Home Blog Page 531

Depressão não é frescura, é doença

0

Como se prevenir da doença que mata por ano 800 mil pessoas de todas as raças, sexos, crenças e classes sociais no mundo

João Ker

Ela atingiu 322 milhões de pessoas entre 2005 e 2015, um aumento de 18% ao longo desses 10 anos. É também a maior responsável pela incapacitação profissional em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Já foi chamada de Mal do Século e, mesmo entre países mais desenvolvidos e economicamente mais estáveis, cerca de metade dos seus enfermos sequer sabe que está com a doença. São essas as cores que pintam o quadro assustador da depressão em 2017. Mas se esse transtorno tem mostrado uma abrangência tão assustadora nos últimos anos, por que o acesso à informação e ao seu tratamento continuam tão precários em todo o mundo, inclusive no Brasil, País com maior incidência dos casos em toda a América Latina?

“A saúde mental ainda é um dos problemas mais complicados no que se refere à saúde pública no País”, aponta Sérgio Gomes, Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e Supervisor de Estágio do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E, de fato, são 11,5 milhões de brasileiros que são acometidos por esse distúrbio, o que equivale a quase o dobro da população do Rio de Janeiro. Entretanto, um dos principais impasses no combate à depressão é a própria identificação da doença, uma vez que seus efeitos e motivos podem ter as mais diferentes origens, onde “cada caso é um caso”. “Tudo vai depender de como a pessoa reage aos seus sintomas. Por definição, a depressão é um distúrbio afetivo que pode acometer qualquer pessoa saudável. Os sintomas mais comuns são a tristeza, o pessimismo, a autoestima diminuída e, não raro, todos esses ao mesmo tempo”, explica Sérgio, ressaltando que o prolongamento dessas manifestações por mais de duas semanas já configura um quadro preocupante.

Claro, há uma grande diferença entre a tristeza “comum”, aquela que aparece ao longo do dia em situações específicas, e a depressão como doença diagnosticada no ser humano. Então, o que faz com que uma pessoa comum e saudável se torne depressiva? “Pode se tratar de variações químicas no cérebro, principalmente no que se refere ao nível de neurotransmissores – ou seja, hormônios do bem-estar, tais como a serotonina e a noradrenalina e, em menor proporção, a dopamina. Todas essas substâncias transmitem impulsos nervosos entre as células e podem se encontrar diminuídas, causando a depressão”, observa Sérgio.

Decepções gerais também podem desencadear uma reação mais intensa do organismo, inclusive serem o passo inicial na diminuição desses hormônios necessários ao cérebro. “A depressão pode ser causada por algum fator interno que pode ou não ser um reflexo de fatores psicológicos ou sociais. Perda de um parente próximo, final de um relacionamento, perda de um animal de estimação, demissão, reprovação na escola ou em alguma matéria na faculdade, etc. Quando isso acontece, precisamos verificar a idade e a vida cotidiana da pessoa, para identificarmos os fatores causadores da depressão e tentar ajudar na recuperação do que provocou isso”, aponta o psicanalista.

Após identificada a doença, é hora de procurar o tratamento. E, novamente, ele vai depender das particularidades de cada caso, na maioria das vezes combinando um tratamento entre psicólogo e psiquiatra. Mas além do uso de remédios, há algumas outras linhas que podem ser seguidas para combater a depressão, como fototerapia (exposição à luz intensa) e terapia comportamental.

Dentre todas as alternativas possíveis, encontra-se a psicanálise, linha defendida por Sérgio: “a aposta psicanalítica é que tenhamos uma escuta para o sofrimento do sujeito que nos procura e possamos ajudá-lo a compreender os motivos reais que o levaram a desenvolver seus sintomas depressivos. Quanto a isso, temos pontos positivos e negativos. O positivo é que buscamos entender as razões inconscientes que fizeram com que esse indivíduo desenvolvesse a doença, vamos direto na raiz do problema. Logo, o analista deve ser mais ativo em suas intervenções. O ponto negativo, para alguns, é o fator tempo. Mas eu divirjo disso: nem sempre um tratamento psicanalítico é longo demais. Isso depende do paciente e depende da sensibilidade do analista”, argumenta.

