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CEDAE não cumpre promessas na Maré

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Maré de Notícias #88 – maio de 2018

Depois de seis anos, obras importantes para a população não saíram do papel

Hélio Euclides

Um dia, os moradores abriram o Jornal e lá estava uma boa notícia: a Maré teria uma grande obra de esgoto. Mas a promessa não saiu do papel. No Maré de Notícias, Edição nº 35, de novembro de 2012, o diretor de Distribuição e Comercialização Metropolitana da CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgoto, Marcelo Motta, assegurava que a estatal realizaria obras para a melhoraria da rede de esgoto e iniciaria o tratamento dos resíduos na Estação da Alegria, no Caju. Já na Edição nº 44, de agosto de 2013, o Jornal tornava público um questionamento sobre o início das obras no sistema de esgoto. E, por fim, um ano depois da primeira promessa, na Edição nº 47, o então presidente da CEDAE, Wagner Victer, informava que as obras de esgotamento sanitário começariam em breve.

 O tempo passou e….

De lá para cá, cinco anos se passaram e a situação piorou. “No passado, tivemos o Marcello Motta na reunião do Coletivo Maré que Queremos. Foi prometido um atendimento semanal nas comunidades. A empresa precisava avançar na parte funcional e de estrutura, com novos equipamentos. Sobre a obra, até agora, só promessa”, reclama Pedro Francisco, presidente da Associação de Moradores do Conjunto Esperança. A Empresa tem uma base local. “A CEDAE Maré faz o máximo, pois não tem estrutura e condição de trabalho”, declara Luciano Aragão, vice-presidente da Associação de Moradores de Marcílio Dias.

Para Vilmar Gomes, o Magá, presidente da Associação de Moradores do Rubens Vaz, “a obra que foi prometida nem saiu do papel. Hoje enxugamos gelo, desentope num dia e entope no outro. Tem de trocar o encanamento, que são manilhas esfareladas”, esclarece. Ele entende que é necessário um investimento na CEDAE Maré. “O caminhão desentupidor diminuiu para três dias o atendimento na Maré, não é suficiente. São duas equipes de serviço referentes à água, e outras duas de esgoto. É pouco. Esses profissionais ainda desentopem usando tubos de PVC”.

Em frente ao Bloco Oito, no Conjunto Pinheiro, existe um esgoto entupido. Para piorar, um bolsão de água da chuva se forma próximo ao campo de futebol Toca da Raposa; o resultado é a mistura de esgoto com água da chuva, o que pode acarretar doenças. “Tem de ter projeto de reformulação do esgoto. As caixas estão todas cheias e já está minando por baixo do prédio”, reclama Francisco Fábio, morador do local.

 “Tudo que envolve essa estatal acaba assim, promessas, muitos milhões de reais investidos, resultados ambientais pífios. Infelizmente, o que era para ser uma Empresa estratégica tanto do ponto de vista de saúde pública como ambiental, é o que é. Em tudo que essa Empresa está envolvida, tal como Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), Programa de Saneamento Ambiental (PSAM) e Cena Limpa, com algumas honrosas exceções, simplesmente não dá em nada”, avalia o biólogo Mário Moscatelli.

 Uma Maré de promessas

Na Edição nº 35 do Maré de Notícias, Marcelo Motta revelou que o investimento seria de R$ 35 milhões somente na Maré, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2. Um conjunto de intervenções, como o novo tronco-coletor do Faria Timbó. Na Maré, as obras contemplariam boa parte das comunidades, indo do Parque União até o Conjunto Esperança. O início das obras foi previsto para março de 2013, com prazo de 720 dias para a construção de seis elevatórias de pequeno porte. A obra seria de ligação domiciliar, com novas redes coletoras de esgoto.

Já na Edição nº 47, Wagner Victer prometera que as obras de esgotamento sanitário começariam em março de 2014. A obra traria benefícios para a Baía de Guanabara, ligando Marcílio Dias, Praia de Ramos e Roquete Pinto à Estação de Tratamento da Penha, e o restante da Maré à Estação da Alegria. Por fim, criaria um cinturão nas galerias para o fim do esgoto que cai clandestinamente nos canais.

Procurada, a CEDAE respondeu que na Maré, devido à ocupação desordenada do solo, é necessário readequar a rede. Para isso, a Companhia está finalizando ajustes no projeto que visa adaptar a rede existente e implantar novas redes para direcionar o esgoto da região à ETE Alegria.

