Pescadores não podem mais atracar e aportar seus barcos para carregar e descarregar carga e embarcar passageiros. Pedaços de concreto estão na eminência de fechar a saída de esgoto, que desemboca na Baia de Guanabara. Em Marcílio Dias, o cais dos pescadores começou a ruir e o fim pode estar próximo.
“Ficamos sem um local para desembarcar. Vejo uma tragédia anunciada, já que o espaço é aberto, e podem ocorrer acidentes com crianças. Já vieram diversos secretários do governo que deram esperança, mas até agora nada. Devem voltar perto da eleição, para pedirem votos. Não é uma obra cara, mas não temos como reconstruir”, revela Helder Anselmo, presidente da Associação de Pescadores de Marcílio Dias.
Luciano Aragão, vice-presidente da Associação de Moradores de Marcílio Dias está com receio de o esgoto travar. “O prefeito atual veio quando ainda era candidato e fez promessas, mas até agora nada. Se cair toda a estrutura a comunidade vai boiar em cocô. Queremos que a CEDAE venha, dê um parecer técnico e desvie o esgoto”, almeja. Apesar da proximidade com a Estação de Tratamento de Esgoto da Penha, a comunidade tem suas águas jogadas no mar. “Até o esgoto da Marinha vai para a Baia. Se tivesse um tratamento, o local teria mais peixe, melhor qualidade de vida, não entendo porque não é feito”, reclama.
De quem é a responsabilidade?
A CEDAE mencionou não haver relação do cais com a empresa. Que vistorias feitas anteriormente, junto com a Secretaria Municipal de Conservação e Meio Ambiente, constataram que a responsabilidade pelo cais é da Marinha e a tubulação obstruída não é de rede de esgoto, mas galeria de águas pluviais. A Fundação Rio-Águas disse que a questão não é de sua competência. A Fundação Instituto de Pesca informou que o cais pertence a uma cooperativa privada de pescadores. Completou que, tendo em vista a estrutura não pertencer ao patrimônio público, o Estado não tem como utilizar recursos dos cofres oficiais para sua recuperação. A Marinha do Brasil, por meio do Comando do 1º Distrito Naval, informou que a Capitania dos Portos encaminhou uma equipe de Inspetores Navais ao local. Ao constatar a precariedade das instalações, interditou o referido cais para atracação de embarcações, notificando a Colônia de Pescadores Z-11, a fim de promover a sua regularização. A Associação de Pescadores de Marcílio Dias confirmou a visita da Capitania dos Portos, e aguarda instruções para saber quais providências tomar.
Músico traz para a Praia de Ramos escultura que homenageia moradores
Roberto de Oliveira
O músico Bhega Silva, de 58 anos, conhecido pelas canções ecológicas, pela reciclagem de óleo de cozinha e sua “bicicleta de som” tem perseverança. Há dois anos, luta pra trazer da ilha do Fundão para a praia de Ramos um dos Botos feitos de fibra de vidro, que fizeram parte das homenagens ao Rio de Janeiro nos 450 anos da cidade. A escultura do animal fez parte da exposição organizada pela Escola de Belas Artes da UFRJ, que usou o boto que é símbolo da cidade e aparece na bandeira da Capital do Estado. O boto da Maré pesa 250 kg e tem nomes de moradores e trabalhadores das favelas da Maré espalhados pelo corpo, um deles é o do próprio Bhega.
O ativismo ambiental e cultural do cantor que, há três anos, realiza por conta própria o projeto Cineminha no Beco sensibilizou Maurício Neri Meireles, de 61 anos. Proprietário de um estacionamento na Rua Gerson Ferreira, na Praia de Ramos, próximo à Avenida Brasil, Maurício cedeu parte do estabelecimento para o ativista inaugurar mais um espaço cultural para a exibição de filmes e atrações artísticas, com entrada gratuita, com direito à pipoca e refrigerante. “A entrada é um sorriso”, diz Bhega.
