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Uma trajetória de luta pela cultura negra

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Hélio Euclides

Quando se pensa em cultura negra no Brasil logo nos remetemos a luta do ativista  Abdias Nascimento pelo povo afrodescendente. Uma pessoa à frente de seu tempo, que lutava contra toda forma de discriminação racial, com uma trajetória incansável. Abdias deixou um vasto legado, como obras que se encontram no Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Após sua morte, a esposa e cofundadora do IPEAFRO, Elisa Larkin, continua a trajetória de luta pela igualdade racial.

Muito jovem Abdias já se revelava questionador das desigualdades raciais.  No exército resistiu ao racismo e foi expulso por não aceitar entrar pela porta dos fundos. Indo morar fora do país, na Bolívia e na Argentina,em ____ entrou em contato com muitas experiências no campo das artes, em especial com o Teatro de Puebla. Voltou em 1941 para o Brasil  e quando chegou em São Paulo foi preso à revelia pelo Exército indo para o, então,  presídio do Carandiru. Abdias não se calou e fundou o Teatro dos Sentenciados, o qual os detentos faziam apresentações uns para os outros. Dentro do presídio criou o Jornal Interno. Este  falava da política penitenciária, num período que ainda se pensava no local para recuperáveis. Lá entrevistou  presos e escreveu dois livros, ainda inéditos.

Em 1944, criou o Teatro Experimental do Negro que trouxe a cultura negra para o povo. Nesse  período os negros e as negras  não podiam ficar na platéia. O lugar reservado no teatro era na faxina. Ele desnaturalizo a ideia de  teatro só para os brancos. “No combate ao racismo, para ele, não há divisão entre política e cultura. Lutava contra a discriminação, e sua bandeira era a integração. Ele combatia o estereótipo do negro pobre, sujo e bêbado. Os atores se apresentavam em grande estilo. Traziam a bandeira da luta contra a discriminação nacional e cultural. Preservavam a própria cultura”, relata Elisa.

Em 1945,fez um manifesto contra o racismo, no qual conseguiu a adesão de todos os partidos, visando influir na Constituinte de 1946. Mas o texto não foi incluído na redação final da Constituição.Em 1949, realizou uma conferência em preparação ao primeiro congresso negro. Escreveu o livro “Revoltado”, dos anais do Congresso, em que mostra a necessidade do Museu de Arte Negra, do qual assumiu a curadoria em 1955.No mesmo ano, no Congresso Eucarístico Mundial, propôs um Cristo negro, e incentivou artistas a perceber que na arte moderna brasileira a presença da cultura africana era necessária. Numa tendência de encontro entre a Europa e a África, Abdias se propôs a discutir o assunto começando  a colocar suas ideias nas suas próprias pinturas.

Exilado em 1968, no período do Ato Institucional Número Cinco, AI-5, Abdias fez exposição nos Estados Unidos. Com

DIVULGAÇÃO IPEAFRO Abdias criou o teatro experimental do negro, trouxe a cultura negra para o povo e quebrou o teatro só para brancos
Abdias criou o teatro experimental do negro, trouxe a cultura negra para o povo e quebrou o teatro só para brancos

o retorno ao Brasil, atuou pela redemocratização do país. Criou com Leonel Brizola, no PDT, uma secretaria interna dos movimentos negros, responsável pelo combate ao racismo. O pensamento de Abdias é que o negro seja o autor da mudança. No ano de 1981, fundou o IPEAFRO na PUC-SP. Em 1983,foi eleito único deputado federal negro, com o lema de que o racismo lesa a humanidade. Propôs projetos de ação compensatória, o ensino africano nas escolas, criação das cotas para o ensino superior e mercado de trabalho, mas nada foi aprovado. Só em 1996, que o assunto voltouà tona. E um ano depois foi eleito senador da República.

No Rio de Janeiro, Abdias foi por duas vezes Secretário de Estado, de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras e de Direitos Humanos e Cidadania. Abdias durante toda a sua vida levou ao mundo a denúncia do racismo. Ele lançou diversas publicações que mostram que o Brasil precisa avançar na questão racial.

