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Da Linha Amarela para a sala de aula: o combate ao trabalho infantil na Maré

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Por João Ker

De acordo com dados divulgados pela Rede Peteca, em outubro, 2,7 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, entre 5 e 17 anos, fazem parte do mercado de trabalho no País. Desses, 71.261 estão no Estado do Rio de Janeiro, onde 97% de “empregos” vêm de áreas urbanas, o que torna o Rio no estado brasileiro de maior incidência nesse recorte. Para quem passa pelo entorno da Maré, na Linha Amarela, os dados não são nenhuma surpresa: por ali, menores de idade se revezam entre os carros e ônibus enquanto tentam vender balas, água, biscoitos, pipoca ou, simplesmente, conseguir umas moedas no trânsito. E é para esses jovens que o Projeto Integração Maré, criado em 2014, procura levar uma  alternativa de vida, unindo diferentes grupos e instituições para que a educação e o desenvolvimento pessoal dessas pessoas não fiquem em segundo plano.

Criança não deve trabalhar, lugar de criança é na escola. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),  a “proteção da infância e

Mapa do trabalho infantil no Brasil, liberado pela Rede Peteca em outubro deste ano

garantia de seus direitos” deveria ser prioridade máxima do governo e seus representantes. Mas, pelos números mostrados acima, o retrato é outro: com 40% das crianças brasileiras vivendo em situação de miséria, não são raros os casos em que um menor de idade se vê na obrigação de abondonar os estudos, amadurecer antes da hora e ajudar no sustento da casa de um jeito ou de outro.

De acordo  com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), um dos órgãos protagonistas no enfrentamento desse problema na Maré, um dos principais desafios no combate ao trabalho infantil é a própria mentalidade do brasileiro sobre o tema. “O retorno que recebemos de nossos agentes, que estão constantemente nas ruas, é que isso tem sido culturalmente aceito pela sociedade, em muitos casos como reflexo de alguns mitos, como o de que ‘é melhor criança trabalhando do que na rua roubando’, ‘quem começa a trabalhar cedo garante o futuro’, e por aí vai. Na verdade, o que a realidade nos mostra é que o trabalho infantil não afasta da criminalidade, sendo muitas vezes o caminho inicial para a prática desses delitos”, explica.

Quem também enfrenta a supremacia de tal “conhecimento popular” sobre o trabalho infantil é Eufrásia Souza, que há 22 anos trabalha na Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, na Defensoria Pública: “as pessoas falam que ‘é melhor criança trabalhando que na rua’ como se elas só pudessem ter essas duas opções na vida. O trabalho infantil é uma violação de direitos e não pode ser  uma questão banalizada, como era antigamente”. Como ela reforça, “é imprescindível que o jovem menor de idade tenha acesso à educação para que seu desenvolvimento como adulto ocorra de forma saudável”.

“Temos o planejamento de uma série de ações em parceria com psicólogos, assistentes sociais e o programa de Jovem Aprendiz do Instituto Brasileiro Pró-Educação, Trabalho e Desenvolvimento (ISBET), tentando criar uma sensibilização para que os empresários recebam essa população das favelas em suas Companhias. Precisamos pensar muito por que essas crianças estão trabalhando e de onde vem isso”, explica Inês Cristina Di Mare Salles, que lidera o programa “Nenhum a Menos”, da Redes da Maré, e também representa a ONG no Projeto Integração. Para ela, há inúmeros preconceitos que essas crianças e adolescentes em situação de trabalho irregular – engraxates, vendedores de bala, etc. – sofrem na sociedade, o que dificulta ainda mais a melhoria de vida delas. “Quando as pessoas veem um menino vendendo ou pedindo alguma coisa, a tendência geral é de marginalizar.

Nesse momento atual do País, temos um pensamento preconceituoso sendo divulgado, então precisamos mostrar outras formas de compreender esse fenômeno”, reforça. A origem do problema, ela lembra, vem desde os primórdios do Brasil escravocrata. “Precisamos lembrar que isso é fruto do nosso processo histórico e mostrar para a população que a favela tem uma história. Ninguém quer pedir dinheiro, cometer um delito ou morar em um lugar sem condições. Isso tudo vem de uma lógica exploradora. Essa pobreza e essa desigualdade social têm cor, etnia e gênero”, explica.

