Culpados até que se prove o contrário: o peso das violações de direitos nas favelas

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Subversão da presunção de inocência, presente na Declaração de Direitos Humanos e na Constituição Federal, é rotina nas regiões periféricas do Rio de Janeiro e do Brasil

Daniele Moura e Tamyres Matos

“Atirar primeiro, perguntar depois”. Não há um morador de favela que não conheça de perto algum reflexo dessa máxima. Todos estão cientes de que o estado de alerta é necessário para não se tornar a próxima vítima. Mas o que acontece depois do tiro? O que acompanha o luto? Trajados de dor e tristeza, familiares e amigos das pessoas mortas por policiais reverberam com a projeção que conseguem: “queremos justiça”. Mas a realidade é que poucas vezes a tão sonhada justiça vem.

O Maré de Direitos, uma das principais ferramentas na luta por direitos dentro do maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, registrou o atendimento de 296 situações de violações por parte de policiais entre os anos de 2016 e 2021. Destes, 117 casos resultaram em morte ou lesão corporal grave. Do total de atendimentos, somente sete processos foram judicializados e apenas um deles resultou em acordo judicial e foi finalizado.

“Muitas vezes, as pessoas têm medo de represálias dos policiais ou são afetadas pelo discurso de que a Justiça não chega para o morador da favela. Quanto às desistências, a demora faz perdurar o luto, o sofrimento das famílias. Os procedimentos pré-processuais também são prolongados demais. Este serviço precisa ser claro, eficiente, correto, mas tem que ser rápido também. Porque, quando ela demora demais, faz nascer dentro das famílias um sentimento de injustiça”, afirma Lucilene Gomes, advogada e redutora de danos do Espaço Normal, espaço de acolhimento da Redes da Maré.

Há mais de 4 anos, a família de Jeremias Moraes da Silva, assassinado aos 13 anos de idade durante uma ação policial, vive essa “via crucis” da luta por Justiça. “Meu filho foi morto por despreparo, covardia. Um menino que é alvejado pelas costas, com um pirulito na mão… e os policiais alegam que estavam ‘se defendendo’. Do que, eu não sei. Da ‘arma’ que ele tinha na mão? Só se pirulito agora virou uma arma. Ele estava na porta da casa de uma amiga da igreja, indo ensaiar um hino”, relembra a mãe do menino, Vânia Moraes da Silva.

Na casa da famílias, retratos guardam fotos de Jeremias. Foto: Matheus Affonso

As palavras de Vânia têm a marca do cansaço de quem passou pela pior experiência na vida de uma mãe. No dia da morte do filho, não havia  qualquer operação na comunidade. Ou seja, nem o alerta subjetivo do medo coletivo havia sido disparado para que o adolescente soubesse que “não podia” andar desatento pela rua. Ela relata que, após o assassinato de Jeremias, não foi convocada em nenhum momento para prestar depoimento na Divisão de Homicídios da Capital, que supostamente investiga o caso, mesmo tendo um advogado – que é  pago pela igreja que Vania faz parte. 

“Eu só quero que pelo menos eles (policiais que atiraram em Jeremias pelas costas) se sentem no banco dos réus. Meu advogado explicou que dificilmente eles seriam condenados, estão respondendo administrativamente. Só quero que eles respondam, pelo menos, a um júri popular. Acreditar que eles vão ser presos? Não acredito não. Infelizmente eles vão estar por aí para matar outras crianças. Eu me lembro que, assim que aconteceu o caso do Jeremias, nós demos uma entrevista e eu falei que Jeremias não seria o último, como não foi. Tivemos o Marcus Vinicius e tantas outras crianças que foram mortas. Teve um menino que foi morto dentro de casa – referência ao caso João Pedro, em São Gonçalo -. Vira e mexe a gente escuta essas notícias na televisão”, resigna-se.

Na Maré, Clínica da Família leva nome da criança, morta em 2018. Foto: Matheus Affonso

Sangue escorre pelos becos (e nada acontece)

O Rio tem a polícia mais letal do Brasil, apesar de não estar entre os dez estados mais violentos do país. De acordo com uma pesquisa sobre o tema divulgada pelo MP do Rio em 2020, o padrão no uso da força pelas polícias no Rio é muitas vezes atribuído ao perfil da criminalidade local, que seria excessivamente violenta e armada. 

Mas, apesar de ser reconhecido nacional e internacionalmente como um local violento, o Rio ocupava o 11º lugar entre os 27 estados da federação em relação às mortes violentas intencionais em 2018, com uma taxa de 39,1 por 100 mil habitantes, o que representa 10,1% do total observado no país. Portanto, uma taxa menor do que a de estados como Acre, Alagoas e Sergipe, por exemplo.

De acordo com os dados obtidos no site do Instituto de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio (ISP), entre 2016 e 2020, jovens pretos são maioria entre as vítimas fatais por intervenção de agentes do estado. No período analisado, foram registradas oficialmente 1.190 mortes como resultado de ações policiais.