IPEAFRO E ABDIAS HOJE

O IPEAFRO, hoje localizado no Rio de Janeiro, no bairro da Glória, tem o papel de preservar o acervo documental, que reúne obras de artes de Abdias e artistas negros. O trabalho é constante para a preservação, com atividades de microfilmagem e catalogação para a organização e divulgação do acervo. Parte dessas obras que se encontram no Instituto vai para São Paulo onde ocorre, até 15 de janeiro, a Ocupação Abdias Nascimento. Um dos pontos altos da festa será o lançamento da reedição do livro: “O genocídio do negro brasileiro”.

ELISA LARKIN E A CULTURA NEGRA

À frente do IPEAFRO, a doutora em psicologia e mestre em direito e em ciências sociais, Elisa Larkin, mostra com orgulho o seu grande trabalho na parede, o qual denomina de a linha do tempo dos povos africanos. Elisa destaca que a sociedade, de modo geral,sempre associa a cultura erudita ao europeu, mas omite o conhecimento dos africanos. “Meu trabalho é trazer informações que ajude a superar essa ideia. A linha do tempo dos povos africanos insere o  erudito ao negro, apaga aquela história de que o negro começou como escravo e não tem nada mais no passado, algo reduzido”, acentua. Para ela, o negro trouxe a cultura lúdica e conhecimento com o divino, algo de filosofia. “Eles chegaram aqui ao Brasil trazendo a sua própria cultura”, resume.

A pesquisa mostra que na África nasceu à base da cultura erudita. Elisa coloca que os gregos foram à África buscar conhecimento e isso enriqueceu a civilização, por volta de 4.500 antes de Cristo. Segundo Elisa, nesse período começa a cultura negra. “Em alguns desenhos mostram o faraó egípcio branco, de uma África do Norte, isso é balela. A África é negra, tem a miscigenação, mas é africano. Se teve a ideia que a embarcação portuguesa veio em nossas terras primeiro, só que não tinham sofisticação nenhuma, os egípcios tinham bem antes embarcações de papiro, algo criado na África”, exalta.

Quando abrimos alguns livros de história, se apreende o mundo a partir da Grécia, nos quais os egípcios medem a altura das pirâmides pela sombra delas. O que se percebe uma construção com conhecimento geométrico e matemático. “As pirâmides não surgiram sozinhas, tem toda uma história, se não é tudo anedota”, frisa. O trabalho feito pela Elisa é dividido quadro a quadro, começa em 4.500 anos antes de Cristo e dividido a cada 500 anos, até o século atual. “A linha do tempo impressa ficou com quatro metros e meio de comprimento, e o que conhecemos dos negros, na parte da escravidão tem apenas 29 centímetros. É muito pequeno, isso é achar que o africano sempre foi escravizado, e esquece-se de buscar a história de sabedoria desse povo, em todos os tempos”, explica.

“O Buda é negro, os indianos tem origem africana, em 2.000 anos antes de Cristo já tinha escultura negra. Se pensa sempre na história construída por brancos e louros, e não se lembra de Otelo de Shakespeare, que era negro. A própria Luzia, a primeira brasileira tinha o perfil negro”, comenta. Elisa acredita que op ovo asiático não estava sozinho há séculos atrás, a população negra estava presente. “Ocorreu à construção da tecnologia, do progresso e da organização política. A tribo não vive isoladamente, os negros eram impérios maiores do que os romanos. A linha do tempo do africano no mundo é um suprimento didático”, conclui.

Elisa Larkin e a linha do tempo dos povos africanos
Elisa Larkin e a linha do tempo dos povos africanos

Maré de Notícias #82

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A saga da travessia

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Moradores de Marcílio Dias ficam sem passarela pela segunda vez

Hélio Euclides

Moradores antigos da Maré relatam que, no passado, a Avenida Brasil não tinha divisórias e nem passarelas. A travessia precisava ser feita para pegar água com o “rola-rola” e o galão. Meio século se passou, ocorreram duplicações e um grande aumento no número de veículos, ficando inviável e proibido atravessar as pistas driblando os carros. Contudo, o morador de Marcílio Dias viveu um pesadelo:  precisar atravessar a Avenida Brasil e perceber que uma parte da passarela estava ausente. Isso ocorreu duas vezes com a passarela 16, em frente à saída de Marcílio Dias. Esta segunda vez aconteceu no dia 21 de setembro, quando um caminhão bateu e danificou a passarela. “Esse transtorno atrapalha a vida especialmente de crianças e idosos. Estamos orando para que a situação seja resolvida”, conta Carmem Lúcia.