Das palafitas ao asfalto, Seu Joaquim

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O paraibano chegou ao Rio em 1948 e acompanhou a construção da Maré

Felipe Rebouças em 05/05/2018, atualizado em 24/04/2021.

“Era ele que erguia casas, onde antes só havia chão .Como um pássaro sem asas, ele subia com as casas, que lhe brotavam da mão”.

Quando a maré cheia inquietava a todos, quando caranguejos e humanos dividiam o mesmo espaço, desde esse tempo Joaquim Severino da Silva, de 87 anos, faz parte da Maré. Aos 17 anos, em 1948, migrou de Mamanguape, cidade no interior da Paraíba, para o Rio de Janeiro, em busca de uma oportunidade de emprego na Construção Civil. Em sua terra natal, Joaquim deixou os avós que o criaram, um casal de irmãos e uma plantação de grãos.

Ao chegar ao Rio, em meados do século XX, encontrou um ambiente de desenvolvimento urbano, às vésperas da Copa de 1950. Também viu duas pistas recém-inauguradas, cortando as Zonas Norte e Oeste da cidade, a Avenida Brasil. Pela Avenida, Joaquim chegou à Maré e foi atrás de João Gordo, figura importante para os retirantes que chegavam. “Todo nordestino que vinha tinha seu endereço e procurava por ele”, contou Seu Joaquim.

O paraibano conseguiu emprego numa Construtora, em São Cristóvão; também colaborou na construção de palafitas: “quando a maré enchia, a gente tinha de se ajeitar para não se molhar muito”, relembrou. Mas depois de dois anos dormindo de forma improvisada, a saudade do Nordeste bateu e o aventureiro retornou a Mamanguape, próximo de completar 20 anos de idade, em 1950.

De volta ao aconchego

Na cidade de origem, Joaquim conheceu Luzia. No dia 19/02/1956 eles se casaram. Tiveram três filhos: duas meninas e um menino. Depois de uma década na calmaria, Joaquim decidiu retornar ao Sul. Em junho de 1961, 13 anos depois, retornou ao Rio de Janeiro, sem esposa e filhos, e se deparou com uma Maré que mudava rapidamente. Ele seguiu trabalhando como pedreiro em algumas regiões da cidade, mas nunca abandonou os serviços na Maré. As comunidades do Parque Maré, Morro do Timbau e Baixa do Sapateiro, ocupadas e instituídas durante a primeira passagem de Joaquim pelo Rio, já estavam consolidadas. Parque Rubens Vaz e Parque União eram novidades. E a extinção das palafitas era questão de tempo na medida em que os caminhões carregados de terra eram mobilizados pelos moradores da Avenida em direção ao mangue. “Começamos a aterrar e subir os barracos nas ruas Oito, Oliveira, Beira-Mar e Nova”, conta, entusiasmado.

Joaquim conseguiu dinheiro para alugar uma casa em Cordovil e comprar quatro passagens de Mamanguape para o Rio de Janeiro. Luzia e os filhos vieram se aventurar no Sul. O País passava por um período desenvolvimentista, caracterizado pelas grandes obras, que prometiam emprego e mais mobilidade nos centros urbanos, especialmente nas capitais do Sudeste. Diversas favelas do Rio sofreram remoções, deslocamentos forçados e um incêndio – até hoje não explicado. A favela da Catacumba, em 1967, foi devastada pelo fogo, onde hoje é um parque público.

Nesse contexto, Seu Joaquim e milhares de pessoas buscaram refúgio em núcleos populares de habitação, sobretudo aqueles em expansão, como era justamente o caso da Maré, na década de 1960. A população das favelas no Rio cresceu exponencialmente e a família de Seu Joaquim e Dona Luzia acompanhou todo o processo.

 De volta à Maré, pra ficar

Após passar alguns meses em Cordovil, a família mudou-se novamente para a Maré. O Distrito da Nova Holanda foi aterrado durante o Governo Carlos Lacerda, que conduziu um projeto de conjuntos habitacionais, entre os quais a Cidade de Deus, Vila Aliança, Vila Kennedy e Cidade Alta.

Na Maré, a família se mantém até hoje; ganhou mais sete filhos, que geraram 25 netos, 26 bisnetos e quatro tataranetos. Ao todo são 65 pessoas, além do casal, e 62 anos de casamento de Dona Luzia e Seu Joaquim. “A Nova Holanda é um canto bom de viver, aqui é muito tranquilo, ninguém perturba ninguém, ninguém rouba ninguém (..) Todos os meus filhos estudaram aqui e, graças a Deus, estão todos formados”.