O Boto da Maré
Quem quiser ver o Boto da Maré de perto e assistir um filme no Galpão, pode entrar em contato pelo Facebook do Cineminha no Beco. O músico quer utilizar a escultura para levar conhecimentos sobre o meio ambiente aos alunos de escolas públicas da Maré. Os botos são animais que eram vistos com frequência na Baía de Guanabara e algumas histórias sobre eles fazem parte do folclore brasileiro.
Tuberculose tem cura se o tratamento não for interrompido
Hélio Euclides
A tuberculose é a doença infecciosa que mais mata no mundo. Por ano, são notificados cerca de 10 milhões de novos casos, e mais de um milhão de pessoas mortas. No Brasil, a cada ano são mais de quatro mil mortes. E o Rio de Janeiro é o segundo Estado do país com maior número de casos: 10.229, em 2015.
É uma doença contagiosa, causada por uma bactéria chamada Mycobacterium tuberculosis (ou bacilo de Koch). O controle da tuberculose acontece na busca ativa de casos, diagnóstico precoce e adequado, tratamento supervisionado até a cura. O método de tratamento mais utilizado consiste no uso de quatro antibióticos: Rifampicina, Isoniazida, Pirazinamida e Etambutol, que deve se prolongar por, no mínimo, seis meses. A única forma de curar a tuberculose é fazer o tratamento completo, sem interrupção. Breno Villela Albrecht é médico da Clínica da Família Adib Jatene, na Vila dos Pinheiros. Durante 10 anos de trabalho, já viu diversos casos da doença. “É uma luta contra a vulnerabilidade e ambientes insalubres. Vamos a cada um deles, incentivando o uso dos remédios, pelo prazo de cura que é de seis meses”, revela. A boa notícia é nunca faltar os remédios na Rede pública. Ele adverte que, ao interromper o tratamento, se cria resistência à bactéria. “Por isso, precisamos não ter nenhum fujão”, afirma. A contaminação pode se dar pelo ar ou pela secreção do bacilo, mas a bactéria não resiste a 15 minutos de sol. “A transmissão não é fácil, mas há situações que contribuem como sistema imunológico debilitado, uso de drogas, fumo, alimentação inadequada, casas pouco arejadas e ausência de iluminação natural. Em muitas residências os moradores não abrem a janela, eu visito e fico com falta de ar. Dificilmente o bichinho da tuberculose vai pegar quem tomar banho de sol três vezes por semana, limpa o filtro do ar condicionado, tem boa alimentação e faz exercícios físicos”, ensina.
O importante é vencer o preconceito
O médico lembra que doente só precisa ir apenas uma vez por semana ou ter a visita da equipe, quando recebe os remédios. “A Rocinha foi uma vitória, era o bairro com mais casos, hoje isso é passado, mudou a história. A Maré também foi um dos piores lugares, agora já estamos caminhando para sair desse patamar”, detalha. Para o diagnóstico, é feito radiografia do tórax. “Mas o exame do escarro é a chave do combate”, acrescenta. Para o Doutor Breno, o morador que tem tosse seca por mais de duas semanas, febre diária ao final da tarde e emagrecimento sem causa aparente, deve procurar o médico. “Sabemos que ainda existe o estigma, mas o importante é não esconder. Após 15 dias de tratamento, o risco de transmissão é zero. O paciente precisa de confiança e um aperto de mão. Não é necessário separar copos, talheres, roupas ou lençóis, já que a contaminação se dá apenas por via aérea, e não por objetos”, afirma.
Adenildo Raimundo dos Santos, de 44 anos, morador de Bento Ribeiro Dantas, teve tuberculose em 1994, fez o tratamento correto, seguiu as recomendações médicas e hoje está curado, sem nenhuma sequela. “O importante é procurar o tratamento. Não é difícil, mas no início, são mais comprimidos. O importante é não parar de tomá-los, pois com um mês o paciente já se sente bem, mas é preciso lembrar que o tratamento dura seis meses, e é preciso seguir à risca. Hoje não sinto nada”, explica.