A Associação de Moradores de Marcílio Dias fez pedidos para diversos órgãos e conseguiu que fosse recolocado o pedaço danificado. A parte retornou ao local, apoiada por andaimes e rampas, só no dia 28 de setembro. Durante esse período de inviabilidade da passagem, placas recomendavam a utilização da passarela 15 ou 17, ambas muito distantes. O que aconteceu é que alguns pedestres improvisaram um atalho, seguindo por cima do viaduto Lobo Junior. “A população ficou em perigo, andando à noite na escuridão. O viaduto tem grades retorcidas, e fios expostos, o que traz riscos de choques. Além de objetos da pista que podem bater nas pessoas. A caminhada é de risco”, reclama Luciano Aragão, vice-presidente da Associação de Moradores de Marcílio Dias.

Alguns pedestres mais apressadinhos atravessavam as pistas e se desviavam dos carros na Avenida Brasil. O saldo negativo foi a morte de um

O atalho de madeira feito para tentar resolver o problema da passarela se mantém até hoje | Foto: Elisângela Leite

morador. “Tive de subir o viaduto para ir estudar, sei que há riscos. Mas ainda é melhor que atravessar entre os carros na Avenida Brasil. Meu vizinho morreu assim”, desabafa Neyde Marques. O problema da passarela 16 é que ela é baixa e prejudicada ainda mais pela elevação do asfalto na obra do BRT Transbrasil.

Para evitar outro acidente, placas foram colocadas pela via que determinam altura máxima de 5 metros. A Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação informou que foram feitos estudos para ver se a estrutura da passarela tinha sido afetada com o acidente. Após esse trabalho, foi recolocada a parte retirada. Prometeram, ainda, que em um segundo momento vão rever a necessidade de uma nova passarela que seja adequada para a pista do BRT.

 O BRT esqueceu Marcílio Dias

Além da distância da Avenida Brasil que os moradores de Marcílio Dias precisam caminhar na ida e na volta para os seus lares, o pior pode ainda acontecer. Em julho deste ano, a Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação declarou que a Marcílio Dias seria atendida apenas pela estação do BRT na passarela 15, denominada Marinha do Brasil. A próxima estação só seria na passarela 18, em Brás de Pina. O que chama a atenção é que a Marinha teria à sua disposição duas estações: a da passarela 15 e a 14, essa última batizada de Marinha Mercante. Do outro lado, moradores de Marcílio Dias ficariam sem acesso.

Para seguir até a passarela 15, os moradores gastariam 10 minutos, e cerca de mil passos a mais. “Há necessidade de uma estação do BRT, seria um ganho para a comunidade que já caminha tanto para chegar na Avenida Brasil”, diz Luciano. Para moradores, a estação é questão emergencial. “O acesso ao ônibus faz falta, precisamos lutar pelos nossos direitos e esquecer de quem só aparece aqui para pedir votos”, afirma Roberta. “Os governantes tinham de colaborar com o povo, mas nunca pensam na gente. Agora terei de andar mais tempo”, reclama Jociclay da Silva, morador da Rua Lobo Junior, na Penha.

Num novo contato, a Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação voltou atrás e mencionou que ainda é cedo para falar o local correto de onde vão ser as estações, pois a obra do BRT não foi concluída.

20 de novembro: Dia de chamar a atenção para o extermínio de jovens negros

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Jorge Melo

Durante muito tempo, até os anos 1970, comemorou-se no 13 de maio a Libertação dos Escravos, data em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Isabel era lembrada até então como a Redentora. No entanto, com o surgimento dos movimentos negros e as pesquisas históricas ficou claro que a Lei Áurea não foi um gesto de bondade, mas fruto de um processo de lutas dos escravizados e de parte da sociedade. Fixou-se, então, a imagem de Zumbi, o último dos líderes do Quilombo do Palmares, uma das primeiras e a mais importante experiência de luta organizada dos negros pela liberdade no Brasil. Assim, foi criado O Dia da Consciência Negra. Além da luta dos negros, o que acabou mesmo com a escravidão brasileira foi o avanço do capitalismo internacional, que queria gente capaz de comprar produtos, consumir – coisas que os escravos não faziam. Nada de achar que a princesa Isabel era boazinha.

