”Democracia se dá lutando contra desigualdade social”, diz ex-ministro Juca Ferreira, presidente do Instituto Cultura e Democracia

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Organização fará seminário que discute o processo democrático em tempos de Globalização, Tecnociência e Desinformação.


Organizado pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia acontecem a partir de hoje (8/11) até o dia 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.  O Maré de Notícias vai participar da mesa sobre Cultura, Ciência e Democracia na mediação dos professores da UFMG Yurij Castelfranch e Ricardo Fabrino Mendonça; da professora da UFRJ Tatiana Marins Roque e do jornalista Adauto Novaes. O encontro acontece  nesta quinta-feira, 11 de novembro – das 9h30 às 11h50 e vai traçar um panorama sobre Globalização, Tecnociência e Democracia — e entender como o negacionismo científico e teorias conspiratórias atacam fundamentos da construção democrática do saber.

A frente da iniciativa está Juca Ferreira, sociólogo baiano que dedicou sua política às ações culturais, e ambientais.  Juca  já foi presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), no dia em que foi decretado o AI-5 em 1968. Passou nove anos exilado no Chile, na Suécia e na França. Estudou Línguas Latinas na Universidade de Estocolmo, na Suécia, e Ciências Sociais na Universidade de Sorbonne, na França, onde se formou. Foi Ministro da Cultura no governo Lula. Juca Ferreira conversou com exclusividade com a editora do Maré de Notícias, Daniele Moura.

MDN: Comente o que é o Instituto Cultura e Democracia?

Juca Ferreira: Desculpe, vou começar do início (risos). Eu estive na Maré participando de uma atividade com Boaventura Sousa Santos no Museu da Maré. Foi um dia muito legal.  Eu me emocionei muito com o depoimento da presidenta da Associação das Mães de filhos assassinados nas ações policiais e  é impressionante mesmo. Eu fui tomado por uma emoção pelo drama humano, com a tragédia e a grandeza dessas mães.

MDN: Como é que a gente pode assegurar a democracia de fato se a gente interrompe sonhos de jovens negros todos os dias nas periferias brasileiras?  

Juca: Essa é uma das questões centrais desse seminário e não será respondida neste primeiro ciclo, porque nenhuma questão será respondida em um só ciclo mas estará presente em todos os ciclos. Eu pretendo realizar um seminário atrás do outro. O próximo será em março. É inviável pensar em construir uma democracia no país enquanto a polícia é autorizada a entrar nos bairros onde moram os trabalhadores e trabalhadoras pobres e em sua maioria negros. Isso acontece para exterminar, matar, atemorizar. Manter o controle através do uso de armas letais é inviável. Isso não acontece na classe média, e não adianta a sociedade olhar para outro lado e fingir que não está vendo. É uma política de extermínio, de controle social, de manutenção da ordem através de instrumentos que causam a morte desses jovens. Muitos desses jovens não são ligados ao tráfico. Na verdade, não há bala perdida em bairro de classe média porque ela é um instrumento absolutamente de controle de uma política de manutenção da ordem através da violência e da morte. Então esse tema central no Brasil que tenta construir democracia sem superar certas mazelas. Nós ainda temos na nossa sociedade não só o racismo estrutural como uma série de heranças perversas da escravidão. Nós temos heranças do período colonial e a democracia, na verdade, nunca pode florescer na nossa sociedade porque ela já chega com data de validade vencida. A gente está em processo de recuperar de novo o estado de direito, pleno e democrático, mas a gente já sabe, que alguém vai tentar um golpe, que vai tentar embelezar o governo legalmente eleito. Nenhum país do mundo avançará ou avançou sobre essa ameaça permanente de retroceder para um regime ditatorial e autoritário onde o controle se dá  com autoritarismo e perda de direitos constantes. A ideia deste seminário não é discutir democracia sob o ponto de vista estrutural das instituições, nós queremos mergulhar em vários aspectos as relações sociais e as relações cotidianas individuais:  cultura de valores, respeito ao outro, entre outros. Então, tem uma coisa que é a educação que prepara os brasileiros das futuras gerações para viver em sociedade. O complexo é  que nunca foi pensado em conjunto, tem pessoas pensando um aspecto outras e pessoas pensando em outro, e é necessário pensar no todo.