Doutor Breno compara a tuberculose à outra doença respiratória: “a pneumonia precisa de 10 dias de tratamento, só que a febre passa já no terceiro dia, mas se o paciente interrompe o antibiótico, a doença volta com força total. Isso ocorre igualmente na tuberculose”, conclui.
A oferta de atividades físicas nas favelas da Maré
Hélio Euclides
O esporte é a prática individual ou coletiva de qualquer atividade que demande exercício físico, com fins de recreação, manutenção do condicionamento corporal e da saúde. Para alguns, o grande vilão é o aumento de peso, que atinge 2,2 bilhões de pessoas, ou seja, 30% da população mundial são obesas. Os moradores da Maré procuram diversas maneiras para a prática de esportes, com o objetivo principal de uma vida mais saudável para a mente e para o corpo. Flavio Alves é professor de Educação Física. Ele explica que o trabalho do corpo tem três esferas: o esporte, que é sistemático, com jogos e brincadeiras; a atividade física, que se faz no dia a dia; e o exercício físico, que é algo direcionado. “Qualquer uma das esferas é bom para acabar com o sedentarismo, prevenir o diabete, a hipertensão e a má circulação. Eu trabalho o circuito funcional, muay thai [tipo de arte marcial], musculação e Pilates na Nova Holanda. Sempre quis implantar o circuito aqui, pois o morador da favela merece a mesma qualidade de vida de quem mora perto da praia”, afirma. Para ele, a prática do esporte hoje não é fácil. “Na minha época existia bastante área de lazer, muitos campos. Com o tempo, os espaços foram acabando, as crianças ficaram sem o incentivo de um bom lugar para a prática”, observa. Além do trabalho do circuito, ele atua no projeto Rio ao Ar Livre, na quadra do Nem, na Nova Holanda, pela manhã, que recebe os idosos. Já na comunidade de Rubens Vaz trabalha em uma academia e um projeto de escolinha de futebol. “É bom lembrar que a atividade física não caminha sozinha, é preciso ter uma boa alimentação. O corpo é igual a um carro, precisa de gasolina para circular. Outros fatores importantes são o descanso e a frequência. Dessa forma, se constrói um bom atleta”, frisa.
A vila dos esportes
A Vila Olímpica da Maré, que funciona de terça a sexta, das 7h às 18h, com judô, capoeira, futsal, ginástica, futebol de campo, basquete, dança, atividades de pessoas com deficiência e da terceira idade. A Instituição tem como maior intuito realizar a socialização e a melhoria da qualidade de vida dos usuários, assim como captar futuros atletas de diversas modalidades esportivas. “Na vila tenho grandes amizades, além de ter a saúde em primeiro lugar. O local reúne as atividades que preciso, igualmente crianças e idosos. Se não existisse, faria a maior falta. Lá se encontra professores que dão a maior atenção aos moradores”, exemplifica Jane dos Anjos Passos, que frequenta as aulas de zumba e hidroginástica.
Um circuito de exercícios
Quem passa em frente ao Parque Ecológico da Vila dos Pinheiros percebe diversas pessoas se exercitando na quadra de areia do futevôlei. Carlos Alberto Monteiro Souza, professor de Educação Física, realiza o treino funcional, com os seus 40 alunos. “O atleta tem um circuito, mas é respeitado o limite de cada um, o próprio condicionamento”, resume. “O ideal é uma alimentação de três em três horas, um exemplo é começar o dia cortando o pão da mesa e adicionando batata doce e ovo mexido. Outra dica é a carne vermelha só ser consumida de dois em dois dias, sendo substituída por frango e peixe. Os vilões são as festas, onde se encontra apenas refrigerante /ou ainda refrigereco [refrigerante genérico], e sopa gordurosa, nunca suco natural”, conta. Para Carlos, o certo é o indivíduo procurar o médico para perder peso, e não apenas quando sofre com dor. No circuito, os alunos aprendem que não é só ficar magro, ver apenas o lado estético, o ideal é ter saúde. “Estava em depressão, com arritmia cardíaca e hipertireoidismo, então a endocrinologista me recomendou atividade física. Resolvi viver, e não preciso mais do remédio de tarja preta. Com essa atividade a vida mudou por completo, elevei a autoestima”, expõe a aluna Roselaine de Carvalho Mothe.