O Quilombo dos Palmares resistiu a ferro e fogo por mais de 80 anos. Em 1694, foi completamente destruído por uma milícia comandada por bandeirantes paulistas, contratados pelos senhores de terras de Pernambuco. Palmares tinha então cerca de 20 mil habitantes. Depois de Palmares, embora os quilombos tenham se espalhado por todas as regiões do Brasil, nenhum teve a mesma força e organização.  E apesar da luta permanente dos escravizados pela liberdade, o Brasil foi um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão, em 1888. Esse período tão longo deixou feridas abertas na nossa sociedade e alimentou o racismo, o preconceito e a desigualdade social.

O sociólogo Jessé Souza, que pesquisa as causas da desigualdade no Brasil, afirma que a chave para entender o racismo é a herança da escravidão. Fazendo as contas, temos apenas 129 anos sem sermos escravizados. É pouco tempo para apagar marcas tão profundas. A partir dessa constatação é possível entender que certos comportamentos e atitudes que registramos hoje são reflexo de um outro tempo, que embora pareça distante está mais presente que nunca.

No livro A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato, lançado recentemente, Jessé de Souza diz que a escravidão, enquanto existiu, até 1888, era a instituição que influenciava todas as outras. Ou seja, justiça, polícia, negócios, educação, comércio e, até mesmo, o contato entre as pessoas que não eram escravas, afinal era um sistema econômico perverso, mas um sistema econômico que regia a vidas de todos. Um exemplo: mesmo quem não tinha muito dinheiro – os chamados “escravos de ganho” – viviam em relativa liberdade e, em troca, pagavam uma taxa diária ou semanal ao seu “senhor”.  Muitos “escravos de ganho” juntaram o suficiente para comprar a carta de Alforria. Mas, ao mesmo tempo, ficaram sem recursos para começar a nova vida. Da mesma forma, eram as “escravas de ganho” que, em geral, vendiam quitutes pelas ruas da cidade, uma tradição que se mantém até os dias de hoje.

Herança incômoda

Essa herança de uma sociedade que estava dividida entre quem tudo pode e quem não tem direito algum não foi apagada. Basta lembrar as condições de trabalho das empregadas domésticas até bem pouco tempo e a famosa Proposta de Emenda à Constituição, PEC das domésticas, que deu direitos trabalhistas integrais a essas profissionais, mas gerou muita polêmica e enfrentou muitas resistências.

Se o sistema é ruim para as empregadas domésticas, ele é ainda pior para as trabalhadoras domésticas negras. Elas são maioria, têm escolaridade menor e ganham menos. Em 2014, 10% das mulheres brancas eram domésticas, índice que chegava a 17% entre as negras, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social.

É comum e muitas vezes desrespeitosa a abordagem policial em negros, pobres e favelados que são detidos sem justificativa | Foto: AF Rodrigues

Entre as heranças do escravismo estão o preconceito e a discriminação, presentes nos padrões de beleza, na publicidade, nas palavras e expressões como “denegrir”, “a coisa tá preta”, entre outras; nos quartos de empregada, nos elevadores de serviço, nos uniformes das babás, no comportamento dos seguranças com os negros, mesmo de classe média; nas blitzes policiais, nas ações das PMs nas favelas.

O Atlas da Violência 2017 mostra que jovens negros de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no País. A população negra corresponde à maioria, 78,9%, dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Em relação às mulheres, enquanto a mortalidade de não negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4%, entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice subiu 22%.

Exército e Polícia

Segundo o antropólogo Luiz Eduardo Soares, um estudioso da questão da Segurança, com vários livros sobre o tema, “a tendência é que os militares ajam como se estivessem em guerra e atuem com força extrema, identificando o outro como inimigo a ser abatido e é justamente pelo fato de as polícias militares estarem atuando como réplicas do Exército, em desvio de função, que nossa situação é tão dramática, é por isso que há mais de seis mortes provocadas por ações policiais, no País, todos os dias, e é também por esse motivo que tantos policiais são assassinados – em números crescentes. No fundo, é como se o Brasil, e o Rio em particular, estivessem abdicando de promover a segurança cidadã, tal como determinado pela Constituição, e se rendessem à Força, exclusivamente, em especial à força letal dos braços repressivos do Estado”. Ainda segundo o antropólogo, “dos cerca de 60 mil homicídios dolosos ocorridos por ano no Brasil apenas 8% são investigados. Por investigados, quero dizer: eles são acolhidos pelo Ministério Público e considerados suficientemente instruídos a ponto de que se formule uma denúncia que passe à Justiça, dando início a um processo”. Ou seja: 92% destes crimes permanecem inteiramente impunes.

