Por Flavinha Cândido(*), em 24/05/2022 às 07h. Editado por Jéssica Pires
A Marcha Contra a Violência na Maré, que aconteceu em maio de 2017, foi um desdobramento de uma série de ações mobilizadas por moradores da Maré, associações de moradores e instituições que atuam na Maré que pediam um basta à violência no território naquele momento. Era – e ainda é – inaceitável que todos que vivam e trabalham na Maré tenham que passar, cotidianamente, por situações de violência. Neste dia 24 de maio completamos 5 anos desta mobilização, porém a luta que mobilizou a Maré para marchar contra a violência, persiste.
Quando eu paro para relembrar o que foi a Marcha da Maré, penso muito mais do que em minha trajetória singular. Entre tantas coisas, pensar na Marcha é pensar em Marielle Franco, que estava aqui no solo da Maré, onde ela nasceu, onde eu nasci, local em que a resistência reside. Um símbolo disso pode ser visto quando revisitamos as imagens daquele dia e vemos Marielle Franco ao lado de Eliana Silva – diretora da Redes da Maré – e alguns artistas percorrendo o trajeto da Vila do João, uma das 16 favelas da Maré, em direção à Rua Evanildo Alves (região também conhecida como divisa), chamando os moradores para se juntarem na caminhada, enquanto um outro grupo também vinha do Parque União em direção a esse ponto de encontro.
É simbólico demais relembrar como esses dois grupos, que juntos reuniram mais de 5 mil pessoas, caminharam literalmente em direção a um mesmo objetivo, com uma garra e disposição comum. Renata Souza, jornalista e moradora que nem sonhava em ser deputada nesta época, também participava da mobilização chamando os moradores para caminhar e encontrar com o outro lado que não é oposto e, sim, único. Todos pela Maré.
Até 2016 eu não atravessava a “divisa” e foi através das mãos da Renata, na campanha de Marielle Franco para vereadora, que rompi com esse bloqueio invisível. Precisamos entender que tudo é nosso. Nosso bairro Maré. E seguirmos sem esse obstáculo abstrato muitas vezes imposto. Por isso, 24 de maio de 2017 é um marco na vida dos mareenses por essa simbólica “união” de lados promovida pela marcha denominada “Basta de Violência”. O desejo de cada um dos moradores é muito forte: queremos paz. Temos o entendimento da vida de uma população marcada por um bloqueio invisível, construído por situações de abandono do Estado, que não tem preocupação em efetivar políticas públicas no espaço e o abandona ou se faz presente em operações policiais violentas.
Infelizmente, a região acaba sendo ocupada por diferentes grupos civis armados, intensificando a sensação de insegurança e a sensação de impossibilidade de circulação entre territórios. A Marcha da Maré foi fundamental para começarmos a romper esse bloqueio. Muitas pessoas que nunca haviam caminhado da Vila do João ou do Parque União à Divisa – Rua Evanildo Alves – fizeram este caminho pela primeira vez. Gritando paz e chamando o morador para a rua, compreendendo a importância do seu direito de ir e vir por onde quiser e desejar, afinal de contas, o bairro Maré é uma conquista.
Sabemos que é quase um devaneio pensar na ideia de familiares que vivem sob a ideia de lados opostos, não poderem atravessar uma divisa simbólica para se visitar. No dia, vivi um momento muito peculiar na Marcha. Meu encontro com minha tia, que mora no Parque União (eu morava na Vila Pinheiro na época), ao chegar na divisa. Todas as visitas que minha tia fazia eram feitas por fora, eu havia aprendido a fazer o caminho por dentro em 2016 (como relatei anteriormente), mas aquele momento não tinha sido combinado e foi marcante. Outras pessoas viveram a mesma situação.
O corte do bloqueio invisível foi tão importante que, além da mudança do caminho para as visitas, meu filho passou a frequentar o preparatório de ensino da Redes da Maré em 2018. Dessa forma, colocou-se em prática uma das maiores marcas da Marcha da Maré: a quebra do muro simbólico que não está só na rua, mas também é presente dentro de nós e no acesso à direitos.
Chegar na Divisa e olhar aquela casa alvejada com flores no local de cada buraco de bala é ressignificar. É ter a certeza que o desejo existe para que seja decretado o fim do obstáculo oculto que atravessa cada morador da Maré seja de qual lado for. A Marcha é um marco no movimento para pedir, demandar “Basta de Violência” e é hora de quebrarmos todos os obstáculos invisíveis.
Um dos grandes legados dessa mobilização foi a organização do Fórum Basta de Violência! Outra Maré é possível…, uma articulação dos moradores, das associações, instituições públicas e não governamentais do território e outros atores estratégicos que se reúnem para debater caminhos que a curto, médio e longo prazo fortaleçam o direito à segurança pública nas 16 favelas do bairro. Os encontros propostos pelo fórum pretendem construir caminhos e espaços coletivos de escuta, acolhimento e formulação de propostas que nos fazem agir e enfrentar, de forma organizada, esse processo de conquista pelo direito à segurança pública na Maré. Acesse o site do Forum Basta de Violência Outra Maré é possível e conheça mais desta iniciativa:
Flavinha Cândido é mãe do Celso, Guilherme e Artur. Mulher negra, moradora da Maré, socialista, professora popular