. 

Aos 34 anos, Vitor afirma que o que aconteceu não foi um acidente e que, para ele, o crime se enquadra em tentativa de homicídio: “Eu não estava na hora errada e no lugar errado. Simplesmente abriram fogo contra o carro e é um absurdo uma pessoa dessa ficar livre enquanto eu tô preso nas minhas limitações pro resto da vida.” Ele contou que suas esperanças na Justiça para que o soldado pague pelo que cometeu são pequenas, pois, no julgamento militar o Ministério Público Militar (MPM) julga o militar, prevalecendo o corporativismo e a atuação em defesa de seus benefícios próprios.  

Inicialmente, o MPM denunciou o soldado por lesão corporal gravíssima contra Vitor e lesão corporal leve contra seus amigos que estavam no carro, mas depois sugeriu suavizar a  pena por conta das supostas condições perigosas em que se encontrava a tropa do Exército. O promotor militar alegou que o soldado agiu em “legítima defesa imaginária” e que ele deveria ser absolvido da acusação de lesão corporal gravíssima. O conceito faz parte das propostas de lei enviadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso com o objetivo de aumentar as circunstâncias em que militares podem matar sem serem punidos, mesmo nos casos que tramitam na justiça comum. 

No caso de Vitor, o soldado agiu amparado na chamada excludente de ilicitude, que não configura crime uma ação, mesmo que fatal. Mesmo sem ter sido aprovado no Congresso ainda, o projeto já é colocado em prática: desde 2010, nenhum militar foi condenado por morte ou lesão em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs). Desde o final de 2017, os membros das Forças Armadas que cometeram crimes passaram a ser julgados pela Justiça Militar.

Vitor conta que não sabe o que é legítima defesa imaginária, mas que após a noite do crime, nada do que aconteceu em sua vida é imaginário: “Eu vivo na carne, eu vivo na pele tudo o que aconteceu naquele dia, naquele 12 de fevereiro de 2015. Se esse cabo for absolvido, os casos daqui pra frente podem até piorar. Isso dá brecha pra militar entrar aqui, polícia entrar aqui e fazer o que quiser, a hora que quiser e se esconder atrás da lei”. 

“Eu tenho muita vontade de encontrar um cara desses grandes e mostrar “olha como é que eu tô, olha o que aconteceu comigo. É justo? É certo essa política de segurança que você tenta implantar? Principalmente o seu Witzel. É certo entrar com o pé na porta e atirar?  No final das contas eu fui alvejado e tive a vida modificada completamente por quem deveria ter trago segurança pra cá pra dentro, por quem um dia eu confiei, mas parece que segurança pública e inteligência não sabem na mesma frase…”, declarou Vitor. 

Relembre o caso

Na noite do dia 12 de fevereiro de 2015, Vitor tinha acabado de assistir ao jogo do Flamengo na Vila do João com mais quatro amigos e estava voltando para casa, de carro, na Vila do Pinheiro, também no Complexo da Maré, quando seu carro foi alvejado por seis tiros de fuzil pelo Exército. Aos 29 anos, ele foi atingido por dois tiros: um pegou na coluna, deixando-o paraplégico, e o outro atingiu a perna direita e saiu na esquerda, resultando em sua amputação e mais: 98 dias internado no hospital, 10 dias em coma, internações em CTis, fisioterapia respiratória, motora, hemodiálise, transfusão de sangue e cirurgia no pulmão.

O carro de Vitor foi fuzilado durante a ocupação das forças armadas na Maré em 2015. As tropas ocuparam o conjunto de favelas de abril de 2014 a junho de 2015. Por dia, foram gastos 1,2 milhão de reais, totalizando quase R$600 milhões em 15 meses. Segundo pesquisa da Redes da Maré sobre o período de ocupação do Exército, a sensação de insegurança continuou para 69,2% dos moradores entrevistados. 

No caso de Vitor, os militares alegam, no caso de Vitor, que seu carro não parou e não obedeceu aos sinais de alerta dos militares. O motorista, amigo de Vitor, foi denunciado por desobediência. Até hoje, Vitor segue aguardando a sentença sobre sua ação indenizatória e sua defesa pede à União: casa e carro adaptados, compensação por danos morais e estéticos e a continuidade da pensão por invalidez e do fornecimento de materiais médicos, que ele já recebe em tutela de emergência. 