O trabalho infantil é uma forma de continuar perpetuando o aprisionamento de pessoas com baixa renda às margens da sociedade. “Ele interfere no rendimento escolar e, em muitos casos, contribui para a evasão, não permitindo à criança um futuro melhor. O desafio é a criação de ‘atrativos’ que venham atender a necessidade da família, sobretudo, da criança e do adolescente nas suas particularidades. E é nisso que a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos vem tentando trabalhar”, afirma o CREAS.

Uma das saídas que o Projeto Integração Maré encontrou para esses jovens é a inserção no Programa Jovem Aprendiz, no qual eles são obrigados a manterem uma frequência escolar para conseguirem um estágio remunerado. A outra é por meio dos projetos de extensão do Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A nossa ideia não é tirar esses meninos daqui, mas integrá-los em atividades que já existem e que eles mesmos mostrem interesse”, conta Rosana Morgado, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

O fato de Rosana se referir aos jovens atendidos como “meninos” não é mera coincidência. De acordo com dados que vêm sendo levantados pela própria Universidade há mais de um ano, as crianças e adolescentes mais presentes no trabalho infantil do Fundão são do sexo masculino, moradores da Maré entre os 13 e 19 anos, e com algum tipo de núcleo familiar.

Enquanto estão vagando pelo campus, esses jovens são abordados por agentes da Escola de Serviço Social e, com algumas conversas, são apresentados aos programas de extensão oferecidos por ali. “O objetivo é que eles mesmos se interessem por essas atividades culturais, não que sejam forçados a escolher entre uma e outra”, conta Rosana, citando o “Universidade das Quebradas”, da Escola de Letras, como um dos programas preferidos entre os jovens.

No caótico trânsito do Rio, diariamente, é fácil encontrar crianças trabalhando | Foto: Fábio Café

A grande maioria desses menores de idade vive em situações econômicas precárias, em que a falta de renda familiar não pode ser simplesmente ignorada; é preciso que haja não só uma atividade atraente para que eles abandonem a rua, mas também uma forma eficaz de complementar a renda de casa sem prejudicar os estudos. “Por meio de uma escuta profissional, a família é orientada sobre o assunto, para que se construa um plano de acompanhamento, sempre buscando superar esta situação.

A partir disso, os dados entram no Cadastro Único do Governo Federal, para que ela seja beneficiada em programas sociais como Bolsa Família, Tarifa Social de energia elétrica, isenção em concurso público, Programa Minha Casa Minha Vida, além de a criança ou adolescente também ser inserido no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos oferecido pelos Centro de Referência de Assistência Social  (CRAS), cujas atividades são realizadas fora do horário escolar.

Pelo Disk 129, famílias em situações vulneráveis podem encontrar ajuda legal para acessarem esses serviços, desde a regulamentação da documentação necessária até o próprio ato de inscrição. Há ainda o enfretamento de outro problema latente no trabalho infantil: o abandono que esses núcleos familiares sofrem por parte de uma figura paterna. “A realidade que a gente vê é essa: a maioria das crianças que trabalha está apenas sob responsabilidade da mãe, tanto para o sustento quanto para a educação. Se o pai desse algum apoio financeiro, a criança não precisaria trabalhar. É aí que o nosso Núcleo de Atendimento entra com uma ação contra esse homem que não paga a pensão, orientando a mãe e, muitas vezes, chegando a investigar a paternidade da criança, quando necessário”, explica Eufrásia Souza.

Há vida em suas veias

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Hélio Euclides

Ainda na infância, aprendemos que para salvar vidas é preciso ter capa, máscara, um uniforme colorido, ou seja, ser um super-herói. Na maturidade aprende-se que para salvar vidas não é preciso nada disso. Alguns minutos de disposição para sentar-se numa cadeira e realizar uma doação de sangue já é o suficiente. Próximo à Maré, existe o Banco de Sangue Pedro Clóvis Junqueira, localizado no Hospital Federal de Bonsucesso (HFB). Apesar da proximidade, poucos moradores realizam suas doações, o que deixa o espaço vazio.

No dia 11 de outubro, até às 11h, o banco de sangue só tinha coletado oito bolsas. “Isso é nada, tinha de ter acima de 30 bolsas. Precisamos da conscientização de todos, até do patrão, que por lei só libera o funcionário uma única vez ao ano e poderia fazer outras vezes por um ato de solidariedade”, diz Clara Regina, enfermeira. O banco de sangue está capacitado para receber 50 doações diárias, mas a média é de 10 doadores.