A existência de abordagens mais alternativas também é possível, principalmente quando há a relutância do paciente quanto aos efeitos colaterais dos remédios ou até mesmo a impossibilidade financeira de manter o tratamento da forma apropriada: “não devemos desconsiderar outras opções para a melhora dos sintomas, como uma alimentação saudável, exercícios físicos e um apoio social para a pessoa deprimida, sobretudo quando não se quer fazer uso de medicamentos”, afirma.

 

Suicídio: o ponto final da depressão

No último 20 de julho, a notícia de que Chester Bennington (1976 – 2017), o vocalista da banda Linkin Park, havia cometido suicídio com apenas 41 anos de idade pegou o mundo de surpresa. Dois meses antes, o mesmo tipo de questionamento foi levantado quando Chris Cornell (1964 – 2017), líder dos grupos Soundgarden e Audioslave, suicidou-se em um quarto de hotel. Antes deles, outros ícones como o humorista Robin Williams (1951 – 2014) e Kurt Cobain (1967 – 1994), do Nirvana, também haviam encontrado o mesmo destino.

De acordo com a OMS, 800 mil pessoas se suicidam por ano em todo o mundo. Isso dá no mesmo que uma morte a cada 4 segundos, em que é inegável a ligação da grande maioria com a depressão e seus possíveis desdobramentos. Como forma de combater e mudar essa realidade, a Associação Internacional de Prevenção ao Suicídio criou o “Setembro Amarelo”, campanha mundial de conscientização, cujo objetivo é alertar a população para essa realidade e que funciona no Brasil desde 2014.

Sinead O’Connor

Depressão é doença, não é frescura. Não precisa de sexo, raça, credo, origem ou poder aquisitivo específicos para se desenvolver em uma pessoa. “O estigma também não se importa com quem você é. De repente, todas as pessoas que deveriam estar te amando e cuidando de você, te tratam como um nada”, relatou a cantora irlandesa Sinead O’ Connor, em um vídeo emocionante, no qual desabafa por mais de 12 minutos sobre a sua própria experiência pessoal com o distúrbio.

Como mencionado por ela, ao discutir a depressão é impossível não tocar no estigma social e no isolamento que seus enfermos sofrem por grande parte da sociedade, muitas vezes sendo incompreendidos no trabalho, no convívio entre amigos e também no âmbito familiar. Não à toa, o tema da última campanha mundial lançada pela OMS foi “Depressão: Vamos conversar”. Com a abertura de um canal para o diálogo, o órgão pretende não apenas disseminar os possíveis tratamentos e curas para o transtorno, mas também fazer com que a discussão não tenha o atual tom de “tabu”. Mais ainda: a assistência psicológica que um amigo ou um parente podem dar ao depressivo é fundamental e inestimável para que ele consiga sair do buraco.

Em tempos nos quais a forma como nos relacionamos uns com os outros tem mudado na velocidade da luz graças à internet, amigos e familiares de adolescentes precisam ter um olhar mais apurado e atento para conseguirem abrir um canal de diálogo com esses jovens. Smartphones, redes sociais e a constante exposição a estilos de vida e padrões inatingíveis e superficiais de felicidade também funcionam como um golpe diário na autoestima, que naturalmente já passa por um estado frágil nessa faixa etária. Por isso, é importante lembrar que a luta de um depressivo para vencer a doença é semelhante a de um dependente químico: um esforço diário, que requer perseverança e foco constantes para não cair de volta na mesma armadilha. A depressão é como uma nuvem cinza pairando no céu que, para quem já a sentiu, está pronta para chover a qualquer momento.

 

Mobilização salva CIEP

0

Moradores enfrentam fogo e tiros para salvar escola

Hélio Euclides

Incêndio em favela sempre traz destruição. Esse era o meu maior medo quando vi o CIEP Presidente Samora Machel, na Nova Holanda, em chamas. Quando eu e Elisângela Leite, repórter fotográfica, chegamos, percebemos dezenas de pais tentando apagar o fogo com extintores. Ouvi de um deles: “se a educação daqui não se encontrava tão bem, imagine agora”. Bom, penso que de momentos difíceis sempre há algo que nos fortalece. E fazer parte dos moradores que enfrentaram labaredas para salvar uma escola não teve preço. Os bombeiros, quando chegaram, foram aplaudidos como forma de agradecimento. Os moradores, que podem se considerarem heróis, não abandonaram o local, e ainda ajudaram os bombeiros.