Foi neste período que Vitor conheceu a Redes da Maré, através do projeto Maré de Direitos, que presta acolhimento sociojurídico para os moradores vítimas de violações de direitos e busca encaminhar e acompanhar essa pessoas no acesso à Justiça e outros direitos. No caso de Vitor, a Redes acompanha o caso desde o início dando suporte, acolhimento sociojurídico e articulando com a rede de saúde para que seu um processo de reabilitação seja feito.

Carnaval da resistência

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Entre crise financeira e polêmicas, o Carnaval carioca sobrevive nas ruas do Rio de Janeiro

Maré de Notícias #109 – fevereiro de 2020

Hélio Euclides

Nos últimos tempos, o que menos visitou a mesa dos brasileiros foi a carne. O motivo: preço elevado. Nem por isso a festa da carne, ou melhor, o Carnaval vai deixar de ser a maior festa do carioca, apesar de todos os problemas que a cidade enfrenta nas áreas de saúde, educação, abastecimento hídrico e Segurança Pública. No Carnaval não é muito diferente. Desde o ano passado, o auxílio destinado às Escolas de Samba vindo da Prefeitura virou uma enorme polêmica. Agremiações reclamam que, além disso, ainda tem a crise financeira do País. Dessa forma, precisam usar a criatividade. Ou seja, como tudo no Brasil, o Carnaval também vai ser difícil. O importante é recordar Nelson Sargento, que dizia: “O samba agoniza, mas não morre”.

O Carnaval é uma festa que mexe com a economia brasileira. O Rio de Janeiro se enche de turistas e engrandece o mercado formal e informal. Aydano Motta, jornalista e especialista no tema, defende que mais do que a importância econômica, o Carnaval é a identidade da cidade, de um lugar que foi o maior destino dos escravizados. Para ele, o Carnaval é o alicerce do Rio de Janeiro, por isso não se pode pensar como gestão de governo e, sim, como política de Estado. Para Aydano, o Carnaval merece prioridade, junto com a educação, a saúde e o meio ambiente, por fazer parte da cultura de um povo.

“O Carnaval é algo que a elite não gosta e nem os neopentecostais. A elite carioca sonha em morar numa Europa e eliminar o que o pobre gosta. Digo que as igrejas não são inimigas do carnaval, isso fica claro com o desfile da Grande Rio, onde pastores vão desfilar”, afirma. O jornalista acrescenta que não podemos esquecer que a festa é, em parte, também uma herança africana. “Essa sociedade critica o Carnaval dizendo que ele é do mal, um preconceito, por ter ligação com religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda”, comenta.

Sobre a crise no Carnaval, ele acredita que a festa ainda vai sofrer em 2021, mas vai sobreviver. “Não vamos ouvir do prefeito que ele não gosta de Carnaval, mas asfixiou o evento, tirando o dinheiro das Escolas de Samba”, acrescenta. Aydano vê uma cidade desenhada para se divertir, e que os blocos de rua são um fenômeno no qual todos brincam juntos. Que esse movimento precisa crescer, já que há três anos, São Paulo tem mais blocos que o Rio.

Por uma Maré de folia

Para Aydano, a Maré precisa de mais Escolas de Samba e Blocos. Precisa mostrar que está ganhando a briga na cultura, de que a favela tem a vocação da alegria e da diversão. “Acho que precisa acabar com esse vexame, de um conjunto de favelas tão grande só ter duas Escolas de Samba, sendo que o Gato (de Bonsucesso) está enrolando a bandeira. Não podemos deixar o samba morrer, Carnaval de rua é diversidade e algo democrático”, conclui.