A caminhada e a corrida à procura da saúde
Na ciclovia do Conjunto Pinheiros se encontram dezenas de pessoas que caminham de um lado a outro. Luiz Carlos é um deles. “Caminho já há dois anos, por conta própria, comecei pelo excesso de peso. Esse exercício melhora bastante a vida, com disposição e melhor respiração. O ideal é a pessoa largar a televisão e escolher um espaço para caminhar”, aconselha. Já Ramires da Silva escolheu a velocidade. Ele corre há um ano na Cidade Universitária, de três a seis vezes por semana, com outros amigos, cerca de 20 pessoas, no início da manhã ou ao final da tarde. O grupo se denomina Maré Esporte, representa a favela em diversas corridas pela cidade, e nelas conseguiram algumas premiações por faixa etária. “Lembro que no meu primeiro dia não consegui dar uma volta ao campo. Hoje já alcanço 21 quilômetros. Um dia fazemos um treino pesado, e no outro algo mais leve, tipo uma corrida de cinco quilômetros, depende do preparo de cada um. É uma verdadeira terapia, esquecemos dos problemas”, argumenta. Ramires explica porque não corre perto de casa. “É mais seguro a Ilha do Fundão do que a Maré, na favela falta iluminação, e tem a violência, já tivemos um da equipe que foi baleado quando se exercitava”, reclama. Ramires manda um recado para quem tem uma vida sedentária: “recomendo a todos que, depois de lerem essa matéria, levantem do sofá para a prática de uma atividade física. No início é difícil, mas traz satisfação, é um vício saudável”, conclui.
A importância do esporte na infância
Na Maré, nos campos de futebol há sempre uma escolinha. No Conjunto Pinheiro, a escolinha do Mário movimenta 120 meninos e meninas, de seis a 13 anos, nas noites de terças e quintas. O treinador é Mário Alves do Nascimento, que realiza a atividade há 21 anos, e se emociona a ouvir ex-alunos pronunciarem que o esporte ajudou na vida. “É muito bacana ver um menino que treinou comigo, trazer o seu filho para a escolinha. É o esporte passado de pai para filho”, declara. Para ele, quando se começa cedo no esporte, o aprendizado é rápido. “O esporte é bom para a saúde da criança, em especial quem tem bronquite e asma, os médicos recomendam. Mas a criança precisa gostar da prática, e nunca atuar por vontade dos pais”, alerta. Outro que incentiva o esporte nos primeiros anos é o atleta Rodrigo Pedro, conhecido como Fantasma, que treina diversas crianças na primeira Escola de Lutas José Aldo, nas tardes de segundas e quartas, na Associação de Moradores do Conjunto Esperança. São 600 meninos e meninas na faixa etária de seis a 16 anos, que se dividem em aprender boxe, judô, luta olímpica e jiu-jitsu. “Quando se começa cedo no esporte, surge o desejo do exercício, e é algo contra a obesidade. Além de evoluir o desempenho escolar, melhora o comportamento em casa, e se tem uma vida saudável”, explica. Rodrigo entende que o esporte não é apenas para a carreira profissional, mas é fundamental e necessário para o crescimento pessoal do ser humano. “O esporte dá uma opção, e direcionamento, abre portas que muitas atividades não abrem. Eles vão a outros lugares sem carregar rixas, entendem que a guerra não é deles. Participam de competições em outras localidades, percebem outra realidade, são vistos com bons olhos e saem aplaudidos”, esclarece. O treinador conta que muitos brigavam na rua, e com o esporte aprenderam que a força é para ser usada na competição. “O esporte torna indivíduos vencedores, por isso acredito que no futuro teremos alunos da Maré defendendo as cores do Brasil”, finaliza.