O lado mais triste desse episódio foi quando percebi pessoas correndo no pátio, para se abrigar de tiros, vindo de blindados. O mesmo Estado que deveria se empenhar em atender pessoas que pediam socorro, num ato de insensibilidade, envia mais uma vez a repressão. Não existe explicação plausível para os blindados entrarem daquele jeito, num momento tão difícil. Com a ajuda e a garra de todos, o incêndio chegou ao fim. Não tinha muito o que comemorar, apesar de não ter nenhum ferido pelo fogo, tinha uma vítima das balas, uma professora do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Azoilda Trintade atingida de raspão.

No meio de funcionários da escola, pais e moradores, Nilo Albuquerque, administrador regional da 30ª RA, tentava achar uma solução para o caos daquele momento. “Na manhã do dia do incêndio, eu já tinha visitado a escola, para buscar solucionar a questão dos mosquitos. Quando soube do que ocorria, voltei à escola com o extintor do carro. Conseguimos retirar as crianças e dei orientação às pessoas para evitar vítimas. Comecei a ligar para as autoridades, foi quando chegou os bombeiros, meu coração acalmou”, disse Nilo.

A calma durou pouco tempo. Como todos que estavam em frente ao CIEP, Nilo não esperava que a situação fosse agravar. “Comecei a escutar uma gritaria, o motivo era uma operação da Polícia Civil, do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais). Me senti na obrigação de intervir nesse ato violento. Para piorar, tinha muitas crianças na rua. Então, me posicionei na direção do caveirão, e comecei a explicar a situação. Foi nesse momento que veio o disparo, que pegou no carro, ao meu lado. Comecei a chorar e pedi a Deus que ninguém fosse atingido. Essa ocorrência atrapalhou no controle do fogo, pois os bombeiros ficaram encurralados. O rescaldo foi feito com a ajuda de moradores. Não sou contra incursão policial, mas aquela não foi feita numa hora certa. Não quero ensinar ninguém a trabalhar, mas o que vimos foi pouca preparação. A Maré tem uma fama muito feia lá fora, precisam saber que somos cidadãos dignos, que pagamos nossos impostos. O que ficou desse episódio foi que os moradores abraçaram a escola”, afirma.

A circunstância foi tão grotesca, que nem Aline Oliveira, diretora do CIEP Presidente Samora Machel, escapou de ficar encurralada, e precisou se proteger das balas. “Eu estava vindo de van, que me deixou na porta da escola, no meio dos tiros”, resume. Quando se percebeu a presença de polícias na favela, alguns moradores falaram que podia ser para escoltar os bombeiros. Engano, apesar de ser cotidiano alguns serviços serem escoltados por moradores para entrar nas comunidades. O SAMU, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, por exemplo, sempre entra na Maré na companhia de um morador.  Nesse episódio ocorreu o mesmo. “Houve uma preocupação por parte da escola de enviar um professor para acompanhar o caminhão dos bombeiros da Avenida Brasil até dentro da Nova Holanda.  Mas não aconteceu, pois além do fogo, todos tiveram de ficar presos nas escolas, para se proteger dos caveirões. Foi lamentável, muito triste essa ação da polícia”, desabafa Fernanda Alvarenga, professora do EDI Pescador Isidoro Duarte – “Doro”. O bombeiro Sílvio Rodrigues de Oliveira inclusive confidenciou à diretora Aline que não foram os bombeiros que pediram o apoio da polícia.