Para os moradores mais antigos, a empolgação era garantida com os dois Blocos. O Corações Unidos fazia a população do Morro do Timbau e Baixa do Sapateiro balançar. Enquanto o Mataram Meu Gato, que além do tamborim feito com a pele do felino, agitava a Nova Holanda. O primeiro foi extinto e o segundo deu lugar à Escola de Samba Gato de Bonsucesso. Em 2018, o Gato ficou em penúltimo lugar no Grupo E e, pela regra, ficará dois anos suspenso. Como solução, foi criada a Acadêmicos da Maré, que até hoje não desfilou. No site Galeria do Samba, as duas agremiações aparecem como inativas ou extintas.

A outra agremiação da Maré é o Siri de Ramos que, junto com oito Escolas de Samba da Série B, criou a Liga Independente das Verdadeiras Raízes das Escolas de Samba (Livres). Insatisfeitas com a atual gestão da Liga Independente das Escolas de Samba do Brasil (Liesb), as agremiações criaram a nova aliança. Mateus Medeiros, carnavalesco do Siri, foge da polêmica. “O Siri vai com 600 componentes para a avenida, divididos em 16 alas. O enredo ‘Ganga Zumba, a dinastia de um guerreiro’ é especial. Uma temática africana, nasceu de uma pesquisa profunda sobre essa pessoa importante para a nossa História. A Escola vai surpreender pelo colorido”, revela.

O Bloco Gargalo da Vila promete superar a crise e desfilar pelas ruas da Vila do João. “Estou confiante que vamos conseguir patrocinadores. O nosso diferencial é que temos 18 anos e nunca tivemos uma briga. Realizamos um carnaval de lazer e paz”, lembra Marco Antonio, conhecido como Marquinho Gargalo, fundador do Bloco. Para o Se Benze Que Dá, Bloco que desfila em dois sábados, um antes e outro depois do Carnaval, é um ano marcante. O grupo completa 15 anos de enredos críticos e que lutam pela dignidade da Maré.

Confira as datas dos eventos carnavalescos na página das Dicas Culturais.

Uma festa profana introduzida na religiosa

Acredita-se que as primeiras festas que deram origem ao Carnaval são de 4.000 anos antes de Cristo, com festas agrárias. Posteriormente, a festa era em homenagem ao deus grego do vinho. Folias etílicas eram realizadas em homenagem a Baco e Saturnália. Mais tarde, os romanos católicos definiram o tom para as celebrações, com uma festa antecedendo a Quarta-Feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma no calendário cristão.

Os primeiros carnavais na Europa eram, geralmente, bailes de máscaras com fantasias. O Carnaval do Brasil teve influência do Entrudo, um festival português de grandes bonecos, e também inspirações do Carnaval de Veneza, com seus pierrôs, colombinas e máscaras típicas. A festa chegou oficialmente no Brasil no século XVII.

Já o primeiro baile de Carnaval do Rio foi em 1840, com os participantes dançando polca e valsa, e o samba introduzido nos anos 1920. Alguns anos depois, além do samba, surgiram os cordões e marchinhas, que deram origem aos Blocos e Escolas de Samba.  Esse termo, “Escola de Samba” foi criado por Ismael Silva, porque os sambistas eram denominados professores, pelo prestígio que possuíam. A “Deixa Falar” foi a primeira Escola de Samba, surgida em 1928.

Luiz Antônio Simas, escritor e historiador, destaca um ponto marcante: descendentes de africanos inventaram as Escolas de Samba. “Elas se originam no Rio de Janeiro pelas comunidades negras, que adaptaram ao mundo do samba algumas características dos ranchos carnavalescos. Só na década de 1960 é que as Escolas de Samba vão deixando de ser predominantemente afrodescendentes. O Carnaval não ficou embranquecido, a força das comunidades negras continua marcante, isso fica claro na bateria, na ala das baianas e em toques de baterias que são inspirados em toques de orixás”, explica.

1984 foi o ano de construção da Marquês de Sapucaí, a Passarela do Samba. Projetada por Oscar Niemeyer, a construção foi batizada de Sambódromo e tornou-se palco dos desfiles. As colunas das arquibancadas são vazadas com uma lágrima, que remete ao pierrô, que chora pelo amor da colombina.

Você Sabia?