MDN: De que forma a cultura, no seu entender, pode ajudar a garantir o sistema democrático de direito?  

Juca: A cultura tem um papel de afirmar valores e afirmar visões de mundo, construir sensibilidades. É preciso devolver a base da democracia no Brasil. Isso se faz por meio de valores. Quando eu convidei o economista professor Belluzzo (Luiz Gonzaga Belluzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp) para o seminário ele me deu uma aula em poucas palavras.“Juca a economia também precisa de valores, tem valores da economia neoliberal que  ignora completamente as necessidades e demandas humanas e reduz a questão apenas à produção e circulação de mercadorias, e ao espaço do capital financeiro. Essa redução faz com que se acirre as diferenças sociais e a desigualdade se torne mais cruel, com a perda de direitos.”  Eu até complementei para que um dia isso chegará na eugenia. 

MDN: Mas já não é assim hoje?
Juca:
É, eles já fazem isso, defendem. Mas não me surpreenderá se derem um passo adiante fazendo com que o Bolsonaro possa sair em defesa da eugenia todos os dias. ,o que a gente precisa é dessa aula em todas as dimensões da vida em sociedade e da produção de valores individual e coletiva, para que a gente possa pensar novas estratégias para consolidar a democracia no Brasil  – que até hoje desde a Proclamação da República, nós nunca tivemos um tempo suficiente para a qualificação dos procedimentos democráticos no país para que a democracia pudesse estender seu manto para todos os brasileiros, sobretudo os trabalhadores pobres que moram nas periferias. Quase todos os negros desse país estão à margem dos direitos e toda essa institucionalidade. Não é possível construir uma democracia nessas condições.

MDN: Não seria a miopia neoliberal?
Juca:
Exatamente, importante que você disse sobre a miopia neoliberal, eu usei esse termo num artigo pensando nas eleições que virão. Nessa perspectiva  de não conseguir enxergar a realidade como ela é.

MDN: Essa miopia tomou todas as classes sociais, inclusive nas periferias. A que você atribui a defesa desse neoliberalismo nas favelas, já que são essas pessoas as mais prejudicadas nesse contexto?

Juca: A vida me ensinou com Marx (o filósofo revolucionário alemão Karl Marx foi o criador da ideia socialista) que a ideologia da classe dominante é um princípio que se manifesta em toda a sociedade. Os explorados, oprimidos e excluídos que são a base da sociedade assimilam e tendem a assimilar, cada vez mais, os valores da sociedade dominante, inclusive as que lhe causam a própria exclusão social. É necessário uma ação que pudesse ultrapassar o limite de uma consciência mais imediata,  uma consciência econômica de melhoria do salário para rejeitar e buscar uma alternativa a esta sociedade baseada na exploração do ser humano pelo ser humano. Eu passei oito anos na Suécia,trabalhei como faxineiro no maior jornal do país,  e um dos dias mais chocantes foi quando o correspondente, que morava no Rio de Janeiro, foi questionado se era verdade que existia tortura no Brasil. Ele respondeu “olhe eu não conheço os subterrâneos daquela sociedade, mas o que eu vi na superfície eu garanto que tem tortura no Brasi” e daí ele descreveu a lógica de uma ideologia para a visão de mundo a falta de consciência, como se as pessoas aceitasseam viver no prolongamento da escravidão cuja a  única diferença é não ter a propriedade sobre o outro mas a consciência de direitos. Ele falou ainda que a piada mais popular do Rio de Janeiro, neste momento, era sobre atravessar a rua com sinal fechado. Essa piada é impossível na Suécia, você bota o pé na rua e os carros todos param, isso é uma consciência de direitos profunda. Por lá, pai e mãe não podem bater em criança, você não pode perturbar a vida alheia impunemente,  tem todo uma regra de respeito ao outro, respeito às diferenças, consciência de que a vida em sociedade tem seus direitos e precisam ser realizados.  Escutei há alguns dias uma fala na televisão que demorei para digerir: que o autoritarismo que permite essa quantidade inacreditável de golpes de estado desde que o Brasil proclamou a República, é sustentado por uma cultura popular. Que o é do povo brasileiro a aceitação da violência, da desigualdade, da inexistência de direitos institucionalizados, do desrespeito ao outro, da dificuldade de compreender de que as diferenças humanas são uma riqueza e não um problema.