 

A união faz a força

Naquela tarde de 19 de junho, foram muitos moradores anônimos que não deixaram o fogo se alastrar pelas salas. Cesar Serralheiro foi um dos primeiros a chegar no local. “Quando cheguei ainda tinha crianças no prédio, e a primeira coisa que fizemos foi a retirada delas. A fumaça era densa, então os alunos foram levados para o CIEP Elis Regina. Acredito que deveria ter socorristas nos prédios públicos. Depois do espaço evacuado, abrimos um buraco na sala para facilitar o acesso dos bombeiros; o problema foi a ausência de água nas caixas-abrigos de mangueiras”, reclama. Para Cesar, todos que participaram da ação saíram ganhando. “O que senti na hora, e os outros companheiros também, foi a obrigação de se mobilizar em prol da nossa escola. Isso me emociona”, destaca.

A união veio de todos os lados. A vontade de salvar o colégio era maior que o medo. “Tínhamos extintores, que não foram suficientes, então outras escolas emprestaram. Outro ponto, foi a quantidade de responsáveis que vieram ajudar, mas ficamos preocupadas, já que todos inalavam muita fumaça, lembra Tatiane Peixoto, diretora adjunta do CIEP Presidente Samora Machel.

“Realmente foi a comunidade que salvou a escola, pois o tempo de deslocamento foi grande, e sem a população o estrago seria maior”, disse o bombeiro Sílvio à diretora do CIEP. “O incêndio nos deixou abalados. Tristeza à parte, esse fato nos enriqueceu de alguma maneira. A palavra final é gratidão. Com ajuda, todos saíram em segurança. A comunidade não deixou o fogo chegar nas salas da diretoria e secretaria, protegeu os documentos”, informou a diretora Aline.

Profissionais de ensino disseram que a suspeita da causa do incêndio foi um curto-circuito num ar condicionado na sala de informática. Já os bombeiros informaram que as causas são apuradas pela Polícia Civil. Sobre a falta d’água no sistema de incêndio do colégio, o Corpo de Bombeiros explicou que a instalação e a manutenção dos equipamentos do sistema preventivo são de responsabilidade do administrador legal da edificação.

Depois do incêndio

Após o trabalho de rescaldo, havia uma escola com salas inundadas, fios em curto, escuridão e um cheiro muito forte de fumaça. Um local impossível para funcionamento. Um plano para que os alunos não ficassem sem aula foi logo organizado, e todos foram recebidos na Escola Municipal Osmar Paiva Camelo. De novo, a solidariedade falou mais alto. “Para a mudança de escola, precisávamos carregar o material, tínhamos apenas dois funcionários disponíveis, mas a população nos ajudou. Dessa forma, em uma semana já estávamos com aulas normais. A Escola Osmar Paiva nos recebeu de braços abertos, com união, dessa forma, o trabalho funciona muito bem”, revela a diretora Aline.

Os pais, hoje, têm o desejo de que as aulas voltem ao local antigo. “Todo dia tem responsável pedindo a volta para o CIEP, estão ansiosos. Entendemos o porquê do desejo de voltar para o CIEP, pois lá é um local de resistência, de momentos difíceis, mas que superamos. O problema que passamos hoje é que o CIEP ficou ocioso, e já sofre com violações. Todos os dias vamos à escola, o que encontramos são cadeados quebrados. Materiais desapareceram e fiação foi furtada, o que pode causar demora no retorno. A obra de reforma está sendo feita, e deverá ser concluída em dois meses”, desabafa a diretora.

Uma boa notícia é que apesar das dificuldades, nenhum profissional pediu transferência da unidade escolar.

Bombeiro preso

Ao final do incêndio, o perigo recomeçou, com um tiroteio próximo ao CIEP. Na era da internet tudo é registrado no celular, e logo postado. Foi o que fez o subtenente do Corpo de Bombeiros Sílvio Rodrigues de Oliveira. Ele filmou o momento em que interrompeu o serviço para se abrigar dos tiros, depois divulgou a gravação. Sílvio foi detido por nove dias no quartel do Méier, por divulgar imagem indevida.

A Associação de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro (ABMERJ) manifesta desacordo com o ocorrido. “Nós expressamos, na época, nossa opinião que foi de total repúdio à atitude de privar um pai de família, que estava no cumprimento de seu dever, em função de expor as mazelas em que os profissionais de Segurança Pública e a própria população têm sido expostos no dia a dia. A pergunta é: os bandidos que atiraram, algum foi preso? O Comando cometeu uma grande injustiça pelo excesso de rigor da punição”, declara a Associação.

A assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Defesa Civil e Corpo de Bombeiros alegou que a sanção ao militar foi determinada pelo descumprimento de norma interna da instituição, no que diz respeito à produção e à divulgação de imagens de ocorrências. O vídeo produzido não configura material oficial da corporação.

Sobre a segurança dos bombeiros, a assessoria enfatizou que os militares seguem um protocolo interno da corporação; que o objetivo da corporação é garantir que o atendimento seja prestado, sem descuidar do zelo pela integridade física dos bombeiros.

Lei Maria da Penha 11 anos depois, as mulheres ainda lutam pelo direito à vida

0

Considerada um marco na defesa dos direitos humanos no Brasil, a Lei nº 11.340 melhorou o cenário da agressão à mulher, mas ainda há muito o que mudar

João Ker

A cada 2 segundos, uma mulher é vítima de violência física ou verbal. Quando você terminar de ler esse texto, o número de mulheres que foram espancadas, xingadas, estupradas ou coagidas já vai ter ultrapassado a casa dos milhares. É difícil imaginar que esses números já foram ainda maiores no Brasil, mas essa realidade só começou a ser transformada em 2006, quando a Lei Maria da Penha (nº 11.340) foi aprovada no País, criando um marco nos direitos humanos de toda a América Latina. Mas acreditar que essas agressões foram completamente extintas é impossível e, agora, no aniversário de 11 anos da Lei, a luta pela existência digna das mulheres em um País que insiste em enxergá-las como “especialistas dos preços de supermercado” continua forte e necessária como sempre.

“A Lei 11.340 é diferente, porque prevê vários tipos de violência. O seu artigo 7º é muito rico e um marco importante, porque o direito penal prevê o princípio da legalidade. Não há crime sem lei que o defina. Colocar essas formas de violência no papel – como a violência psicológica, por exemplo – obriga a polícia e o judiciário a investigarem e punirem, respectivamente”, explica a advogada Nayra Gomes Mendes, 28 anos, pós-graduada em Gênero e Direito pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. “O que mais mudou foi o enfrentamento das mulheres sobre a violência que sofriam. Esse é o perfeito exemplo para a definição da palavra ‘empoderamento’. A Lei é séria e tende a ser cumprida, por isso vale a pena denunciar e não mais sofrer calada”, complementa.

Ainda assim, os números recentes da violência contra a mulher assustam. De acordo com o último Dossiê da Mulher, divulgado neste ano pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 132.665 mulheres sofreram algum tipo de violência entre janeiro e dezembro de 2016. As taxas de homicídio doloso, onde há a intenção do crime, subiram pela primeira vez nos últimos 10 anos. E os registros oficiais do Estado ainda apontam que 16 desses casos configuraram feminicídio, ou seja, quando o crime ocorre unicamente motivado pelo ódio contra o gênero. Em outras palavras: a mulher morre pelo simples fato de ser uma mulher. Mais necessário ainda é destacar que nem todos esses assassinatos passam pelas delegacias, e a realidade conta com números muito maiores que os oficiais.

Os locais de ocorrência desses crimes também têm muito a dizer sobre o Brasil atual e o quão pouco ele mudou nos últimos anos. Nos quadros divulgados pelo Dossiê, o lar aparece em segundo lugar como local de maior incidência dos casos, totalizando 40,7% das tentativas de homicídio, 34,6% dos homicídios “bem-sucedidos”, 70% das lesões corporais e 66% dos estupros. “Antes, a frase ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’ era uma realidade nossa, e as próprias autoridades policiais diziam isso às vítimas de violência. A violência doméstica é muito perigosa, principalmente porque ocorre no mundo privado, dentro dos lares, na intimidade. Por isso, as medidas protetivas para afastar um agressor do lar são tão importantes, mas insuficientes. Impossibilitar essa aproximação da vítima e de seus familiares muitas vezes recupera a dignidade de uma mulher e contribui para que ela sobreviva àquela situação, evitando até um crime de feminicídio”, defende Nayra, que pesquisa o tema desde que entrou na Graduação em Direito.