Publicação revela a opinião dos moradores a respeito da presença do Exército
Roberto de Oliveira
Desde 2007, quando sediou pela primeira vez os Jogos Pan-Americanos, a cidade do Rio de Janeiro se tornou uma vitrine brasileira e atraiu os olhares do mundo para espetáculos diferentes do Carnaval. Com a mídia a seu favor, o País quis mostrar que estava pronto para organizar grandes eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, como qualquer outra capital europeia. Mas para dar aos expectadores a sensação de segurança na cidade, os governantes decidiram utilizar um recurso questionável: a ocupação militar das favelas. Com a presença de policiais e militares das Forças Armadas, esses espaços foram declarados “áreas perigosas” e a mensagem enviada para a sociedade era de que controlar as favelas com poder bélico era o melhor caminho para controlar a criminalidade.
Com cerca de 140 mil habitantes, o Complexo de Favelas da Maré foi ocupado pelas Forças Armadas durante 14 meses, com o objetivo declarado de preparar o território para a implementação de quatro Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) – fato que jamais se tornou realidade. Conforme pedido feito pelo então governador Sérgio Cabral, que hoje se encontra preso por corrupção e lavagem de dinheiro, a ocupação militar na Maré aconteceu a partir do dia 5 de abril de 2014 e durou até 30 de junho de 2015.
A opinião dos moradores da Maré sobre a ocupação
Uma pesquisa coordenada pela Redes da Maré, com a parceria das instituições britânicas Queen Mary University of London e a Newton Fundation, revelou a opinião dos moradores a respeito dessa ocupação. O estudo ouviu 1000 mulheres e homens de 18 a 69 anos, residentes nas 15 favelas ocupadas por militares do Exército e da Marinha. Entre fevereiro e setembro de 2015, a equipe de entrevistadores aplicou um questionário com 54 perguntas sobre as ações dos militares na comunidade e o resultado mostra que a ocupação não foi um sucesso como pretendiam divulgar o governo do Estado e o Ministério da Defesa. O resultado está publicado no livro “A ocupação da Maré pelo Exército brasileiro – Percepção de moradores sobre a ocupação das Forças Armadas na Maré”. “A ideia é chamar a atenção, pois a ocupação que houve, aqui, foi extremamente controverso, pois era algo que respondia a uma demanda de combater a violência e trazer segurança pública, mas o que se viu com a pesquisa foi justamente o contrário”, disse a coordenadora geral da pesquisa, Eliana Sousa e Silva. “O morador, ao mesmo tempo em que estava dando uma entrevista, também considerava a pesquisa um espaço de desabafo, de como ele percebia isso e talvez não encontrasse esse espaço de fala em outros lugares”, afirmou Lidiane Malanquini, uma das integrantes da equipe de pesquisa. Os pesquisadores também conversaram com alguns militares do Exército e com integrantes de grupos civis armados (GCAs) que atuam na Maré (com exceção de milicianos), para ter uma visão mais ampla da ocupação, o que contribuiu para qualificar e aperfeiçoar a pesquisa.
As violações durante a ocupação
Com a autorização da Presidência da República, as Forças Armadas tinham poder de polícia e podiam efetuar prisões em flagrante, patrulhamento e vistoria. Com isso, a Maré ganhou ares de um verdadeiro território de guerra, com tanques circulando pelas ruas, soldados com armas de alto calibre, arames farpados e sacos de areia como barricadas. A principal revelação da pesquisa é que menos de 1/4 da população da Maré considerou a ocupação ótima (4%) ou boa (20%), enquanto o restante dos entrevistados avaliou a ação das Forças Armadas como regular (49%), ruim (12%) ou péssima (14%). Para 70% da população da Maré, a entrada das Forças Armadas não aumentou a sensação de segurança.