Essa situação pode mudar com o exemplo de algumas pessoas. “Há 20 anos virei doadora, porque um amigo do trabalho necessitou; desde então passei a doar. Meu sentimento é de gratidão, tendo a oportunidade de ajudar o próximo. É uma alegria e satisfação de dever cumprido. Já consegui convencer as minhas três irmãs e minha cunhada, hoje todas são doadoras. Acredito que as pessoas deveriam ter mais consciência e amor ao próximo, saindo do comodismo e fazer sua doação regulamente”, afirma Jacy Matias, moradora do Morro do Timbau.

 

Sangue é vida

Para sensibilizar os futuros doadores, a assessoria de comunicação do HFB lembra que o sangue é predominantemente usado em cirurgias do Hospital, de 40 especialidades, incluindo de baleados. Qualquer cirurgia, para ser realizada, precisa de uma bolsa de sangue. “É importante ter doadores fiéis. Não é para doar só quando tem um doente precisando. O nosso problema são os feriados, quando o estoque fica crítico. O Dia do Doador, 25 de novembro, é uma data estratégica para conseguir sangue no final do ano”, ressalta Tânia Marques, responsável técnica pelo banco de sangue. Ela lembra que o homem pode doar até quatro vezes, e a mulher até três vezes ao ano.

“Qualquer sangue é válido. Sangue é sangue. Não existe tipo específico que precisamos, todos são necessários. Sangue é o transplante de um órgão líquido”, conta Conceição Guedes, técnica de enfermagem. Regina Lúcia, médica, revela que o banco não tem sangue disponível se acontecer uma tragédia. “Para mudar essa situação, precisamos acabar com mitos. Ressaltar que o sangue não engrossa e que a medula óssea trabalha direto, a renovação do sangue é imediata”, afirma. João Neto, biólogo, é ainda mais esclarecedor: “um órgão pode ser substituído por uma prótese, mas o sangue só pode ser substituído por ele mesmo”, resume.

A quantidade baixa de bolsas já alerta doadores. “Sempre fui doador para ajudar no deficit que existe”, expõe Henrique Eduardo, doador fiel do Hospital. O incentivo muitas vezes funciona. “Sou doador voluntário desde os 18 anos, começou quando a faculdade pediu aos seus alunos, e continuei”, comenta Yuri Pereira, de 22 anos. Para muitos, nem a pouca idade é um empecilho para a doação. “Senti vontade de ajudar outras pessoas com meu sangue, então conversei com minha mãe, que aprovou e assinou a autorização”, exalta Juliana Paula, de 17 anos.

 

Doação: uma questão de mobilização

Muitas vezes, para atingir um objetivo é preciso um empurrãozinho. É isso que Leonardo Borges, educador físico da Clínica da Família Adib

Leonardo Borges levou a aluna Valdenia Barroso para doar | Foto: Elisângela Leite

Jatene e do Centro Municipal de Saúde Vila do João, realiza com os alunos do projeto Academia Carioca. Ele leva alunos e agentes de saúde para doar sangue no HFB. “Começou como uma demanda da Secretaria Municipal de Saúde numa disputa interna entre as academias cariocas, para saber qual é o professor que levaria mais pessoas para doar”, afirma.

A caravana de doadores começou com 17 doadores, na segunda já estiveram 22 presentes, e a terceira teve 29 voluntários. A última ficou na média com 23 doações. O grupo já pensa na quinta leva de doações, no final de novembro. Uma das descobertas dessas mobilizações foi que Leonardo também se tornou um doador. “Eu sempre tive muito medo da agulha, e cada um incentivou o outro. Só incomoda no início quando fura o braço, mas depois passa, os profissionais nos deixam calmos. Agora sinto satisfação de ajudar alguém, foi uma das melhores coisas que fiz”, conta.

Uma de suas alunas é Valdenia Barroso, moradora da Vila do João, que também sentiu a felicidade de ser doadora de sangue. “Eu tinha medo da agulha, depois vi que não dói e fiquei pensando na próxima. Me colocaram nessa, doei duas vezes e gostei. É uma emoção poder ajudar a alguém que precisa do nosso sangue. Recomendo a quem possa, que doe”, revela. Valdenia agora vai fazer uma cirurgia e começa a mobilizar outros a doarem para ela. “É um ciclo, agora incentivo que outros doem para mim”, resume.