O termo Carnaval é derivado de “Carne Vale”, que significa “Adeus à carne”. O propósito da festa é ter uma última semana de festas antes da abstinência de 40 dias. Os dias do Carnaval mudam todos os anos de acordo com a data da Páscoa, que é determinada pela lua, fórmula feita pelo Conselho de Nicéa, em 325 antes de Cristo.

Desde 2017, a subvenção, verba da Prefeitura dada às Escolas de Samba do Grupo Especial, vem diminuindo, até ser cortada para o Carnaval de 2020, como anunciado em agosto de 2019. As agremiações dos Grupos B, C, D e E, que desfilam na Avenida Intendente Magalhães, e as escolas mirins, que desfilam no Sambódromo na terça de Carnaval, seguem recebendo o subsídio.

A folia no “Bloco do Sofá”

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O que você precisa saber para assistir aos desfiles das grandes escolas pela TV

Maré de Notícias #109 – fevereiro de 2019

Daniela Name

Todo Carnaval a história se repete: ao invés de pensar na melhor fantasia ou sair pela cidade atrás dos melhores blocos, muitos preferem fazer parte da Unidos do Controle Remoto e do Bloco do Sofá. Balde de pipoca no colo e sentam-se em frente à TV para assistir ao desfile das Escolas de Samba. O cortejo é realmente irresistível, mas fica ainda melhor quando sabemos, previamente, dos enredos e sambas que as maiores Escolas vão apresentar. 

Diferentemente do ano passado, quando a Mangueira se sagrou campeã absoluta com um enredo sobre os heróis esquecidos pelos livros de História, o Carnaval 2020 promete uma disputa acirradíssima pelas primeiras posições. Um dos temas mais evidentes que percorre os enredos é o debate sobre liberdade de culto e intolerância religiosa, mas há ainda os tradicionais temas históricos e grandes homenagens.

A Mangueira tentará o bicampeonato com “A verdade vos fará livre”, com o carnavalesco Leandro Vieira propondo qual seria a reação da população carioca se Jesus nascesse, hoje, como um morador da favela: “Se Jesus fosse um favelado e começasse a falar das coisas que sempre falou, será que seria ouvido? Será que estaríamos preparados para o seu discurso ou ele seria crucificado novamente?”, pergunta Leandro, que defende a liberdade para abordar uma figura como a de Jesus na festa cultural que é o Carnaval. “A Mangueira pode falar de Jesus, assim como o teatro, o cinema e a história da pintura já falaram”, destaca. 

Outro samba comentadíssimo pela crítica é o da Grande Rio, cujo enredo primoroso ajuda a contar a história de um personagem importante da Baixada Fluminense, berço da Escola de Caxias: o pai de santo Joãozinho da Gomeia. Homossexual e transformista, Gomeia era um ídolo popular, e o canto dos componentes de Caxias vai lembrar sua trajetória pedindo respeito a todas as religiões [“Eu respeito o seu amém/Você respeita o meu axé”].

“Quisemos reconectar os componentes da Grande Rio com o seu território, a Baixada, por meio deste grande personagem”, conta Gabriel Haddad. “Foi impressionante como a comunidade abraçou o enredo.”

Enredo da Mangueira se dirige diretamente à população das favelas e de outras periferias do Rio |OSCAR LIBERAL

Outras quatro Escolas têm chamado a atenção dos especialistas: Portela, Beija-Flor, Vila Isabel e Mocidade Independente de Padre Miguel. Na azul e branco de Oswaldo Cruz, o enredo “Guaxupiá, terra sem males”, é baseado no livro “O Rio antes do Rio” (Relicário), de Gabriel Freitas da Silva. O desfile vai mostrar a Guanabara Tupinambá, conjunto de aldeias indígenas que existia no lugar, hoje, chamado de Rio de Janeiro, antes da chegada dos invasores portugueses. A Beija-Flor de Nilópolis celebra o orixá Exu e todos os criadores e artistas de rua, com o enredo “Se essa rua fosse minha”, enquanto a Vila Isabel investe em mais um enredo ligado à história oficial, narrando a criação de Brasília e com um refrão lembrando o “gigante pela própria natureza” presente em nosso Hino.