A história de Seu Joaquim nos faz refletir sobre o Rio de Janeiro do século passado, em que estão as raízes dos problemas vividos hoje. Segundo ele, “analfabeto é quem não sabe o que aconteceu, o que está acontecendo e o que pode acontecer no futuro”.

Ao longo de todas as gestões, a política de urbanização e modernização sempre seguiu uma linha: tratar a parcela mais pobre da população como um problema que se deve varrer para debaixo do tapete. Hoje, Seu Joaquim trabalha num armazém, no 1º andar de sua casa, além de atuar como pastor, às terças, quintas e domingos, na Rua 7 de Março. Quando perguntado como conseguiu tudo o que tem na vida, ele responde com serenidade: “evite falar muito, fale pouco; evite querer enxergar tudo, enxergue o que é necessário; e ouça bastante”.

Seu Joaquim morreu aos 90 anos,em 24 de abril de 2021, em decorrência de complicações de uma pneumonia bacteriana.

Foto: Bira

De costas para a África

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Maré de Notícias #88 – maio de 2018

As dificuldades da Lei que resgata nossas raízes africanas na Escola

Jorge Melo

Dizem que, no Brasil, existem “leis que pegam e leis que não pegam”. E é, no mínimo, desconfortável reconhecer que, depois de 15 anos, Leis tão importantes quanto as de números 10.639 e 11.645 ainda não pegaram. A Lei, de 09/01/2003, inclui no currículo oficial da Rede de ensino pública e privada a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”.  A Lei determina ainda que a História e a Cultura Afro-brasileira sejam ministradas no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História. Em março de 2008, a Lei recebeu um acréscimo, tornando obrigatório também o ensino da Cultura Indígena (Lei nº 11.645).

Segundo Ana Paula Brandão, gerente de Mobilização e Produção do Canal Futura, “a Lei foi resultado de uma luta histórica do movimento negro”.  De acordo com Ana Paula, “há um aspecto fundamental nessa Lei, porque altera a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), incluindo nos currículos da Educação Básica a temática étnico-racial de forma transdisciplinar”.

Ana Paula coordenou A Cor da Cultura, um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, no Canal Futura e da Seppir – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. O projeto teve início em 2004, um ano após a Lei, e produz audiovisuais e ações culturais valorizando o ponto de vista afirmativo.

De acordo com os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, divulgados em dezembro de 2015 pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, os negros e pardos representavam 54% da população brasileira; no entanto, sua participação no grupo dos 10% mais pobres era muito maior: 75%. Por outro lado, a participação dos negros e pardos no grupo do 1% mais ricos não chegava a 18%. Como se vê, a desigualdade no Brasil, além de enorme, tem um forte componente racial.

A realidade nas escolas

Marcelo Belford é diretor do recém-inaugurado Colégio Professor João Borges de Moraes, na Maré. Ele elogia as Leis 10.639 e 11.645 e diz que elas são muito importantes. No entanto, considera que “não vieram precedidas de uma ampla discussão com os professores, para buscar formas de compreender os desafios da implantação de novas disciplinas e um trabalho com o professor, no sentido de prepará-lo para os novos desafios”.

Marcelo Belford diz ainda que inovações desse tipo precisam de formação, material didático, recursos e mesmo redistribuição da grade curricular. Mas conclui dizendo que “ainda há tempo para se rever a questão e fazer as correções necessárias”.

André Gomes é professor de História no Colégio Professor João Borges de Moraes, na Maré. Segundo ele, “a Lei não pegou”, porque ainda há dificuldade da própria sociedade brasileira de perceber a importância da África e do negro na formação do nosso País, “e se a gente não consegue fazer essas conexões fica difícil”.   André diz que nas aulas que dá, durante todo o ano letivo, sempre incluiu a questão negra e a importância dessa cultura, mas não pode considerar isso um programa, “é uma iniciativa pessoal”.

Mudanças visíveis

Segundo Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, “a questão maior é que não temos como fiscalizar o cumprimento das leis nos espaços de formação públicos e privados do País. A implementação foi estabelecida, a questão de fundo é a aplicabilidade que ainda não acontece tal como previsto na Lei”.