 

O centro de distribuição de sangue

O Hemorio é um hemocentro que distribui sangue para 180 hospitais públicos, incluindo grandes emergências, como a dos hospitais Getúlio Vargas, Souza Aguiar e Miguel Couto, maternidades, Unidades de Tratamento Intensivo Neonatais e conveniados com o Sistema Único de Saúde (SUS). No estado do Rio de Janeiro, apenas 0,98% da população doa sangue com regularidade. A Organização Mundial de Saúde orienta que entre 3 e 5% da população deve doar para que os estoques se mantenham sempre regulares. Cada bolsa de 500ml de sangue pode salvar quatro vidas.

O Hemorio lembra que o organismo repõe o volume de sangue doado no mesmo dia. A recomendação é beber bastante líquido, e não fazer esforços físicos. Destaca que o mais importante é compartilhar a experiência com amigos para que eles também se sintam motivados a doar sangue.

 

Além do sangue, há a doação de medula óssea

O Instituto Nacional de Câncer (INCA) coordena o registro nacional de doadores voluntários de medula óssea. O cadastro conta com mais de 4 milhões de inscritos. Com isso, a chance de se encontrar um doador compatível pode chegar a 64%. Para aumentar essa porcentagem é necessário acrescentar um número maior de doadores e fazer a atualização de cadastros.

O transplante de medula óssea é um tipo de tratamento proposto para algumas doenças que afetam as células do sangue, como as leucemias e os linfomas. Consiste na substituição de uma medula óssea doente, ou deficitária, por células normais da medula óssea, com o objetivo de reconstituição de uma nova medula saudável.

A medula óssea é um tecido líquido-gelatinoso que ocupa o interior dos ossos, sendo conhecido popularmente por “tutano”. Ela desempenha um papel fundamental no desenvolvimento das células sanguíneas, pois é lá que são produzidos os leucócitos, que são os glóbulos brancos; as hemácias, que são os glóbulos vermelhos; e as plaquetas. Essas são as células substituídas no transplante de medula.

A coleta de células para o transplante pode ser feita por meio de uma pequena cirurgia, sob anestesia geral, de aproximadamente 90 minutos, na qual são realizadas de quatro a oito punções com agulhas nos ossos da bacia, para que seja aspirada parte da medula. Retira-se um volume de medula de 15ml por quilo de peso do doador. Essa retirada não causa qualquer comprometimento à saúde do doador, que recebe alta no dia seguinte ao procedimento. A medula se recompõe em 15 dias, sem nenhum prejuízo à saúde.

No momento, o Hemorio não está fazendo o cadastro para doação de medula, mas no Instituto Nacional de Câncer (INCA) se faz a coleta de sangue e o cadastramento de doadores voluntários.

De volta ao passado

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Hélio Euclides

“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é, e poder me orgulhar, e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. Muitos se lembram com saudosismo dessa letra do Rap da Felicidade, de 1994, e, provavelmente, se recordam de tantas outras músicas que marcaram época. Esses raps estavam nos bailes das antigas, que reuniam canções brasileiras e funk melody internacional, como It’s Automatic, que todos cantavam “É tchô tchô méri”, Spring Love e Whoop! There it is, que virou “Uh, tererê”. Esse espírito irreverente está de volta com as Festas Flashback.

A diferença encontrada é que os bailes das antigas são compostos por músicas mais melódicas e temas mais românticos, seguindo mais fielmente a linha musical do freestyle americano. Alguns desses funks traziam em suas letras temas de protestos, humildade e paz. O motivo era que, na época, ocorriam os chamados “corredores”, quando dois grupos rivais, chamados de “lado A e lado B”, se enfrentavam, com direito a espancamentos no “corredor polonês”. Então, “os antigos sempre pediam paz, pois o povo brigava e aconteciam confusões. Queriam com isso acabar com as rivalidades. Hoje é só paz, temos maturidade e formamos famílias”, destaca Clayton Pereira, de 37 anos.