Outra forte concorrente ao título, a Mocidade Independente de Padre Miguel, presta tributo a uma grande figura de sua própria história: a cantora Elza Soares, que já desfilou interpretando sambas-enredo de sua escola de coração. O enredo proposto pelo carnavalesco Jack Vasconcelos, ex-Tuiuti e outro talento emergente da Sapucaí, e composto também por Sandra de Sá, é um tributo a Elza. “É emocionante ver o que Sandra fez com o samba, como a letra acaba abraçando todas as mulheres que são como Elza”, diz o jornalista Fabio Fabato, que escreveu a sinopse do enredo da Mocidade.

“Festa não é fuga, é uma forma de resistir”, acredita o historiador Luiz Antonio Simas. “Quanto pior foi o País, melhor o Carnaval, essa tem sido a história. Por isso, espero um grande Carnaval nos desfiles de 2020, com a Avenida narrando e nos ajudando a superar nossas dores.”

Fantasia de composição “Maria das Dores Brasil” | Divulgação

Operação segue há mais de 15 horas na Maré e já deixa 3 mortos e diversos danos

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Violações de direitos agride o direito à vida, de ir e vir e bens materiais dos moradores da Maré

A operação policial que acontece nesta terça-feira (18) teve início por volta de 5h da manhã no Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda e Parque Maré e já passa de 15 horas de duração. A ação está sendo marcada por intensos tiroteios relatados por moradores, com a presença de dois caveirões circulando pelas favelas. As violações durante a operação foram diversas, inclusive a morte de 3 pessoas e o fechamento de unidades de ensino e  de saúde. 

Por volta de 7h da manhã a operação avançou para as favelas Nova Maré e Baixa do Sapateiro, com relatos de tiroteio e com a chegada de  muitas denúncias pelo Maré de Direitos, projeto da Redes da Maré, que atende a vítimas de violações de direitos. Foram identificadas invasões de domicílio sem mandados judiciais, agressões verbais, ameaças, uma casa incendiada, o uso de gás lacrimogêneo por parte dos agentes do Estado.  

Após essa série de denúncias, a equipe da REDES DA MARÉ foi até o local de uma das violações para averiguar e mediar a situação e foi recebida com xingamentos e ameaças por parte dos policiais.  Os agentes de segurança pública, com o fuzil apontado, ordenaram que a equipe da REDES DA MARÉ se retirasse do local de maneira extremamente agressiva. No momento em que a equipe estava se retirando, um grupo de policiais atirou na direção da equipe enquanto outro grupo permaneceu na casa dos moradores xingando-os e quebrando seus pertences. Todos os agentes do BOPE estavam com o rosto coberto e sem identificação. 

Foi também no início da manhã que moradores do Beco da Glória, na Baixa do Sapateiro, presenciaram momentos de terror. Enquanto policiais do Batalhão de Choque circulavam na região, houve registro de tiros sucessivos que atravessaram um prédio onde vivem mais de 3 famílias. Em uma das casas, enquanto duas crianças junto de seus responsáveis tentavam se proteger, um tiro atravessou o fogão próximo ao botijão de gás. Ao saírem da casa, moradores viram o corpo do jovem de 18 anos morto, na frente do prédio. Segundo relato, o jovem foi retirado pelos policiais e levado para o Hospital Geral de Bonsucesso. A mãe do jovem estava no local mas não pode acompanhar o corpo do filho.

Por volta das 11h um grupo de policiais realizou uma abordagem em um bar na Nova Holanda, onde ordenou agressivamente que o proprietário diminuísse o volume da caixa de som. Prontamente o dono do bar desligou o som. Um dos policiais exigiu que os clientes se levantassem e saíssem, um dos moradores não se levantou e foi agredido com uma cadeira por esse policial. Segundo relatos, o policial quebrou a cadeira na cabeça do morador. Logo após arremessou a cadeira e atingiu uma mulher nas costas que andava com uma criança no colo. 

A operação teve momentos mais silenciosos ao longo do dia mas com muitos relatos de violação de direitos. Uma das vítimas relata que um grupo de policiais invadiu sua casa e roubou o videogame que seu filho ganhou recentemente no seu aniversário de 7 anos. A mesma vítima relata ainda que os agentes roubaram alimentos como iogurte e biscoitos e demonstra sua indignação ao afirmar que essa prática é recorrente em dias de operação policial.