A farsa da abolição da escravatura

A escravidão chegou ao fim em 1888 apenas no papel, pois na prática foi criado o cidadão de segunda classe: sem direitos, sem garantias, sem educação formal. Boa parte permaneceu com os antigos “senhores”, trabalhando em troca de casa e comida.

Houve exceções, uns poucos tinham uma especialidade: pedreiro, sapateiro, marceneiro, ourives, alfaiate, músico. Esses foram beneficiados. A massa, no entanto, tinha apenas as mãos para ganhar a vida e nenhum tipo de apoio. Como negociar com o empregador nessas condições extremamente adversas? Que margem de manobra tinha uma pessoa nessas condições? O negro foi aceito para fazer o trabalho que os brancos não consideravam adequados para eles. Data daí o surgimento das primeiras favelas, em áreas de difícil acesso, como morros e mangues. A desigualdade é a herança do escravismo. Na Lei Áurea não havia reforma agrária nem reforma urbana, nem um único programa de formação de mão de obra. As primeiras leis de proteção ao trabalhador, por exemplo, só surgiram com Getúlio Vagas, que assinou a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, em 1º de maio de 1943.

Da Linha Amarela para a sala de aula: o combate ao trabalho infantil na Maré

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Por João Ker

De acordo com dados divulgados pela Rede Peteca, em outubro, 2,7 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, entre 5 e 17 anos, fazem parte do mercado de trabalho no País. Desses, 71.261 estão no Estado do Rio de Janeiro, onde 97% de “empregos” vêm de áreas urbanas, o que torna o Rio no estado brasileiro de maior incidência nesse recorte. Para quem passa pelo entorno da Maré, na Linha Amarela, os dados não são nenhuma surpresa: por ali, menores de idade se revezam entre os carros e ônibus enquanto tentam vender balas, água, biscoitos, pipoca ou, simplesmente, conseguir umas moedas no trânsito. E é para esses jovens que o Projeto Integração Maré, criado em 2014, procura levar uma  alternativa de vida, unindo diferentes grupos e instituições para que a educação e o desenvolvimento pessoal dessas pessoas não fiquem em segundo plano.

Criança não deve trabalhar, lugar de criança é na escola. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),  a “proteção da infância e

Mapa do trabalho infantil no Brasil, liberado pela Rede Peteca em outubro deste ano

garantia de seus direitos” deveria ser prioridade máxima do governo e seus representantes. Mas, pelos números mostrados acima, o retrato é outro: com 40% das crianças brasileiras vivendo em situação de miséria, não são raros os casos em que um menor de idade se vê na obrigação de abondonar os estudos, amadurecer antes da hora e ajudar no sustento da casa de um jeito ou de outro.

De acordo  com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), um dos órgãos protagonistas no enfrentamento desse problema na Maré, um dos principais desafios no combate ao trabalho infantil é a própria mentalidade do brasileiro sobre o tema. “O retorno que recebemos de nossos agentes, que estão constantemente nas ruas, é que isso tem sido culturalmente aceito pela sociedade, em muitos casos como reflexo de alguns mitos, como o de que ‘é melhor criança trabalhando do que na rua roubando’, ‘quem começa a trabalhar cedo garante o futuro’, e por aí vai. Na verdade, o que a realidade nos mostra é que o trabalho infantil não afasta da criminalidade, sendo muitas vezes o caminho inicial para a prática desses delitos”, explica.

Quem também enfrenta a supremacia de tal “conhecimento popular” sobre o trabalho infantil é Eufrásia Souza, que há 22 anos trabalha na Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, na Defensoria Pública: “as pessoas falam que ‘é melhor criança trabalhando que na rua’ como se elas só pudessem ter essas duas opções na vida. O trabalho infantil é uma violação de direitos e não pode ser  uma questão banalizada, como era antigamente”. Como ela reforça, “é imprescindível que o jovem menor de idade tenha acesso à educação para que seu desenvolvimento como adulto ocorra de forma saudável”.