Uma dessas festas flashback acontece na Nova Holanda, que além de Clayton na organização, reúne os amigos Roy Buiu, de 41 anos, Thiago Goati, de 33 anos, e Neno D2, de 37 anos. “Em 2008, começamos na laje e depois com equipe de som. Antes não tinha essa organização, nem a pretensão de realizar outras. Já na rua, a primeira festa aconteceu no dia 15 de abril, com os mais velhos querendo a segunda edição. Queriam ouvir este ritmo, que os acompanha sempre, mas que não está presente com frequência nas baladas atuais. Então, fizemos outra no dia 12 de agosto, que reuniu de mil a 1.500 pessoas. A ideia é produzir quatro eventos por ano”, exalta Roy Buiu.

“O desejo de fazer esse baile na nossa comunidade surgiu quando vimos outros eventos em outras localidades. O objetivo é resgatar o antigo funk, uma época, numa festa sem violência e sem apologia. Desejamos uma unificação pelo funk”, destaca Thiago Goati. Hoje, acontecem muitas dessas festas pela cidade, nas quais os participantes vão uniformizados e com bandeiras. “O objetivo é concentrar o máximo de participantes, com uniforme e bandeira; tem baile que esse conjunto ganha troféu ou balde de cerveja. Cada equipe leva, em média, 70 pessoas. É uma concentração de amigos de Duque de Caxias, Bangu, Jacarepaguá, Pechincha, Cidade de Deus, Alemão, Jacaré, entre outros. Esses eventos servem para aproximar amigos que não se viam há muito tempo”, diz Thiago.

Neno D2 relembra que começou a ir ao baile quando tinha 14 anos. “Nós frequentávamos o baile ainda na adolescência, pedíamos para a mãe, e pegávamos a matinê no Bonsucesso Futebol Clube, no domingo, que acabava às 22h. Já na Maré, por volta dos anos 1990, participávamos do baile no CIEP Samora Machel, que só terminava quando a ‘poliçada’ chegava. Esse baile durou cerca de dez anos”, conta. Hoje há um roteiro de “funk das antigas”. As datas são combinadas para não baterem. Além da Nova Holanda, há festas nesse estilo na Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Vila dos Pinheiros e Vila do João. “O pessoal vem para cá e vice-versa, quebramos a barreira. Compartilhamos o carinho e retribuímos visitando o outro. Nas festas, percebemos três gerações que se criaram ouvindo esse funk. O morador traz a sua cadeirinha e vem. Nos eventos há pula-pula para a criançada e tira-gostos para todos”, fala Roy. Tiramos do bolso cerca de três mil reais, com gasto de equipe, bolo e fogos, mas estamos contentes. Os comerciantes estão chegando junto, e somos agradecidos. Qualquer ajuda é bem-vinda”, conclui Roy.

A próxima edição da festa flashback será no dia 11 de novembro, na Rua Sargento Silva Nunes, Nova Holanda. Antes, no dia 04, terá uma festa no Pontilhão, entre a Vila dos Pinheiros e o Morro do Timbau, com Mc Marcinho. Imperdível!

O racismo disfarçado de intolerância religiosa

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Entre agosto e outubro, 42 denúncias contra casas e praticantes de umbanda e candomblé no Rio

João Ker

Santos, orixás, espíritos, entidades, deuses e ancestrais. Como “Estado laico”, o Brasil, em tese, deveria respeitar a manifestação de todo e qualquer tipo de fé, seja ela praticada em igrejas, mesquitas ou em terreiros. Ainda assim, num País onde 86,8% da população se declaram cristã, de acordo com o IBGE, os casos de intolerância religiosa chegaram a 697 denúncias apenas entre 2011 e 2015. No Rio, esse índice já cresceu 119% no ano passado, com um enorme agravante: a maioria dos casos ocorre contra religiões de matriz africana, provando que mesmo 130 anos após o fim da escravidão, o racismo continua fazendo vítimas pelo País.

“Nos últimos meses, observamos um aumento considerável no número de casos de intolerância religiosa no Estado, principalmente contra seguidores e casas de umbanda e candomblé. Apenas entre agosto e outubro, já foram 42 denúncias, cerca de uma a cada dois dias”, admite Monalyza Alves, assessora técnica da Subsecretaria de Direitos Humanos, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro. Para ela, a mais alarmante semelhança entre esses números são os requintes de crueldade em cada ato, que atinge desde crianças em sala de aula até idosos praticantes.