Parte da democracia também se dá lutando contra desigualdade social, sobretudo na questão financeira, então, benefícios sociais, auxílios que possam garantir minimamente a dignidade dessas famílias também faz parte de uma construção da democracia de alguma forma. No Brasil que extingue esse tipo de benefício, onde se tem cortes de investimento na educação e na saúde, como é que a gente pode ter na prática uma possibilidade de luta para garantir a efetivação desses direitos? No governo Lula e Dilma, o povo brasileiro conquistou direitos econômicos como nunca tinha antes. Nem Getúlio deu esse aumento do poder aquisitivo por meio da valorização do salário mínimo,  ampliando o emprego e a possibilidade de entrar na universidade.  

MDN: Parece que isso incomodou.

Juca: Incomodou mesmo. E agora vivemos uma quantidade gigantesca de interrupção pelo golpe. Havia naquela época, uma democracia ia se construindo na possibilidade de desenvolvimento e melhoria da sociedade, sem violência. O golpe  interrompeu e não deu tempo de gerar essa consciência de que estávamos  vivendo um processo político. Todas as pesquisas sociológicas indicam que uma parte, talvez a parte majoritária, acha que foi o pastor que conquistou isso, outros acham que foi Deus lá de cima olhando para baixo, outros  que foram esforço pessoal, enfim,  pouquíssimos compreendem que se vivia um processo político onde o Estado Brasileiro através de um governo popular e democrático, estava buscando melhorar as condições econômicas de vida.  Isso é um dos temas de discussão do seminário,  não basta lutar por uma melhoria das condições de vida, é necessário que as pessoas tomem consciência, é necessário um processo cultural onde as pessoas possam entender  como funciona a sociedade com seus direitos e obrigações. Isso é uma construção. Historicamente os que lutaram por justiça social compreenderam que o partido político democrático tem um papel grande no sentido do processo de educação social. Como nós não temos ainda esse nível de influência sobre a sociedade e já tem mecanismos perversos de construção para reforçar a ideologia dominante e adaptar os pobres do Brasil a essas condições precárias e desumanas. Estou falando de igrejas neopentecostais, estou falando de outros mecanismos que estão sendo desenvolvidos por meio da comunicação, por meio da internet. É um bombardeio gigantesco que o sistema conta para manter tudo como está, então não podemos repetir no próximo governo o que está acontecendo agora. É preciso que os partidos democráticos e populares desenvolvam uma capacidade na sociedade de compreender o processo de disputa pela divisão da riqueza produzida. Nessa perspectiva, cultura também pode ser um instrumento de muita importância nesse momento de resistência,  de construção de consciência crítica sobretudo de jovens periféricos. Nós temos que afirmar valores na sociedade,  uma parte dessa afirmação não será feita pelo governo.  Temos que ser um instrumento de disputa dentro da sociedade, partidos políticos,organizações não governamentais, movimentos sociais precisam disputar, por exemplo, o que o capitalismo oferece para transformar todos em consumidores perdendo a amplitude e a grandeza da condição humana. Com isso, você passa acreditar que consumindo mais e mais quinquilharias que nos são oferecidas, você está no projeto de felicidade e não de empobrecimento do ser humano. É inacreditável esse estágio do capitalismo, então é preciso enfrentar o consumismo barato porque quem não tem, deseja mais do que já tem, você vê que os movimentos que são críticos ao consumismo andam mais rápido nas classes sociais mais baixas. 