“Temos o planejamento de uma série de ações em parceria com psicólogos, assistentes sociais e o programa de Jovem Aprendiz do Instituto Brasileiro Pró-Educação, Trabalho e Desenvolvimento (ISBET), tentando criar uma sensibilização para que os empresários recebam essa população das favelas em suas Companhias. Precisamos pensar muito por que essas crianças estão trabalhando e de onde vem isso”, explica Inês Cristina Di Mare Salles, que lidera o programa “Nenhum a Menos”, da Redes da Maré, e também representa a ONG no Projeto Integração. Para ela, há inúmeros preconceitos que essas crianças e adolescentes em situação de trabalho irregular – engraxates, vendedores de bala, etc. – sofrem na sociedade, o que dificulta ainda mais a melhoria de vida delas. “Quando as pessoas veem um menino vendendo ou pedindo alguma coisa, a tendência geral é de marginalizar.

Nesse momento atual do País, temos um pensamento preconceituoso sendo divulgado, então precisamos mostrar outras formas de compreender esse fenômeno”, reforça. A origem do problema, ela lembra, vem desde os primórdios do Brasil escravocrata. “Precisamos lembrar que isso é fruto do nosso processo histórico e mostrar para a população que a favela tem uma história. Ninguém quer pedir dinheiro, cometer um delito ou morar em um lugar sem condições. Isso tudo vem de uma lógica exploradora. Essa pobreza e essa desigualdade social têm cor, etnia e gênero”, explica.

O trabalho infantil é uma forma de continuar perpetuando o aprisionamento de pessoas com baixa renda às margens da sociedade. “Ele interfere no rendimento escolar e, em muitos casos, contribui para a evasão, não permitindo à criança um futuro melhor. O desafio é a criação de ‘atrativos’ que venham atender a necessidade da família, sobretudo, da criança e do adolescente nas suas particularidades. E é nisso que a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos vem tentando trabalhar”, afirma o CREAS.

Uma das saídas que o Projeto Integração Maré encontrou para esses jovens é a inserção no Programa Jovem Aprendiz, no qual eles são obrigados a manterem uma frequência escolar para conseguirem um estágio remunerado. A outra é por meio dos projetos de extensão do Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A nossa ideia não é tirar esses meninos daqui, mas integrá-los em atividades que já existem e que eles mesmos mostrem interesse”, conta Rosana Morgado, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

O fato de Rosana se referir aos jovens atendidos como “meninos” não é mera coincidência. De acordo com dados que vêm sendo levantados pela própria Universidade há mais de um ano, as crianças e adolescentes mais presentes no trabalho infantil do Fundão são do sexo masculino, moradores da Maré entre os 13 e 19 anos, e com algum tipo de núcleo familiar.

Enquanto estão vagando pelo campus, esses jovens são abordados por agentes da Escola de Serviço Social e, com algumas conversas, são apresentados aos programas de extensão oferecidos por ali. “O objetivo é que eles mesmos se interessem por essas atividades culturais, não que sejam forçados a escolher entre uma e outra”, conta Rosana, citando o “Universidade das Quebradas”, da Escola de Letras, como um dos programas preferidos entre os jovens.

No caótico trânsito do Rio, diariamente, é fácil encontrar crianças trabalhando | Foto: Fábio Café

A grande maioria desses menores de idade vive em situações econômicas precárias, em que a falta de renda familiar não pode ser simplesmente ignorada; é preciso que haja não só uma atividade atraente para que eles abandonem a rua, mas também uma forma eficaz de complementar a renda de casa sem prejudicar os estudos. “Por meio de uma escuta profissional, a família é orientada sobre o assunto, para que se construa um plano de acompanhamento, sempre buscando superar esta situação.

A partir disso, os dados entram no Cadastro Único do Governo Federal, para que ela seja beneficiada em programas sociais como Bolsa Família, Tarifa Social de energia elétrica, isenção em concurso público, Programa Minha Casa Minha Vida, além de a criança ou adolescente também ser inserido no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos oferecido pelos Centro de Referência de Assistência Social  (CRAS), cujas atividades são realizadas fora do horário escolar.