No total, 91% dos casos de intolerância registrados no Rio são contra religiões como a umbanda e o candomblé, que historicamente já representam uma resistência da população afrodescendente desde que nasceram no Brasil. “Claramente, esse número reflete um racismo que está impregnado na sociedade. E, assim como ele, o preconceito religioso também tem sua origem na colonização do País”, afirma Monalyza.

Apesar das inúmeras vertentes e particularidades, duas religiões de matriz africana são as mais presentes por aqui: o Candomblé e a Umbanda. Trazido ao Brasil pelo intenso fluxo de escravos africanos entre os séculos XVI e XIX, o candomblé desembarcou no País sob o preconceito de “feitiçaria”, uma vez que o Cristianismo vigente na época não tolerava suas divindades (a religião dos povos indígenas passou pelo mesmo processo, vale lembrar). Para que a população afrodescendente pudesse prosseguir com os cultos, os orixás foram se misturando aos santos da Igreja Católica e o sincretismo que surgiu foi sendo praticado em terreiros fechados e escondidos. Mais tarde, durante a década de 1920, a umbanda se desenvolveu no Rio de Janeiro, mesclando uma série de referências como o kardecismo espírita, o cristianismo, a cabula e o próprio candomblé.

Mas se antes a repressão vinha pelas mãos dos senhores da Casa Grande, hoje o preconceito se manifesta até entre os traficantes das periferias cariocas. Em setembro, um vídeo no qual um dos líderes do tráfico de Nova Iguaçu obriga uma Ialorixá (conhecida popularmente como mãe de santo) a destruir seu próprio terreiro viralizou, expondo em nível nacional um problema que não mostra sinais de diminuição. O homem foi preso, mas ainda assim o discurso preconceituoso persiste.

“Nós já levamos a questão às Polícias Militar e Civil para que as medidas cabíveis sejam tomadas. Mas ainda temos um longo caminho para percorrer”, explica Monalyza. Dentre as medidas de prevenção, mapeamento e oposição a esses crimes, ela cita a importância do Disque Combate ao Preconceito (2334 – 9551), que também atende vítimas de LGBTfobia e racismo. Além disso, foi aprovada pelo governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), ainda em processo de implantação. “Ela será uma ferramenta importante na luta contra esses casos”, afirma a assessora.

Enquanto a Delegacia não fica pronta, o sentimento geral que invade os praticantes de religiões africanas no Rio é o medo ou a descrença de que este quadro melhore. “Não vejo uma luz no fim do túnel para isso e nem como mudar essa situação. Até hoje as nossas religiões ainda são vistas como ‘negativas’ ou ‘demoníacas’, da mesma forma que acontecia quando elas surgiram”, explica a estudante Victoria Régia, praticante de candomblé. “É muito bizarro sentir que os cristãos tentam enquadrar a minha religião no padrão deles, como se fosse uma imposição necessária. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, são duas formas de trabalhar a fé completamente diferentes”, reclama.

Para ela, o crescimento desses crimes de intolerância no último ano pode ser diretamente relacionado a figuras como o bispo Marcelo Crivella (PRB) na Prefeitura da capital fluminense. “A imagem dele está completamente vinculada ao protestantismo, que tem um enorme histórico de perseguição às religiões de matriz africana. Esse não é um governo onde eu e meus irmãos de fé conseguimos nos sentir seguros. Na verdade, eu diria que a situação até piorou com ele”, rebate a estudante. A apreensão não é para menos. Ainda em outubro, a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro realizou um verdadeiro culto evangélico em seu interior, com direito a músicas gospel e mãos dadas entre os políticos, todos liderados pelo vereador e também bispo Inaldo da Silva (PRB), colega de Partido do prefeito.

Pessoas de diversas religiões participaram da caminhada em Copacabana no dia 17 de setembro | Foto: Elisângela Leite

Mas se depender do povo carioca, ainda haverá resistência. Um mês antes do culto no plenário, mais de duas mil pessoas já haviam lotado a Avenida Atlântica, em Copacabana, em uma marcha a favor da livre expressão da fé. O evento, batizado de “Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa”, foi promovido pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e, mais do que crenças africanas, reuniu também judeus, islâmicos, budistas, cristãos e até wiccas. O objetivo foi mostrar que, independente do credo, é possível conviver de maneira pacífica em sociedade. “O momento foi lindo, porque mostrou que ainda temos alguns aliados. Pessoas que estão dentro dessas outras religiões e que não nos olham de forma pejorativa”- declara Victoria, que foi à marcha acompanhada do amigo Victor Soriano.