Os moradores relatam que em dois casos de letalidade violenta por intervenção policial, os agentes retiraram os corpos já em óbito. Um corpo foi retirado em um lençol e o outro foi colocado em um carrinho de mão. Não tivemos a informação de ter acontecido perícia no local. A terceira vítima foi socorrida por moradores já em óbito. 

Por volta das 17:30h, quando parecia que a operação policial tinha se encerrado, houve um intenso tiroteio na Nova Holanda, onde quatro pessoas foram baleadas. Uma delas foi socorrida por moradores já em óbito. 

A operação desta terça foi realizada quatro dias após o lançamento da 4ª Edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, da Redes da Maré, que traz dados sobre os impactos da política de segurança pública da região, assim como os vividos hoje pelos milhares de moradores  das favelas afetadas. Confira a 4ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré: http://redesdamare.org.br/br/info/22/de-olho-na-mare.

A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informou em resposta ao contato do Maré de Notícias que equipes do Comando de Operações Especiais (COE) realizaram a operação com Policiais do Batalhão de Ações com Cães (BAC), do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) e o Grupamento Aeromóvel (GAM) utilizando dados de inteligência com o objetivo prender criminosos e combater o tráfico de drogas. Houve confirmação da assessoria sobre um ferido na Nova Holanda. Porém até o fechamento desta matéria não obtivemos retorno sobre a existência de mandados e confirmação sobre os mortos pela PMERJ.

Leia a nota da Redes da Maré sobre a operação de hoje:

http://redesdamare.org.br/br/artigo/80/nota-sobre-a-operacao-policial-de-180220

Por uma favela mais verde

Iniciativa de plantio de mudas para a urbanização da Vila do João

Maré de Notícias #109 – fevereiro de 2020

Hélio Euclides

A Rio-92 [ou ECO-92] foi a Conferência da Organização das Nações Unidas sobre “ambiente e desenvolvimento”, que mobilizou o mundo pelas questões sociais e ambientais. O encontro reuniu líderes mundiais que fizeram diversas promessas de preservação do Planeta e conscientizou a sociedade civil para o papel de cada um no cuidado da natureza. Partindo da ideia de levar verde onde só tem cimento, a Associação de Moradores da Vila do João vem plantando mudas em espaços da favela e grafitando os muros próximos. Essa iniciativa de urbanização do espaço público já chama a atenção de quem passa pelas calçadas.

O objetivo, com o plantio, é trazer mais qualidade de vida para os moradores e para quem passa pelas futuras árvores. Para aprofundar essa ideia, a Associação teve a parceria da advogada especializada em direito e gestão ambiental, Cristina Luz, e assim foi idealizado o projeto socioambiental “Viver com Mais Verde”. Ela conta que: “Além do plantio, o projeto contempla ações de reciclagem, gerenciamento de resíduos sólidos e educação ambiental.” Outras parcerias foram estabelecidas com a NHJ do Brasil Container, que doou anéis de concreto e ofereceu mão de obra, e a Fundação Parques e Jardins, subordinada à Secretaria de Envelhecimento Saudável, Qualidade de Vida e Eventos, que contribuiu com 35 mudas que foram plantadas.

“Onde plantamos, na saída da favela, era uma lixeira, o resultado é uma limpeza urbana e as ruas se tornam menos quentes e menos poluídas”, comenta Valtemir Messias, conhecido como Índio, presidente da Associação de Moradores da Vila do João. Ele assegura que o ganho maior é conscientizar todos sobre a importância das árvores. Valdenise Brandão, conhecida como Val, realizou com seus colegas garis as modificações de locais que antes acumulavam lixo e, hoje, são canteiros. “São inúmeras as transformações com o plantio de árvores, como purificar e umedecer o ar, a beleza do local e uma vida mais saudável, sem pontos de lixo. Essas iniciativas realizam mudanças na vida dos moradores, como maior socialização”, explica.