Pelo Disk 129, famílias em situações vulneráveis podem encontrar ajuda legal para acessarem esses serviços, desde a regulamentação da documentação necessária até o próprio ato de inscrição. Há ainda o enfretamento de outro problema latente no trabalho infantil: o abandono que esses núcleos familiares sofrem por parte de uma figura paterna. “A realidade que a gente vê é essa: a maioria das crianças que trabalha está apenas sob responsabilidade da mãe, tanto para o sustento quanto para a educação. Se o pai desse algum apoio financeiro, a criança não precisaria trabalhar. É aí que o nosso Núcleo de Atendimento entra com uma ação contra esse homem que não paga a pensão, orientando a mãe e, muitas vezes, chegando a investigar a paternidade da criança, quando necessário”, explica Eufrásia Souza.

Há vida em suas veias

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Hélio Euclides

Ainda na infância, aprendemos que para salvar vidas é preciso ter capa, máscara, um uniforme colorido, ou seja, ser um super-herói. Na maturidade aprende-se que para salvar vidas não é preciso nada disso. Alguns minutos de disposição para sentar-se numa cadeira e realizar uma doação de sangue já é o suficiente. Próximo à Maré, existe o Banco de Sangue Pedro Clóvis Junqueira, localizado no Hospital Federal de Bonsucesso (HFB). Apesar da proximidade, poucos moradores realizam suas doações, o que deixa o espaço vazio.

No dia 11 de outubro, até às 11h, o banco de sangue só tinha coletado oito bolsas. “Isso é nada, tinha de ter acima de 30 bolsas. Precisamos da conscientização de todos, até do patrão, que por lei só libera o funcionário uma única vez ao ano e poderia fazer outras vezes por um ato de solidariedade”, diz Clara Regina, enfermeira. O banco de sangue está capacitado para receber 50 doações diárias, mas a média é de 10 doadores.

Essa situação pode mudar com o exemplo de algumas pessoas. “Há 20 anos virei doadora, porque um amigo do trabalho necessitou; desde então passei a doar. Meu sentimento é de gratidão, tendo a oportunidade de ajudar o próximo. É uma alegria e satisfação de dever cumprido. Já consegui convencer as minhas três irmãs e minha cunhada, hoje todas são doadoras. Acredito que as pessoas deveriam ter mais consciência e amor ao próximo, saindo do comodismo e fazer sua doação regulamente”, afirma Jacy Matias, moradora do Morro do Timbau.

 

Sangue é vida

Para sensibilizar os futuros doadores, a assessoria de comunicação do HFB lembra que o sangue é predominantemente usado em cirurgias do Hospital, de 40 especialidades, incluindo de baleados. Qualquer cirurgia, para ser realizada, precisa de uma bolsa de sangue. “É importante ter doadores fiéis. Não é para doar só quando tem um doente precisando. O nosso problema são os feriados, quando o estoque fica crítico. O Dia do Doador, 25 de novembro, é uma data estratégica para conseguir sangue no final do ano”, ressalta Tânia Marques, responsável técnica pelo banco de sangue. Ela lembra que o homem pode doar até quatro vezes, e a mulher até três vezes ao ano.

“Qualquer sangue é válido. Sangue é sangue. Não existe tipo específico que precisamos, todos são necessários. Sangue é o transplante de um órgão líquido”, conta Conceição Guedes, técnica de enfermagem. Regina Lúcia, médica, revela que o banco não tem sangue disponível se acontecer uma tragédia. “Para mudar essa situação, precisamos acabar com mitos. Ressaltar que o sangue não engrossa e que a medula óssea trabalha direto, a renovação do sangue é imediata”, afirma. João Neto, biólogo, é ainda mais esclarecedor: “um órgão pode ser substituído por uma prótese, mas o sangue só pode ser substituído por ele mesmo”, resume.

A quantidade baixa de bolsas já alerta doadores. “Sempre fui doador para ajudar no deficit que existe”, expõe Henrique Eduardo, doador fiel do Hospital. O incentivo muitas vezes funciona. “Sou doador voluntário desde os 18 anos, começou quando a faculdade pediu aos seus alunos, e continuei”, comenta Yuri Pereira, de 22 anos. Para muitos, nem a pouca idade é um empecilho para a doação. “Senti vontade de ajudar outras pessoas com meu sangue, então conversei com minha mãe, que aprovou e assinou a autorização”, exalta Juliana Paula, de 17 anos.