Charles Gonçalves Guimarães, presidente da Associação de Moradores da Baixa do Sapateiro, uma das comunidades ocupadas, disse que, no início, a relação entre os militares e a comunidade se deu de forma tranquila, porém, com o passar dos meses, a convivência ficou tensa. “O Exército perdeu um pouco do controle da situação, a comunidade também se descontrolou e a relação ficou violenta, com algumas vítimas fatais inclusive, mas para as Forças Armadas os problemas foram só arranhões, por isso, a ocupação não foi satisfatória para minha comunidade e acho que nem para o Complexo da Maré como um todo”, afirmou Charles.
Quando chegaram, os militares tentaram se aproximar e criaram atividades comunitárias e sociais, fazendo com que alguns moradores acreditassem na proposta do Exército para mudar o quadro de violência que até então a comunidade vivia. Mas a cada dois meses, havia uma mudança de soldados e também do comando da operação, fato que gerava abordagens diferentes, pois o comportamento da tropa dependia das orientações do comandante da vez. Segundo os dados oficiais divulgados pelo Ministério da Defesa, houve redução na taxa anual de homicídios durante a ocupação na Maré, mas com o tempo, os militares começaram a cometer as mesmas violações de direitos praticadas por policiais.
Segundo a pesquisa, nove de cada 100 moradores tiveram problemas com os militares, sendo os principais a forma de abordagem (70%), agressões verbais (46%) e físicas (31%), danos aos bens materiais (15%) e diversas invasões domiciliares, fato comum nas operações policiais na Maré e que continuou acontecendo durante a ocupação do Exército. Levando-se em conta que são 47 mil domicílios nas áreas ocupadas, cerca de quatro mil podem ter sido revistados pelos militares e, em muitos casos, sem o consentimento do morador.
Conclusões
De fato, não houve pacificação na Maré, o que mostra que o modelo adotado não pode ser considerado um sucesso. A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Maré não saiu do papel e nem tampouco os grupos civis armados deixaram de atuar na região. Os gastos com a ocupação também são espantosos. Com a pretensão de tornar a região segura, o Governo Federal gastou cerca de 600 milhões de reais dos cofres públicos com as Forças Armadas em pouco mais de um ano, enquanto a Prefeitura do Rio investiu, no período de seis anos, metade desse valor (R$303 milhões) em projetos e programas sociais. Na época, o próprio Secretário Estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, dizia que a solução policial era apenas a “ponta do iceberg”, e que o problema da violência deveria ser precedido por projetos sociais em áreas pobres.
Enfim, fica a impressão de que a verdadeira intenção das Forças Armadas com a ocupação era apenas o controle dos territórios para que a Copa do Mundo pudesse ocorrer sem maiores problemas, mas também fica o questionamento sobre o tratamento dado ao morador de favela pelos soldados, que representam o Estado brasileiro, a “Pátria Amada” e a “Mãe Gentil”. A população da favela, discriminada por diversos setores da sociedade, é a primeira a querer que as condições de Segurança pública melhorem, mas a solução não é fácil, como mostrou a ocupação militar na Maré, no Alemão e, ao que parece, em qualquer outro lugar onde não haja a participação da população local no planejamento das ações e maior presença estatal por meio do investimento em políticas sociais.
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Encabeçados por uma nova geração de ativistas, projetos de sensibilização e conscientização da condição feminina florescem pouco a pouco nas periferias
João Ker
Assovios, agressões, assédios, palavrões e todos os mais diversos tipos de violência – a quantidade de opressões suportadas por mulheres ao longo da história é incontável. E, apesar dos avanços obtidos com o passar dos anos, há ainda um longo caminho para ser percorrido até a igualdade. Caminho que o movimento feminista começa a trilhar em novas camadas sociais, sensibilizando mulheres que, por vezes, nem se dão conta do abuso diário ao qual são submetidas. E, dentre esses projetos de sensibilização está o Coletivo Madalena-Anastácia, que usa o teatro como canal para levantar debates sociais, com base em laboratórios e em suas próprias experiências como mulheres negras.