Representante da CCIR, o Babalowô Ivanir dos Santos, um dos organizadores da Caminhada, explica que o momento não é de baixar a guarda e, sim, de continuar lutando: “devemos exigir que esses casos de intolerância religiosa e racismo sejam apurados com a máxima urgência possível.”

A preocupação é reverberada pela Secretaria Estadual de Direitos Humanos, que insiste em combater os casos de todas as formas, auxiliando sempre que possível quem sofre com esses crimes. “Nós oferecemos assistência jurídica, psicológica e social para as vítimas. E, além do Disque Combate ao Preconceito, a Secretaria está em constante contato com associações religiosas e com os órgãos de Segurança para mapear esse tipo de ocorrência e atuar para que esses agressores sejam punidos”, alega a assessoria.

O meio mais significativo nesse combate, Monalyza reafirma, é a denúncia. Apenas por meio dela é que os dados reais poderão ser coletados e, assim, a urgência desse quadro ser levada a um patamar nacional. “Muitas pessoas deixam de denunciar, por não acreditarem em uma punição ou por medo de represálias. Isso dificulta que consigamos ter um retrato real da intolerância no estado. Por isso, reforçamos sempre a importância da denúncia como delito de preconceito religioso”, explica.

Questionada pelo Maré de Notícias, a Prefeitura do Rio disse que “a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, através da Subsecretaria de Direitos Humanos e das Coordenadorias de Respeito à Diversidade Religiosa (CRDR) e de Igualdade Racial, tem se manifestado de forma contumaz contra toda forma de preconceito religioso e racial, repudiando atos de violência e agressões.”

ONDE DENUNCIAR

Disque Combate ao Preconceito (2334 – 9551), que também atende vítimas de LGBTfobia

Na Maré a arte tem liberdade de ser arte

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Daniele Moura

Pode entrar. Por aqui, arte, na Favela da Maré, você tem espaço. Em tempos de censura à arte, inconstitucional vale destacar, em alguns museus de capitais brasileiras, a Maré, com liberdade, abre as portas de seus espaços culturais para receber duas grandes exposições em homenagem ao Dia da Consciência Negra. A vida da escritora, professora de escola pública e ativista do movimento negro, Conceição Evaristo, é apresentada ao público do Rio de Janeiro até o dia 10 de dezembro, no Centro de Artes da Maré. São textos, manuscritos de cartas e poemas que fazem o visitante viajar para a favela mineira em que a escritora cresceu. Graças à sua mãe, a lavadeira Joana Josefina Evaristo Vitorino, Conceição cresceu rodeada de palavras. A matriarca, inspirada em Carolina Maria de Jesus, escrevia em cadernos recolhidos nas ruas, os pensamentos sobre o dia a dia, as dificuldades da vida na favela, poemas e frases soltas. Uma inspiração e tanto para uma criança curiosa.

Conceição, que nasceu numa favela da Zona Sul de Belo Horizonte, vem de uma família muito pobre de 9 irmãos. Desde de muito cedo, teve de conciliar os estudos trabalhando como empregada doméstica, até concluir o curso Normal (magistério), em 1971, já aos 25 anos. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde lecionou em escolas públicas de favelas e periferias, além de estudar Letras na UFRJ. Nos anos 1980, entrou para o movimento negro e, em 1990, estreou na literatura, com obras publicadas na série Cadernos Negros. A escritora é doutora em Literatura pela Universidade Federal Fluminense.  Suas obras abordam temas como a discriminação racial, de gênero e de classe e já foram traduzidas para o inglês.  Uma referência de mulher negra.