 

Doação: uma questão de mobilização

Muitas vezes, para atingir um objetivo é preciso um empurrãozinho. É isso que Leonardo Borges, educador físico da Clínica da Família Adib

Leonardo Borges levou a aluna Valdenia Barroso para doar | Foto: Elisângela Leite

Jatene e do Centro Municipal de Saúde Vila do João, realiza com os alunos do projeto Academia Carioca. Ele leva alunos e agentes de saúde para doar sangue no HFB. “Começou como uma demanda da Secretaria Municipal de Saúde numa disputa interna entre as academias cariocas, para saber qual é o professor que levaria mais pessoas para doar”, afirma.

A caravana de doadores começou com 17 doadores, na segunda já estiveram 22 presentes, e a terceira teve 29 voluntários. A última ficou na média com 23 doações. O grupo já pensa na quinta leva de doações, no final de novembro. Uma das descobertas dessas mobilizações foi que Leonardo também se tornou um doador. “Eu sempre tive muito medo da agulha, e cada um incentivou o outro. Só incomoda no início quando fura o braço, mas depois passa, os profissionais nos deixam calmos. Agora sinto satisfação de ajudar alguém, foi uma das melhores coisas que fiz”, conta.

Uma de suas alunas é Valdenia Barroso, moradora da Vila do João, que também sentiu a felicidade de ser doadora de sangue. “Eu tinha medo da agulha, depois vi que não dói e fiquei pensando na próxima. Me colocaram nessa, doei duas vezes e gostei. É uma emoção poder ajudar a alguém que precisa do nosso sangue. Recomendo a quem possa, que doe”, revela. Valdenia agora vai fazer uma cirurgia e começa a mobilizar outros a doarem para ela. “É um ciclo, agora incentivo que outros doem para mim”, resume.

 

O centro de distribuição de sangue

O Hemorio é um hemocentro que distribui sangue para 180 hospitais públicos, incluindo grandes emergências, como a dos hospitais Getúlio Vargas, Souza Aguiar e Miguel Couto, maternidades, Unidades de Tratamento Intensivo Neonatais e conveniados com o Sistema Único de Saúde (SUS). No estado do Rio de Janeiro, apenas 0,98% da população doa sangue com regularidade. A Organização Mundial de Saúde orienta que entre 3 e 5% da população deve doar para que os estoques se mantenham sempre regulares. Cada bolsa de 500ml de sangue pode salvar quatro vidas.

O Hemorio lembra que o organismo repõe o volume de sangue doado no mesmo dia. A recomendação é beber bastante líquido, e não fazer esforços físicos. Destaca que o mais importante é compartilhar a experiência com amigos para que eles também se sintam motivados a doar sangue.

 

Além do sangue, há a doação de medula óssea

O Instituto Nacional de Câncer (INCA) coordena o registro nacional de doadores voluntários de medula óssea. O cadastro conta com mais de 4 milhões de inscritos. Com isso, a chance de se encontrar um doador compatível pode chegar a 64%. Para aumentar essa porcentagem é necessário acrescentar um número maior de doadores e fazer a atualização de cadastros.

O transplante de medula óssea é um tipo de tratamento proposto para algumas doenças que afetam as células do sangue, como as leucemias e os linfomas. Consiste na substituição de uma medula óssea doente, ou deficitária, por células normais da medula óssea, com o objetivo de reconstituição de uma nova medula saudável.

A medula óssea é um tecido líquido-gelatinoso que ocupa o interior dos ossos, sendo conhecido popularmente por “tutano”. Ela desempenha um papel fundamental no desenvolvimento das células sanguíneas, pois é lá que são produzidos os leucócitos, que são os glóbulos brancos; as hemácias, que são os glóbulos vermelhos; e as plaquetas. Essas são as células substituídas no transplante de medula.

A coleta de células para o transplante pode ser feita por meio de uma pequena cirurgia, sob anestesia geral, de aproximadamente 90 minutos, na qual são realizadas de quatro a oito punções com agulhas nos ossos da bacia, para que seja aspirada parte da medula. Retira-se um volume de medula de 15ml por quilo de peso do doador. Essa retirada não causa qualquer comprometimento à saúde do doador, que recebe alta no dia seguinte ao procedimento. A medula se recompõe em 15 dias, sem nenhum prejuízo à saúde.

No momento, o Hemorio não está fazendo o cadastro para doação de medula, mas no Instituto Nacional de Câncer (INCA) se faz a coleta de sangue e o cadastramento de doadores voluntários.