Mas Ivanir é otimista: “é inegável que estamos tendo grandes avanços, como cadeiras docentes voltadas especificamente para História da África e História Afro-brasileira, o crescimento significativo de dissertações e teses voltadas para esse tema, livros e pesquisas publicadas e também um processo muito forte de enegrecimento da nossa juventude negra que, a cada dia, vem afirmando com maior veemência as suas raízes africanas, promovendo um fortíssimo processo de desbranquiçamento”.

Direitos para todos os Humanos

Maré de Notícias #88 – maio de 2018

O respeito à Lei não significa apoio à impunidade

Maria Morganti

 “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Assim traz o 1º artigo de um dos documentos mais traduzidos da História –  cerca de 500 idiomas -, e que, em 2018, completa 70 anos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Essa Carta inclui ainda afirmações como “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias no seu domicílio”.

 A Declaração nasceu três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1948. Mais de 6 milhões de judeus foram assassinados em campos de concentração alemães. Segundo o historiador Luiz Antonio Simas, as nações estavam chocadas.

 A Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945, estabeleceu regras para que todas as pessoas, em qualquer lugar do mundo, tivessem os direitos básicos garantidos. O Brasil assinou esta Declaração e cumpriu um papel tão importante que, até hoje, o presidente brasileiro é o primeiro a discursar nas suas Assembleias Gerais, que acontecem todos os anos, em dezembro.

 Direitos Humanos? 

Perguntamos a três pessoas da mesma família o que cada uma pensava sobre Direitos Humanos. “Direitos Humanos na minha cabeça… Não sei se é o certo, porque eu não entendo. É como se fosse direito de igualdade. Liberdade de expressão, né?!”, afirmou Lídia Araújo, 21 anos.

A Declaração inspira as leis que regem nações, no caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988. Os cidadãos têm deveres e direitos, como os que a Lídia citou. E mais: políticos, como o direito ao voto. E sociais, que garantem, por exemplo, o direito à Segurança pública e à Educação.

Por isso, existem normas para a ação das Polícias e também da Justiça, como o habeas corpus, que impede que a prisão possa ser usada para pressionar o suspeito a uma confissão. Todos são inocentes até que se prove o contrário.

Mas a falta de conhecimento sobre os direitos do cidadão pode levar a percepções como as de Reinaldo Araújo, 18 anos, primo de Lídia. Ele diz que as regras dos direitos humanos são “muito usadas nas prisões de meliantes menores de idade, que furtam, roubam, fazem esse tipo de coisa.”

 Os Direitos Humanos no dia a dia 

Infelizmente, a opinião de Reinaldo não é um caso isolado: 73% dos cariocas acreditam que “o respeito aos direitos humanos atrapalha o combate ao crime”. Os dados são da pesquisa Olho por olho? – O que pensam os cariocas sobre ‘bandido bom é bandido morto’, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes, divulgada em março do ano passado.

 No entanto, o estudo, coordenado pela socióloga Julita Lemgruber, também revela que 60% dos entrevistados discordam da frase “bandido bom é bandido morto”.

O historiador Luiz Paulo Simas diz que essa ideia é resquício do período em que o Brasil viveu a ditadura militar, entre 1964 e 1985.   “Essa ideia de ‘bandido bom é bandido morto’, aqui, é muito vinculada ao período militar, quando existiam os esquadrões da morte”.

 Ao contrário do que muitos pensam, as entidades de Direitos Humanos não defendem a impunidade. Exigem que a Polícia cumpra a lei. E ao prender um suspeito, conduza-o a uma delegacia e cumpra os trâmites legais, a partir da apresentação de provas. Ou seja, siga as regras do Estado Democrático de Direito.

 O irmão mais velho de Lídia, Everton Araújo, 26 anos, foi o único que tinha conhecimento da existência da Declaração, “mas não sei o conteúdo, nem nunca parei para ler”. Na opinião dele, “todo cidadão tem direito a ter o básico para a sobrevivência, para ter responsabilidades, né?! Para ser culpado de alguma coisa ele precisa ter todos os direitos humanos que todas as pessoas devem ter”.

 Como já deve ter dado pra perceber, muitas regras que estão na Declaração não são respeitadas. Na Maré, por exemplo, são frequentes os relatos de residências invadidas durante as operações policiais, só para ficarmos num único exemplo.