 

O trabalho educativo

Pâmela Carvalho com um grupo de estudante no trabalho educativo da Exposição | Foto: Elisângela Leite

Na Exposição, exemplares de publicações reconhecidas, como “Ponciá Vicêncio”, seu primeiro romance, “Becos da Memória”, “Poemas da Recordação” e “Outros Movimentos” e os livros de contos “Insubmissas Lágrimas de Mulheres”, “Olhos d´Água” e “Histórias de Leves Enganos e Parecenças”, estão à disposição do visitante de todas as idades, incluindo estudantes que também podem participar de atividades educativas. Ian Alex dos Santos, de 10 anos, ficou feliz em saber que há uma referência negra na literatura. “Eu acho bom saber que é possível uma pessoa negra estar escrevendo e ser famosa. Eu achei muito legal”. Já Mateus disse que saiu mais sabido da Exposição. “Aprendi sobre racismo para não ficar zoando os outros por cauda da cor. Não leva a nada”, disse o menino.

Três vídeos foram produzidos especialmente para a Mostra. Um deles traz imagens de Conceição Evaristo em diferentes situações, com a voz da autora declamado trechos de suas obras e falando sobre a sua vida. Outro, registra a leitura feita por ela de trechos do livro “Becos da Memória”, explicando o contexto em que o livro foi criado. O último tem depoimentos de professoras e alunas de escola do Rio de Janeiro sobre a literatura da escritora mineira.

A professora da Rede Municipal de Ensino, Bruna Bastos, levou sua turma para conhecer a Exposição. “Eles amaram, eu também. Me emocionei com o poema que ela faz referência à avó. A gente sempre pode ter exemplos de gerações mais antigas para melhorarmos. Falo isso muito para meus alunos. Sempre é possível.”

Pamela Carvalho, que trabalhou por dois anos no MAR, Museu de Arte do Rio, está agora no educativo desta Exposição na Maré. “A coisa mais importante é estar nesse território, estamos na favela da Nova Holanda falando de uma mulher negra, potente, que pode ser a referência de identificação para muitas crianças daqui. Eu nasci na favela, cresci na favela, não me lembro de ter sabido de uma Exposição como essa acontecendo em territórios de favela no Rio. Essa história que estou vivendo é um marco na existência dessas crianças e das pessoas que por aqui moram”- completou.

Visitantes na Mostra Diálogos Ausentes no Galpão Bela Maré | Francisco Valdean

A Mostra transpira as “escrevivências” de Conceição, como ela mesma se refere ao seu trabalho – uma escrita que nasce das vivências, vivendo para narrar, narrando o que vive. Toda a sua obra é permeada por questões raciais, de gênero e de classe, explorando, sobretudo, a condição e a complexidade da mulher negra. Seus romances, contos e poemas revelam a condição dos negros no Brasil, e podem ser considerados como grandes ferramentas na luta contra o racismo e o machismo, tão presentes na sociedade. “Minha escrevivência vem do cotidiano dessa cidade que me acolheu há mais de 20 anos e das lembranças que ainda guardo da minha”, diz a escritora, que hoje mora no Rio.

A poucos passos dali, também é possível refletir sobre machismo e racismo. No galpão Bela Maré, a Mostra “Diálogos Ausentes’, em parceria com o Observatório de Favelas, apresenta obras de 17 artistas negros brasileiros das artes visuais, cênicas e do audiovisual, entre individuais e coletivos, como André Novais, Eneida Sanches, Dalton Paula e Coletivo Negras Autoras.

A Exposição trata das questões raciais traduzidas em objetos, instalações, vídeos, performances, fotografias, esculturas e projeções, e foi fruto de uma série de encontros realizados durante este ano e o ano passado, com o objetivo de analisar a representação dos negros nos diversos segmentos artísticos e expressões culturais. No Rio, a edição desta Mostra conta com obras que não foram vistas em São Paulo, de Eustáquio Neves, Heberth Sobral e Gessica Justino – esta última é carioca, como Yasmin Thayná e Aline Motta também com trabalhos ali presentes. A curadoria da Mostra Diálogos Ausentes é de Rosana Paulino e Diane Lima.

Tanto a Mostra do Centro de Artes, quanto a do Observatório de Favelas passaram pelo Itaú Cultural em São Paulo e vieram, especialmente, para a Maré. São mais de 300 visitantes por semana que os dois centros culturais estão recebendo nas Mostras. “Tem sido muito significativo, a gente não tem registro na cidade de exposições com obras feitas por artistas negros, falando para o negro sobre questões que envolvem o negro de favela. A única é esta aqui, e é um assunto que precisa cada vez mais ser falado, disse Michele Barros, educadora do Galpão Bela Maré.

 

 

 

Maré de Notícias #81

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