“O controle externo da atividade policial é atribuição do Ministério Público. Pesquisas que foram feitas no intervalo de mais ou menos 10 anos apontam que, para os casos de mortes de civis pelas mãos de agentes do estado, nós temos algo em torno de 99% de arquivamento por iniciativa do próprio Ministério Público. Tem que se discutir quais as razões para isso, o que nos conduziria a uma série de pontos como a perícia, a investigação e o inquérito policial como um todo”, analisa Daniel Hirata, pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para o especialista, existe um senso que justifica essas mortes aos olhos da sociedade, o que impacta na efetivação ou não dos dispositivos legais que deveriam proteger essa parcela da população do braço armado do Estado. Associa-se a região de favela ao tráfico de drogas na ótica do senso comum. E, em nome de uma suposta guerra às drogas, a ação que legitima o impulso do “menos um bandido para nos ameaçar” acaba sendo aceita como um efeito colateral, até mesmo quando essa inocência é comprovada. Ou seja, a situação extrapola até mesmo o vício dos “culpados até que se prove o contrário”.

“A gente ainda vai ter que avançar muito mesmo, todas as pessoas envolvidas nessa nessa questão – policiais, pesquisadores, organizações, imprensa, sociedade civil – para que se faça claro de uma vez por todas, que o fato da pessoa atuar no comércio de drogas não faz dela uma pessoa ‘matável’, uma pessoa cujo a morte é justificável. Nós não temos pena de morte no Brasil e não há morte pelas mãos do Estado que seja justificável, a não ser nos casos de legítima defesa, que não é o que acontece na maior parte das mortes que acontecem aqui no Rio”, considera Hirata.

O Ministério Público informa que a legislação brasileira atribui ao órgão o dever de oferecer denúncia ou promover o arquivamento de procedimentos investigatórios. “Logo, sempre que as investigações, por diversos motivos, não conseguirem reunir um mínimo de prova para que seja deflagrada uma ação penal, o MP promoverá o arquivamento, que poderá ser revisto diante de novas provas”, detalha em nota.

“O MPRJ vem adotando medidas para dar maior efetividade à apuração e responsabilização de agentes, com a criação: de grupos especializados de combate ao crime (como o GAECO); de Forças-Tarefas, Grupos de Atuação Especializada e Grupos Temáticos Temporários; de plantão 24h para denúncias sobre operações em comunidades; das Coordenadorias de Segurança Pública, de Direitos Humanos e Minorias, e de Promoção dos Direitos das Vítimas, para interlocução com as vítimas, seus familiares e a sociedade civil organizada”, lista o órgão.

Sem responsabilização, ciclo fatal é normalizado

Para que a democracia chegue o mais perto possível de funcionar plenamente, é preciso que seja respeitada uma série de processos. Para Daniel Hirata, no caso da força policial, quando não há uma sinalização clara de controle das instâncias, existe o risco de ocorrer um desestímulo àqueles que seguem as regras. Ou seja, a pessoa pode agir da maneira como achar conveniente, pois ela dispõe de forma praticamente ilimitada do poder de decisão sobre vida e morte, sendo que geralmente não há consequências.

“Esse é um dos motores da brutalidade policial mas é também um dos motores da corrupção policial. No momento em que você se sente completamente livre para dispor de forma ilimitada sobre a vida das pessoas, também se sente livre para poder negociar a vida das pessoas, vira uma questão “monetária”. Parte importante da corrupção entre os policiais também está associada a essa não responsabilização dos abusos cometidos”, observa o especialista.

Segundo Hirata, a possibilidade do indivíduo de reivindicar os seus direitos e questionar as falhas dos governantes e das instituições é parte essencial da democracia e, muitas vezes, ausente do cotidiano das favelas cariocas. “Quando você tem uma suposta democracia que falha a todo momento de cumprir o requisito mínimo, isso resulta em uma reação de envenenamento total das instituições. As pessoas precisam confiar no Estado para que ele funcione de forma adequada. Toda vez que há uma grave violação dos Direitos Humanos e isso não não tem consequência, a pessoa passa a desacreditar nas instituições e isso é muito ruim para o conjunto da democracia”, pontua.

Essa falta de confiança nas instituições, com o passar dos anos, se torna um problema cada vez mais difícil de resolver. “A política do medo é a característica fundamental do autoritarismo. Ela é lubrificante nas engrenagens da militarização e o medo não é um bom conselheiro, sobretudo na área de segurança pública”, pondera Daniel, que arremata:

“É um grande problema, por exemplo, comparar abusos policiais com abusos de grupos civis armados. Os policiais dizem que o tráfico de drogas age violentamente e, por isso, eles também agem assim. Porque o contexto do Rio é violento e os grupos armados matam policiais, barbarizam, enfim. Mas esse tipo de comparação estabelece um tipo de equivalência entre grupos armados e forças policiais. É muito problemático, pois dos grupos armados a gente não pode esperar nada, mas aqueles que representam o Estado, a Justiça, têm que cumprir a lei”.

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