Hoje, o Estado do Rio de Janeiro conta com 14 Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs) espalhadas por seus municípios. “Lá, o atendimento é especializado, com profissionais focados em perceber até a mais sutil das violências e dar o encaminhamento apropriado para esses casos”, afirma Nayra. Ainda assim, apenas no primeiro semestre de 2017 já foram registrados 37 assassinatos e 119 tentativas de homicídio doloso. Daí a importância de conhecer seus direitos, a melhor forma de acessá-los e como fazer com que eles sejam levados a sério.

 Maria da Penha: brasileira, mulher e vítima de violência

A conquista dos direitos alcançados com a Lei Maria da Penha, assim como a de quaisquer outros ao longo da história, não foi nem um pouco fácil e só veio após 20 anos de luta da sua inspiradora. A cearense Maria da Penha é uma mulher real como tantas outras brasileiras que, em 1983, se viu vítima de agressão doméstica. Seu marido, o professor universitário Marco Antônio Heredia Viveros atirou nas suas costas enquanto ela dormia. Ela sobreviveu, voltou para casa paraplégica e foi mantida em cárcere privado, enquanto a história contada para os vizinhos e familiares foi a de que um assaltante tentou invadir seu lar. Apenas 15 dias depois, veio a segunda tentativa de homicídio, por meio de um chuveiro propositalmente danificado para que ela morresse eletrocutada durante o banho. Foi então que Maria da Penha teve a coragem de denunciar seu agressor e começar uma das mais longas e históricas batalhas jurídicas do País.

Hoje, exatos 11 anos depois de Maria ter conquistado um fato sem precedentes na nossa legislação, a rede de proteção às mulheres brasileiras é mais sólida e abrangente. A Lei que leva seu nome prevê cinco tipos de violência contra a mulher e cobre grande parte de seus desdobramentos. Além das DEAMs, a denúncia também pode ser feita pelo Disque 180, uma linha criada pela Secretaria de Apoio às Mulheres, em 2005, especialmente para esse tipo de caso. Mas, apesar de 98% dos brasileiros conhecerem a Lei Maria da Penha, de acordo com um estudo levantado pelo Instituto Patrícia Galvão, ainda há um trabalho de disseminação da informação muito forte a ser feito.?

As pesquisadoras apresentaram suas impressões e vivências durante a pesquisa sobre violência contra mulheres e meninas | Foto: Elisângela Leite

Na Maré, um primeiro passo rumo à conscientização e ao auxílio das vítimas de violência doméstica será dado no dia 2 de setembro. A data irá marcar a inauguração de um novo serviço oferecido pela Casa das Mulheres: a assistência social voltada especificamente para esses casos, com foco especial no aconselhamento jurídico. “Por meio de uma parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e seus estudantes de Serviço Social, nós iremos mostrar para as moradoras todas as ferramentas legais que elas têm à disposição para enfrentarem esse tipo de abuso”, comenta Shirlei Villela, coordenadora do espaço da Redes da Maré que, desde a sua inauguração, em outubro, já oferece cursos profissionalizantes de alta gastronomia e rodas de conversa com as moradoras do local. De acordo com ela, o projeto irá possibilitar o acesso à informação de forma mais inclusiva: “Não teremos nenhuma burocracia! É só chegar, que nós atenderemos”, assegura.

O Dia Visibilidade Lésbica

0

29 de agosto é dia de reflexão sobre o tema

Hélio Euclides

“O armário é o mais seguro, mas é sofrido, pois rouba sua dignidade, alegria de viver e saúde mental”, expressa Dayana Gusmão, assistente social e membro do Coletivo Resistência Lesbi de Favelas. Um sentimento de que assumir a sexualidade é difícil numa sociedade preconceituosa. Para melhorar essa situação de medo, era necessário lutar. Com o desejo de organização e união, o movimento de lésbicas começa a caminhar no Brasil nos anos 1980, com grupos e coletivos independentes, tendo participação em fóruns, articulações e partidos políticos. O ano de 1996 tem importância histórica, pois foi realizado na cidade do Rio de Janeiro o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), momento significativo para a visibilidade e aprofundamento de demandas da categoria no cenário político. A partir do encontro, foi escolhido o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica em 29 de agosto. Já o Dia da Visibilidade de Bissexuais em 23 de setembro.