Fundado em 2015, o Grupo utiliza o método criado na década de 1970 por Augusto Boal (1931-2009): o Teatro do Oprimido, que usa os palcos como forma de diálogo entre sociedade e artistas. Apresentando-se por áreas periféricas do Rio por meio de ONGs, escolas, praças, ruas e instituições, suas 13 integrantes denunciam, em diálogos verbais e corporais, situações cotidianas de abuso. Lideradas por Bárbara Santos, precursora do movimento, elas mantêm seu foco sempre em mulheres, especialmente as negras, com realidades bem próximas às suas. “Trabalhamos com histórias reais, que são resultado de muito laboratório. Por meio delas, montamos uma peça baseada no racismo e no machismo que nos atravessa. Não é apenas entretenimento – trazemos sempre uma reflexão e uma pergunta para a nossa plateia”, conta Carolina Netto (33), integrante do coletivo. A técnica do Teatro-Fórum, na qual a barreira entre palco e plateia é quebrada para o debate social tomar seu espaço na ribalta com a participação do público, gera identificação e conscientização em níveis imprevisíveis durante os espetáculos apresentados pelo Grupo. “Muitas pessoas se chocam, choram e ficam angustiadas com o que a gente mostra. Mas são histórias que merecem ser contadas”, aponta Carolina, esclarecendo que homens e mulheres brancas, muitas vezes, se sentem incrédulos e perturbados ao se identificarem em uma situação semelhante a dos opressores retratados na apresentação. “Nossas peças são, geralmente, recebidas com bastante impacto. Já tivemos convidados na plateia que, durante o fórum, tentaram emplacar um discurso de defesa da opressão como forma de aliviarem suas consciências”, avalia.
Projetos semelhantes de sensibilização e capacitação de mulheres da periferia vêm surgindo e se fortalecendo no Rio de Janeiro, muitos deles ajudando a desmistificar o medo e a repulsa contra o termo “feminista”. Karolayne Cristine, de 19 anos, por exemplo, confessa que sua relação atual com o movimento é bem diferente da que teve quando o descobriu de maneira superficial. “Eu tinha a mente bem fechada e conservadora. Meu primeiro contato foi o de repulsa, porque me apresentaram o feminismo de forma desvalorizada, como se fosse um desmerecimento”, conta. O que mudou a mente de Karolayne foram as aulas no curso pré-vestibular oferecido pelo Centro Comunitário de Capacitação Profissional Paulo da Portela, em Oswaldo Cruz. Ali, ao aprender Cidadania, ela teve contato com feministas, transsexuais e agentes públicos que a ensinaram novas realidades e até novas maneiras de encarar o seu próprio papel social. “Quanto mais você estuda, menos ignorante fica”, brinca a jovem, hoje declaradamente ativista e integrante da Marcha das Mulheres. Ela esclarece: “Eu sigo a linha do feminismo que aborda a vida nas periferias e o movimento negro, abrangendo outras situações, como o preterimento da mulher negra na faculdade, sua hipersexualização e todo o nosso contexto histórico”, aponta, citando os séculos de avanços que as mulheres brancas tiveram, enquanto as negras ainda lutavam pelo fim da escravidão.