No governo Lula eu percebi que os carrinhos dos pobres se encheram no final do primeiro ano ainda 2003 transbordando de coisas. Quando eu fiquei feliz  em ver pobres do Brasil tendo um mínimo de condição, fui olhar aquele biscoito que parece isopor e tem o pacote é laminado, muito refrigerante, gorduras hidrogenadas, biscoito recheado, eu caí do cavalo eu pensei comigo mesmo, não basta dá dinheiro e disponibilizar o aumento do poder aquisitivo. Como diz Paulinho da Viola, dinheiro no bolso e vendaval. É preciso ter consciência de que o dinheiro no bolso represente melhoria da qualidade de vida, porque, na verdade, esse consumo inconsciente leva a uma piora das condições de vida. Eu me interessei pelo assunto e fui pesquisar houve um aumento de problemas cardíacos, um problema de rins, fígado casos de câncer ou seja a  obesidade e a desnutrição por causa dessas porqueiras. A classe média brasileira tem um nível de informação internacional,que  se tem na Europa, nos Estados Unidos sobre o excesso de carboidratos que tem  comida Industrial.  Quando a gente fala de melhoria das condições econômicas pode ser uma armadilha, então é preciso melhorar a qualidade de vida das pessoas e a consciência vai na frente fazendo com que o uso desse dinheiro a mais seja produtivo para melhorar a qualidade de vida das pessoas. 

MDN: O racismo estrutural não deixa, né?

Juca: O  racismo é muito forte na sociedade brasileira mas houve com esse último golpe de 2016, houve uma saída do armário de uma parte misógina, homofóbica, reacionária da sociedade movida pelos  evangélicos neopentecostais. O tema da direita que surgiu pela mídia – que preparou o terreno para uma de caçada ao  PT e ao Lula –  matou a luta pela justiça social. Foi a criminalização, a desvalorização da luta pela justiça social e a substituição disso por uma passividade consumista e pela aceitação do que a sociedade oferece. Essa preparação foi gigantesca e com a contribuição da lava-jato, com a ajuda do Parlamento e  do Judiciário.  Não queremos  esse substrato reacionário que tem uma base na população pobre,  viesse para as ruas dizer as maiores bobagens inacreditáveis.  |Uma mulher apareceu  em São Paulo condenando Lula e Dilma porque ela não encontrava mais empregada doméstica.  Isso  é miopia, alienação onde você cola numa realidade e passa ver o mundo a partir de certos interesses não conscientes e que se expressam na sua estruturação da realidade. Então esse lado tá nas paradas tá solto dizendo bobagens com a maior desenvoltura no Brasil. É a exaltação da ignorância, com maior orgulho se diz burrice com um nível de complementação que parece que o cara tá defendendo uma tese de doutorado de muitos anos de estudo quando a verdade é uma burrice primária. Então nós estamos sob o impacto da emergência do lado podre da sociedade brasileira, mas outro lado, existe uma possibilidade de retomada de um caminho que é longo, difícil, cheio de obstáculos, mas que é possível.

MDN: A revolução virá da favela, Juca?

Juca: A gente não pode ser romântico para enfrentar esse sistema injusto desigual desumano que felicita o burguês que  é escravo do capital, que vive para acumular. O projeto de felicidade para ser humano não pode ser esse. Os pobres têm uma carga infinitamente superior de felicidade que não tem nem acesso aos bens que a sociedade oferece. Quando era Ministro em um  evento na Bahia eu saí andando pelas ruas do Pelourinho. De repente eu vejo  um vendedor ambulante que eu conheci quando era funcionário da livraria onde eu comprava meus livros. Ele disse assim “quero ver se Juquinha ainda é a mesma pessoa que eu conheci, senta aqui no chão. Eu sentei no meio-fio e conversamos. As pessoas que passavam me vendo  sentado no chão conversando com camelô parecia uma cena do outro mundo. Na conversa perguntei sobre o Natal que estava perto. Ele disse que tinha três filhos e que o Natal é o momento mais triste nas famílias pobres porque ele não poderia dar o que as crianças pediam. Tomei uma lição ali.   Ele ainda disse “eu tenho que roubar porque senão eu não tenho condições mínimas de comprar o que eles desejam, as crianças veem na televisão, e querem.” É um circuito que  transforma até as crianças em consumidores e o pobre que não pode dar é um momento de vergonha pessoal,  de sua  falência como chefe de família. 

A gente quer discutir essas e outras perspectivas em outros espaços, até na Maré! A ideia é que a gente tenha desdobramento deste seminário mais para frente. Fazer o ano que vem em outras situações, em outros momentos, com recortes específicos. Temos que avançar!

A programação completa do seminário você encontra aqui.

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