Estudantes da Maré sofrem com a violência

Maré de Notícias #88 – maio de 2018

Em 2017 foram menos 35 dias de aula por conta dos confrontos armados

Maria Morganti

Se o mesmo aproveitamento do ano letivo de 2017 se repetisse nas escolas da Maré, os estudantes teriam, ao longo dos 14 anos do Ciclo da Educação Básica, dois anos e meio a menos de escolarização que o estabelecido pelo Ministério da Educação. É o que revela o Segundo Boletim Direito à Segurança na Maré, realizado pela ONG Redes da Maré. De acordo com o Documento, foram 35 dias sem aulas, 17,5% a menos que os 200 dias letivos obrigatórios, por causa de confrontos armados e operações policiais.

Crianças sobressaltadas

Conforme dados da Secretaria Municipal de Educação, 8.466 estudantes ficaram sem aulas em dias como esses no ano passado. Gisele Alves, 26 anos, moradora da Rubens Vaz, é mãe de dois desses alunos, Gabriel e Rafaelly Santos, de 7 e 4 anos. Ela conta que, além do medo do tiroteio, fica tudo mais difícil: “fica difícil, porque trabalho e só posso contar com a minha mãe pra ficar com eles. E ela já tem uma filha especial para cuidar. Além de prejudicar o desempenho de cada aluno”.

Para a psicopedagoga Waldirene Araujo, a violência e o estado de tensão gerados pelos conflitos armados e operações policiais afetam até os dias em que as aulas acontecem normalmente. “Num ambiente como este, as crianças sentem-se sempre sobressaltadas. Aliás, toda a comunidade escolar sente-se alerta todo o tempo”.

Com a violência perdem todos

Uma professora de uma creche municipal da Maré, que pediu para ter a identidade preservada, diz que  “quando tem muitos confrontos seguidos, as pessoas comentam muito que sentem vontade de pedir transferência para fora”.

Em sala de aula também há muitos sinais da violência. “Todo dia tenho de pedir para não brincar de arma, porque eles brincam, sim. Mas a gente não pode dizer que é uma questão só do lugar onde eles moram. Tem programas de televisão e desenhos que envolvem essa questão também. Mas todo brinquedo que eles pegam, querem fazer uma arma para poder brincar de dar tiro”.

No fim do ano passado, o Colégio Santa Mônica que, desde 2002, ocupava uma Unidade no 2º andar da Paróquia Jesus de Nazaré, na Baixa do Sapateiro, fechou. Os diretores da escola, que tinha 220 alunos matriculados e empregava 20 funcionários, disseram à época que o motivo era “a situação de crise no País”. Porém, um ex-funcionário entrevistado pelo repórter Hélio Euclides, do Maré de Notícias, revelou que “a violência foi a gota d’água”.

No dia 6 de fevereiro, uma terça-feira, 40 unidades escolares fecharam as portas por causa de uma operação realizada pela Polícia, de manhã. Sem aula, Jeremias Moraes, de 13 anos, aluno do CIEP Hélio Smidt, na Rubens Vaz, foi jogar bola. Um tiro que partiu de um caveirão, que entrava na Nova Holanda, o atingiu pelas costas. Foi levado para o Hospital Souza Aguiar, mas chegou sem vida.

Nenhum a menos

Para diminuir o impactos das violações de direitos, foi criado em agosto de 2014 o projeto Nenhum a Menos, que atende a cerca de 50 crianças de 8 a 12 anos. Segundo Inês Cristina Di Mare, coordenadora do projeto, o objetivo principal da iniciativa é alcançar crianças que estão fora da escola, com dificuldades de frequentar as unidades ou que vão, mas não conseguem aprender. “Nós atendemos às famílias das crianças com a equipe social para entender o que está acontecendo ali. Muitas vezes, a Educação aparece quase por último na lista de problemas que a família tem para resolver”.

Inês fala, emocionada, sobre a transformação que o mundo do conhecimento traz para crianças que se alfabetizaram no projeto, que funciona na Biblioteca da Lona Cultural Hebert Vianna. “A gente está conseguindo perceber um certo impacto na qualidade da aprendizagem da leitura e da escrita dessas crianças. A gente já fez rap, funk, estamos gravando audiovisual, eles estão vibrando em experimentar as coisas. O que eles estão aprendendo está servindo para eles usarem na vida e na transformação desse território”, avalia.