Quem caminha pelas ruas da Maré percebe a necessidade de mudanças. “A favela tem visíveis problemas como a coleta de lixo e acúmulo de entulho, o desperdício de água e ruas com buracos. Para melhorar o local, devemos fazer a nossa parte, como plantar árvores, que ainda dão sombra”, avalia Kátia Muniz, moradora da Vila do João.

Fernanda Santiago, professora de Biologia da Redes da Maré e de Ciências na Luta Pela Paz, avalia a iniciativa como um direito previsto na Constituição Federal, no artigo 225, que fala do meio ambiente. Ela acredita que esse direito promove um ar mais limpo, já que a Maré é um dos locais urbanos mais poluídos, principalmente por não ser arborizada. Acredito que a comunidade escolar precisa falar mais sobre o assunto, de forma que seja levado para casa, para que todos entendam o direito ao ambiente como questão de saúde”, conclui.

A Secretaria de Envelhecimento Saudável, Qualidade de Vida e Eventos informou que plantar mudas numa cidade quente como o Rio de Janeiro é proporcionar qualidade de vida aos cariocas. Os moradores podem participar ajudando na conservação e participando do plantio. Além disso, deu a notícia que haverá uma segunda fase do projeto no início de fevereiro, em parte da Avenida Canal, em frente à Avenida Brasil e a Escola Municipal Professor Josué de Castro.

A arte da preservação

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Profissionais do conserto de roupas, sapatos e panelas resistem ao consumo em massa e provam que preservar pode ser muito melhor que comprar novo

Maré de Notícias #109 – fevereiro de 2020

Flávia Veloso

Qual foi a última vez que você mandou um pertence para o conserto, para não precisar comprar novos? A grande quantidade de lojas, promoções e condições de pagamento facilitam a compra de novos produtos, levando ao descarte dos antigos. Por que não consertar, ao invés de descartar?

Certos produtos, como aparelhos eletrônicos, eletrodomésticos e móveis, ainda recebem uma segunda chance, devido aos preços mais elevados quando comprados diretamente nas lojas, mas tornou-se muito comum que se substituam roupas, sapatos, panelas e demais objetos que não custam tão caro assim.

Os costureiros, sapateiros e funileiros de panelas são profissões que datam milhares de anos na História da humanidade e que resistem ao tempo. Além do conserto de acessórios e objetos, os trabalhadores destes ofícios preservaram seu espaço se reinventando, e até usam suas habilidades para dar outras utilidades aos objetos que chegam às suas mãos.

Neste funileiro de panelas, a Maré confia

José Severino é referência trabalhando com conserto de panelas | Foto: Douglas Lopes

José Severino de Oliveira conserta panelas na esquina da Rua Teixeira Ribeiro com a Flávia Farnese, há 10 anos. Aprendeu o ofício observando outros profissionais trabalhando, e hoje faz conserto de qualquer panela.

Uma cliente fixa de Seu José diz que ele é um dos únicos funileiros de panelas que conhece na Maré, então quando precisa dar uma renovada nos utensílios, sai de sua casa no Morro do Timbau e leva até ele, que sempre faz um bom trabalho.

O funileiro diz que não é uma profissão difícil, mas que, às vezes, precisa de ferramentas de trabalho que só encontra em oficinas, como quando precisa desamassar as panelas.

“Todo dia vem cliente consertar panela, da favela toda. Tem gente que não conserta bem, então o pessoal volta aqui, e eu não cobro caro. De manhã, saio para comprar material, porque também vendo peças de fogão, e à tarde fico aqui, de domingo a domingo”, contou José Severino sobre o dia a dia de sua profissão.

45 anos de experiência na sapataria

José Paulo, o Paulinho – Parque União – conserta e também confecciona sapatos | Foto: Douglas Lopes

Já no Parque União, na Rua Raul Brunini, o sapateiro José Paulo, conhecido como Paulinho, recebe vários pedidos de conserto de sapatos, de clientes que confiam no seu trabalho. E não é para menos, o sapateiro tem 45 anos de profissão. Aprendeu por curiosidade, aos 8 anos de idade, quando ficava sentado na porta de um sapateiro, até que ele se ofereceu para ensinar o ofício ao pequeno José Paulo. Seu trabalho é tão bom, que brinca: “Só não conserto chulé.” A qualidade do trabalho fez com que os fregueses se tornassem fixos, conquistando gente até de fora da Maré. 