Dayana entende que o momento é de conquistar espaços. “O movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) é bem divulgado, e o 8 de março (Dia Internacional da Mulher) também. Ao contrário do 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, e o 29 de agosto, o do Orgulho Lésbica, essas duas últimas ainda pouco lembradas. Sabemos que não há divulgação, pois incomodamos, e queremos direitos. As datas representam um dia de reflexão e de luta. Hoje estamos mais fortes, pois há um trabalho de base, mas temos muito a alcançar. Para superar as retiradas de direitos, temos de estar mais organizadas ainda”, afirma.

Ela acredita que a vida na favela é diferente. “Aqui há um nível de pouca informação, que reproduz violência e preconceito. Não temos coragem de expressar na rua a nossa afetividade, nem andar de mãos dadas. Para gente é tenso esses simples gestos, tudo mais difícil. Por outro lado, não vou sair da favela, aqui está a minha história. A Maré é resistência, acabamos de realizar uma marcha contra a violência, um ato simbólico e marcante”, comenta.

“Avançamos na discussão, mas não na implementação. No mercado de trabalho sempre esbarramos em obstáculos. Um exemplo, são as dificuldades das lésbicas masculinizadas, e se ela for negra, ainda terá obstáculo a superar em dobro. O preconceito não diminuiu, ainda há opressão. O Brasil é o País que mais mata LGBT. Contra isso, precisamos lutar com força, sendo incisivas contra o pensamento conservador. Temos de ocupar os espaços de movimentos de mulheres em geral”, conclui Dayana.

Estando desde o início no movimento, Virginia Figueiredo é fundadora da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e, em 1996, foi a 1ª lésbica no Brasil a ser candidata a vereadora. “O Brasil precisa ser, de fato, um País Laico, e termos mais representantes feministas, negras e LBT (Lésbicas, Bissexuais e Transexuais) nas esferas de políticas públicas. Sempre é importante ocupar as ruas pela luta de direitos e pela falta deles, principalmente na atual conjuntura nacional e internacional, em que o racismo, machismo, capitalismo e a cultura de ódio avançam. Ser sapatão num mundo tão machista é a própria revolução”, afirma Virginia.

Thamiris de Oliveira é participante de movimentos sociais e de atividades coletivas lésbicas e feministas. Uma de suas preocupações é com a saúde pública, um mecanismo de tratamento que não contempla as lésbicas. “Pensando no atendimento ginecológico, que por vezes não é capacitado às nossas especificidades, podem repercutir no preconceito, recusa de procedimentos médicos e num desconforto no trato da nossa saúde”, lembra. “Ainda temos medo de andar na rua, de demonstrar nossos afetos, de não sermos aceitas na família e por ‘amigos’, de termos de responder às expectativas de feminilidade nos postos de trabalho, de sofrer violência psicológica, física, verbal, de não ter forças de continuar os estudos; enfim, uma série de violações que diariamente respondemos com nossa resistência”, informa.

Para Thamiris, a igualdade de gênero e o respeito às sexualidades devem estar coladas:  “Nosso amor é revolucionário. Uma frase de Nina Simone, mulher negra norte-americana, resume a nossa luta: Liberdade para mim é isto: não ter medo”.

As Produções Marginalizadas

0

Ana Paula Lisboa

Às manifestações artísticas, sociais, linguísticas e comportamentais de um povo ou civilização damos o nome de cultura. Portanto, fazem parte da cultura de um povo as ações e manifestações ligadas às expressões artísticas: teatro, música, dança, religião, gírias, pichações nos muros, comidas, bebidas, a melhor forma de se construir uma casa, o melhor dia para se fazer uma festa, mitos, mesmo quando essa definição é, muitas vezes, confundida com “ser uma melhor educação, desenvolvimento, bons costumes, etiqueta à mesa ou elitização”. Talvez a “confusão” aconteça porque ainda hoje muitas produções culturais produzidas nas favelas e periferias, e inevitavelmente por pessoas pretas, não sejam reconhecidas ou legitimadas como cultura ou como produção cultural.