A força que o sangue jovem tem para pulsar o movimento em áreas nas quais ele ainda não chegou é inestimável. Pela internet, as novas gerações de mulheres vêm aprendendo e disseminando conceitos e lutas em torno do feminismo, alcançando mulheres ainda alienadas sobre o assunto. No Complexo da Maré, a produtora de conteúdo AMaréVê foca o seu trabalho principalmente na forma como a figura feminina é representada no meio audiovisual. O Grupo foi idealizado por Suzane Santos, Karina Donaria, Jéssica Pires e Mayara Donaria, quatro jovens moradoras da região que se envolvem, ativamente, na vida política e social do bairro, ao mesmo tempo em que se transformam em catalizadoras do estilo de vida dali. “Nós não discutimos os temas, apenas. Nós vivemos isso”, explica Mayara. “Nós fazemos esse recorte de gênero, porque ele não existe nos lugares onde a gente vive. Produzimos juntas e tem dado bastante certo”, comenta Mayara, citando festas, vídeos, fotografias e palestras em escolas públicas como algumas das vertentes de seu trabalho.
O empoderamento sexual pela subversão do funk
Nas periferias do Rio de Janeiro, o feminismo também encontra um de seus grandes paradoxos: o funk. Ao mesmo tempo em que o ritmo é encarado por alguns líderes do movimento como forma de opressão e hipersexualização da mulher pelos homens, há vertentes que defendem o poder que ele proporciona de autocontrole sobre o corpo e a sexualidade. É o caso do Afrofunk Rio. Usando o gênero musical como gancho, o Grupo intercala movimentos corporais com histórias contadas sobre os ritmos africanos e suas tradições milenares. Do dancehall ao baikoko, passando pela dança dos orixás, as meninas entendem como o ritmo carioca é parte de uma expressão cultural que deve ser respeitada e celebrada. Comandado por Taisa Machado e Sabrina Ginga, o coletivo aplica oficinas regulares na Fundição Progresso, na Lapa, e outras edições itinerárias que ramificam e potencializam o alcance das aulas. “O grande diferencial do nosso trabalho são as informações históricas. Você entende por que cada movimento é executado, e então toma consciência de que as mulheres rebolam há mais de 8 mil anos como uma função social”, esclarece Taísa, enquanto Sabrina acrescenta: “temos um discurso muito voltado para a liberdade, principalmente do corpo e do sexo. Costumamos dizer que nossa aula é afrocentrada, porque segue práticas de origens africanas. Dessa forma, debatemos que o corpo, a sedução e o sexo não são pecados nem errados. Assim, empoderamos nossas alunas”.O curso se divide em três módulos: o primeiro foca na libertação das pernas e do quadril; em seguida, o Grupo trabalha os arquétipos de deusas e alguns deuses do candomblé – Iansã, Oxum e Iemanjá, assim como Ogum, Xangô e Oxóssi; por fim, é apresentado um panorama geral de ritmos como o kuduro, dancehall e sons tradicionais da Bahia e do Rio de Janeiro. Na turma, há mulheres tanto da Zona Sul e do Centro quanto de Nova Iguaçu e da Tijuca, a maioria em torno dos seus 20 anos. “Trabalhamos também com a galera ‘tombamento’, o pessoal que curte rap e funk, mas que não se sente seguro em nenhum dos dois ambientes. Principalmente meninas mais novas, gays e transsexuais”, lembra Taisa.
Durante as oficinas, ela e Sabrina oferecem um local seguro para que as alunas possam se expressar sem os olhares e comentários opressores de homens que, majoritariamente, “inundam” os espaços onde o funk é celebrado. A reação é palpável: “Sempre levamos a conversa em torno da liberdade corporal e de como ela influencia a maneira que você se veste, como você anda e a atitude que você tem. E essa é uma questão muito delicada, por mais que não pareça. Para muitas meninas, é uma vitória poder e conseguir usar um shortinho durante aquele período. Ali, ninguém repara se você tem ou não celulite. Elas estão em um ambiente seguro, sem padrões e sem cobranças estéticas”, esclarece Sabrina. E, por mais que esse não seja o foco, é inegável que o feminismo permeia o trabalho realizado pelo Afrofunk. “O que a gente aborda de fato é a liberdade, sabe? A liberdade de dançar e conhecer seu corpo. De entender a sua música e a sua história!”, defende Taisa.