Paulinho explica que consertar sapato tem de valer a pena. Não adianta mandar para o conserto se o sapato estiver muito gasto, e isso é analisado pelo sapateiro. E os reparos não são muito baratos, portanto, o produto deve ser de boa qualidade, que valha em loja no mínimo R$150. Paulinho garante que, depois do conserto, é muito difícil que volte a apresentar defeitos.

José Paulo já confeccionou sapatos, mas explica que a confecção é muito difícil para ele fazer sozinho. Ele, inclusive, já inventou um tipo de sapato que não deixa entrar areia, mas infelizmente não conseguiu vender a patente: “Há anos inventei um sapato que não entra areia, inclusive virou notícia, mas não consegui uma empresa que comprasse a patente. Por fim, dei de presente para um rapaz, que sempre traz chuteiras para consertar, e ele afirmou, depois de usar, que realmente não entra areia”, contou, sobre sua criação.

Um novo olhar para as roupas

Creusa Rosa da Silva nasceu no interior de Pernambuco e aprendeu o básico da costura com as matriarcas da família. Aos 18 anos, veio para o Rio de Janeiro, onde já trabalhou como dona de bar, vendedora de flores, de sanduíche na praia, de alho no trem e fazendo quentinhas. A intensa troca de ocupações de Creusa é um traço de seu espírito livre. “Eu não poderia ser uma mulher do tipo ‘Amélia’. Sou dessas mulheres livres. Se eu quero, vou fazer. Temos de respeitar o espaço das pessoas e elas têm de respeitar o nosso”, exalta a pernambucana.

Creusa da Silva – Morro do Timbau – faz ajuste de roupas e cria peças de retalhos das roupas | Foto: Douglas Lopes

Há aproximadamente 10 anos, já morando no Morro do Timbau e onde também é costureira, Creusa começou a se aperfeiçoar no conserto de roupas e reaproveitamento de tecidos assistindo a vídeos na internet, e vem adaptando as técnicas que aprende para dar uma cara nova às peças. “Trabalho com conserto, porque as pessoas precisam. Às vezes, as roupas custam muito caro, então elas consertam. E eu não remendo as peças, porque acho que fica feio, faço consertos que dão um detalhe de customização”, explica sobre seu trabalho diferenciado.

Essa criatividade faz tanto sucesso que ela possui clientes em toda a cidade, muitas na Zona Sul, inclusive. Além do bom trabalho nos consertos, ela ainda transforma roupas: vestidos viram saias, calças ganham customizações e até retalhos e tecidos inutilizados viram bolsas, mochilas e chinelos, que ela vende na favela.

Nem tudo o que é descartado, é lixo, mas…

Jogar fora não pode mais ser uma atitude inocente. O Brasil é o 4º País que mais produz lixo no mundo, com um total de 380 kg de resíduos sólidos produzidos por pessoa ao ano (Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 2018/2019). Certos materiais levam centenas de anos para se decompor.

Você sabia?

O sapato mais antigo já encontrado tem mais de 7 mil anos, é feito de fibra de plantas e foi encontrado no sítio arqueológico Arnold Research Cave, no estado de Missouri, nos Estados Unidos da América. Entretanto, nas pinturas rupestres (pré-históricas, que datam de 10 mil anos antes de Cristo), pode-se identificar sapatos usados pelas figuras humanas.

Você sabia?

Estudos mostram que as pessoas usam roupas há mais de 30 mil anos. As primeiras agulhas eram feitas de ossos de animais ou marfim. Foi só no século XIV depois de Cristo que a agulha de ferro foi inventada. Já a primeira máquina de costura foi patenteada em 1790, por Thomas Saint. O modelo da primeira máquina foi evoluindo até o ano de 1851, quando Isaac Singer, da famosa marca Singer, inventou a máquina de costura com pedal, a mesma usada ainda hoje.