 A capoeira, o samba, o rap e o funk são grandes exemplos de produções culturais vindas das periferias e que, em algum momento, foram proibidas, seja socialmente ou legalmente, de serem produzidas, ouvidas, dançadas, cantadas, vividas, em determinados momentos do País. Nesse momento, não há um ritmo que seja tão favelado, tão criminalizado como o funk. Não só no Rio de Janeiro, favelas de São Paulo e de Minas Gerais passam pelas mesmas questões de proibições pela polícia.

 

Roda de Samba “Mulheres ao Vento” em apresentação no Centro de Artes da Maré | Foto: Douglas Lopes

É proibido proibir

 Atualmente, tramita no Senado Federal um Projeto de Lei enviado por Marcelo Alonso, web designer de 47 anos, morador da zona norte de São Paulo, área da cidade que concentra vários “fluxos”, como são chamados os bailes que acontecem na rua, normalmente feitos com as equipes de som acopladas aos carros. A proposta, além de proibir, criminaliza o ritmo como crime de saúde pública (sem mencionar como seria feito, quem seria criminalizado, quem fiscalizaria).  É bem possível que as 21.985 pessoas que assinaram apoiando o Projeto sejam boa parte daquelas que não conseguem dormir nas noites de sexta e sábado, por conta do som alto e da falta de organização desses eventos. O texto do Projeto de Lei afirma que “é fato e de conhecimento dos brasileiros, difundido inclusive por diversos veículos de comunicação de mídia e internet com conteúdo podre (sic) alertando a população o poder público do crime contra a criança, o menor adolescente e a família”. Crime de saúde pública desta ‘falsa cultura’ denominada funk” só tem mesmo a intenção de declarar que não gosta do ritmo e que não quer ele na porta da sua casa. Sem observar os milhares de empregos e renda gerados, sem considerar que é tarefa da Secretaria de Cultura, e não da Secretaria de Segurança, talvez em parceria, essa organização.

 Em 2009, a ALERJ aprovou a lei que transformou o funk em patrimônio cultural do Rio, mas nem por isso ele se tornou mais aceito. O projeto das UPPs, que tentou trazer mais segurança para a cidade, elegeu o ritmo como vilão. E mesmo com dois editais da Secretaria Estadual de Cultura premiando criações artísticas diretamente ligadas ao funk, ele ainda é tratado como caso de polícia. Projetos que ganharam os ditos editais, mesmo premiados pelo Estado, precisaram negociar com a polícia para acontecer em territórios populares. Não é o caso da Maré, mas ainda assim eventos que não têm o ritmo como foco são vistos, aparentemente, como mais culturais e até mais aceitos.

 Cultura e Entretenimento

Isso também pode acontecer devido à mistura de definições do que seria cultura e o que seria entretenimento. Dá-se aquela confusão de que cultura seria algo maior, que te coloca para pensar, que te faz refletir sobre um determinado tema, que incomoda. Enquanto o entretenimento te aliena, só te diverte, te relaxa, usado como manobra para tirar os seus pensamentos e foco para o que realmente deveria importar.  E não existe nada mais político que estar na rua e é assim que se realiza a maioria dos eventos nas favelas.  Outro bom exemplo são as rodas culturais, que podem ser, sim, um entretenimento da juventude, mas também fazem pensar nas questões sociais.

Existe também a diferenciação da cultura como um fazer quase altruísta, algo feito por amor e que não precisa de dinheiro, enquanto o entretenimento é capitalista e explorador. Mas é fácil pensar assim, quando todas as contas do produtor e dos artistas estão pagas. E como seria difícil na favela se produzir sem o apoio dos comerciantes e, consequentemente, dos consumidores! Um trabalhador que realiza suas funções de segunda a sexta, e aos sábados decide gastar o seu dinheiro em um evento dentro da favela, é alguém que acredita naquele território.

 

Maré de Notícias #80

0

Clique aqui para visualizar ou fazer download do arquivo em pdf.