O mundo na ponta dos pés

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Maré de Notícias #88 – maio de 2018

A Escola Livre de Dança da Maré conquista a França

Adriana Pavlova

Foi árdua a preparação para a aventura artística que uniu a Maré à França nos passos de dez alunos do Núcleo de Formação Continuada da Escola Livre de Dança da Maré, desde fevereiro. Primeiro, quase um mês de treinamentos diários no Centro de Artes da Maré-CAM, sob as ordens da francesa Isabelle Missal e da brasileira Amália Lima. Depois, mais três semanas de ensaios no Ramdam Centre d’Art, em Lyon, França, com as presenças das coreógrafas Maguy Marin (francesa) e Lia Rodrigues (brasileira). Tudo isso para a estreia do espetáculo-projeto De Ste Foy-lès-Lyon à Rio de Janeiro, May B à la Maré, une fraternité, remontagem com os jovens da Maré de May B, obra-prima de Maguy Marin, e até hoje peça-fetiche de programadores de dança de todo o mundo, com mais de 700 apresentações, desde 1981.

Rota francesa

A estreia em Lyon, no fim de março, deu início à turnê de May B à la Maré por seis cidades francesas, com apresentações até o começo de maio, incluindo cinco no Centquatre-Paris, onde o grupo também fez ensaios e aulas abertas ao público. Trata-se de um presente de Maguy para o projeto de formação idealizado por Lia Rodrigues e pela professora Silvia Soter, que faz parte da parceria da Companhia de Dança da coreógrafa brasileira com a Redes de Desenvolvimento da Maré.

Maguy cedeu os direitos desta montagem de May B e ainda deu figurinos completos ao projeto brasileiro, que conta com os dez alunos do grupo avançado de formação e mais cinco escolhidos numa audição no ano passado – tudo funcionando sem financiamento brasileiro, atualmente. A Fundação francesa Hermès é apoiadora desde o início do projeto.

“Em tempos em que em todos os lugares do mundo são construídos mais muros, propomos um movimento inverso, descobrindo novas possiblidades de trocas e colaborações”, diz Lia Rodrigues que, no final das três apresentações em Lyon, falou ao público sobre o projeto na Maré e a parceria com a Redes.

May B é uma obra em que dez personagens esquisitos (tem gorda, velha, gente torta, todos com as faces brancas de argila e roupas imundas), inspirados no Teatro do Absurdo de Samuel Beckett, parecem buscar sentidos para o mundo. É tudo coreografado do começo ao fim, com atuação teatral dos intérpretes, algumas falas em francês, gritos, caretas, ao som de uma trilha lírica.

Profissionalismo e solidariedade

Em 1981, dançando no grupo de Maguy, Lia ajudou a conceber May B. Agora, nesta nova montagem, seu papel coube a Luciana Barros, moradora da Maré e integrante do Núcleo de Formação desde 2012. Atraída para a Escola Livre de Dança depois de ter dançado no grupo amador da Igreja Batista do Parque União, hoje, Luciana, assim como todos os seus outros nove colegas de cena, vivem e pensam a dança de forma profissional.

“Tivemos uma aula, no início do projeto, em que a professora falou sobre a Maguy e saí pesquisando esta dança mais teatral. Hoje parece um sonho estar aqui ao lado dela, ensaiando”, conta Luciana

Depois da viagem à França, o grupo está muito mais unido: “ficar tanto tempo juntos trouxe um sentimento ainda mais forte de coletividade. Teve um dia, nos ensaios na França, que esqueci minha comida, e todos deram um pouco do que tinham levado, porque não daria tempo de sair e comprar algo”, conta Luyd Carvalho, 21 anos.

May B, une fraternité não tem data certa para ser apresentada no Brasil, mas, pelo que Lia Rodrigues planeja, deve chegar no Centro de Artes da Maré em 2019.

Muito suor e histórias

O Núcleo de Formação Continuada da Escola Livre de Dança da Maré já tem muita história em seis anos de trabalho. Depois que começaram a fazer aulas no CAM, todos os dez veteranos foram aprovados também nos cursos de Bacharelado ou Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As aulas e ensaios na Maré acontecem de segunda a sexta-feira, com quatro horas de atividades diárias, incluindo balé clássico e dança contemporânea. Já houve a criação de coreografias (Exercício M, de Movimento e de Maré em 2013 e Exercício P, de Pororoca e Piracema em 2017), e uma imersão com a Companhia de Lia Rodrigues, para a concepção de Para que o céu não caia, peça de 2016, da coreógrafa, além de aulas de teoria e história da dança e discussões sobre gênero e sexualidade.

Outra marca é terem feito aulas com grandes nomes da cena contemporânea da dança no CAM, como a belga Anne Teresa de Keesmaeker, a portuguesa Vera Mantero e toda uma bela seleção de coreógrafos e bailarinos brasileiros. O grupo participou ainda de intercâmbios na França e na Suíça.