63% das abordagens policiais são em pessoas negras

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O dado, referente a cidade do Rio, é da pesquisa Elemento Suspeito, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC.

Por Redação, em 15/02/2022.

A pesquisa Elemento Suspeito, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC, volta às ruas quase 20 anos depois da primeira edição, publicada em 2003, e confirma com dados inéditos que o racismo constitui o cerne da atividade policial e do sistema de justiça criminal – além de revelar a dimensão traumática dessas abordagens. O boletim do estudo, batizado de Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro, em meio a recentes casos noticiados em que jovens negros foram considerados elementos suspeitos pelos agentes de segurança – como o caso do jovem Yago Corrêa de Souza, preso ao comprar pão no Jacarezinho. O quadro geral é de que nos últimos anos houve uma radicalização do foco no elemento suspeito. 

O boletim Negro Trauma revela o universo das abordagens policiais na cidade do Rio de Janeiro e também outras experiências dos cidadãos com a polícia, além da avaliação da população sobre os agentes de segurança. A primeira parte da pesquisa foi quantitativa: a partir de um rastreamento com 3500 pessoas em pontos de fluxo na cidade, foram feitas 739 entrevistas detalhadas pelo Instituto Datafolha. A segunda parte foi qualitativa: foram realizados grupos focais e entrevistas com jovens moradores de favelas, entregadores, motoristas de aplicativos, mulheres e policiais. Desta forma chegou-se ao perfil predominante de pessoas consideradas reiteradamente suspeitas pelos policiais e escolhidas para as abordagens.  

Assim como na primeira pesquisa, comprovou-se que são os jovens negros os maiores alvos dos agentes de segurança. Enquanto 48% da população da cidade do Rio de Janeiro é negra, o percentual de pessoas negras abordadas pela polícia chega a 63%. Um quinto (17%) dessas pessoas já foi parada mais de 10 vezes. 

Quando olhamos o local das abordagens, percebemos que atividades comuns para pessoas brancas são vistas como suspeitas para pessoas negras. Negros são 68% dos abordados andando a pé na rua ou na praia, 74% em vans ou kombis, 72% nos carros de aplicativos, 71% no transporte público, 68% andando de moto e 67% em um evento ou festa. Em todas as modalidades de abordagem, sem exceção, os negros são mais parados do que os brancos. 

As ações são acentuadas por idade, gênero, cor, classe e território e por isso os pesquisadores utilizaram o índice IGCCT (com as iniciais de cada fator) para analisar os resultados. O que cria um perfil típico dos abordados: homens, negros, até 40 anos, moradores de favela e periferia, com renda até três salários mínimos. A distribuição desses fatores entre os que foram parados mais de 10 vezes é extremamente reveladora das características do elemento suspeito do ponto de vista policial: 94% eram homens, 66% eram negros, 50% tinham até 40 anos, 35% moravam em favelas, enquanto 33% moravam em bairros de periferia e 58% ganhavam de zero até três salários mínimos. 

“O papel dos agentes policiais camufla os papéis igualmente decisivos de delegados, promotores, juízes e agentes penais na manutenção e reprodução cotidiana do racismo. Puxamos o fio de uma meada: o ‘elemento suspeito’ depois se confirma como ‘culpado’ e, depois, como ‘criminoso condenado’, cumprindo ‘pena de prisão’, que, por sua vez, produz o perfil do elemento suspeito: o chamado círculo vicioso”, explica Silvia Ramos, que coordenou a pesquisa atual e a de 2003.

Bigodim finim, cabelinho na régua: quem a polícia escolhe revistar 

A revista corporal faz parte da abordagem. É um procedimento agressivo e invasivo em que o abordado é obrigado a colocar as mãos na parede, é apalpado em busca de armas e drogas, sofre com o olhar de reprovação das pessoas no entorno e, por vezes, tem armas apontadas contra ele. 

Esse procedimento é reservado a quem a polícia acha que têm cara de criminoso ou que está escondendo algo, como explicaram os agentes nos grupos focais. Entre os participantes da pesquisa 50% sofreu revista física e, entre eles, 84% eram homens, 69% eram negros (lembrando que apenas 48% dos cariocas são negros), e 70% eram moradores de favelas e bairros de periferia. Em contraponto, somente 10% dos brancos que ganham mais de 10 salários mínimos são revistados  

Policiais militares que participaram do grupo focal na pesquisa afirmam que o “elemento suspeito” seria aquele indivíduo com “bigodinho fininho e loirinho, cabelo com pintinha amarelinha, blusa do Flamengo, boné…” ou seja, os agentes descreveram a estética dos jovens das favelas e periferias cariocas. Mais uma vez, o índice IGCCT está presente na avaliação dos agentes. Para homens negros o risco de revista física é semelhante ao de ser abordado.

Mulheres e mulheres trans: revistas em bolsas e cabelos 

As mulheres (16%) são menos abordadas do que os homens (84%) e menos revistadas quando são abordadas. Embora ocorram eventualmente, são escassos os relatos de revistas físicas em mulheres executadas por policiais homens. No entanto, quando paradas pelos agentes de segurança, mulheres e mulheres trans passam por intimidações e têm suas bolsas revistadas com os pertences muitas vezes espalhados no chão e no capô das viaturas

“Eu não uso bolsa para ir trabalhar. Vou de mototáxi e eles não podem ver uma mulher negra na garupa da moto com bolsa que param a moto para revistar a bolsa”, explicou uma das participantes do grupo focal. 

Entrevistadas também relataram que, além da revista corporal, policiais costumam procurar drogas nos cabelos, isto é, nas tranças afro e nos dreads usados por jovens negras e negros. 

Violência nas abordagens

As abordagens implicam vivências que muitas vezes não se traduzem em violência física ou verbal, mas em situações de humilhação e constrangimento, que foram as palavras mais ouvidas nos grupos focais com jovens negros

Ao olharmos a pesquisa de 2003 e a de hoje, podemos ver que as ameaças durante as abordagens passaram de 6,5% para 23%. Mas a experiência violenta mais comum é ter uma arma diretamente apontada para si: o uso de armas apontadas para os abordados foi 9,7% em 2003 para 28% na pesquisa atual. 

São essas múltiplas experiências de violência que levam aos vários traumas psíquicos vivenciados por pessoas pretas. As abordagens têm um efeito prolongado sobre a vida dos sujeitos entrevistados, provocando mudanças no comportamento, na escolha dos trajetos, nos horários de trabalho e de lazer, na forma como se vestem ou utilizam seus cabelos e acessórios. Um dos entrevistados disse: “Eu fico pensando: como será minha vida? Eu vou aguentar ser parado pela polícia todo dia?”

Além do freio do camburão: outras experiências com a polícia

Nesta edição da pesquisa, outras experiências com a polícia, para além da abordagem policial foram consideradas. Entre os entrevistados, negros são 70% dos que presenciaram a polícia agredindo pessoas, 79% dos que tiveram suas casas invadidas e 74% dos que tiveram um parente ou amigo morto pela polícia. 

A dimensão traumática causada pela abordagem policial que persegue os elementos que julgam ser suspeitos vai além do enquadro ou do freio de camburão. Há outras ações dos agentes de segurança que impactam a vida das pessoas negativamente. O racismo cotidiano ganha forma nessas experiências. 

Avaliação das forças de segurança 

A pesquisa também perguntou aos entrevistados sobre a avaliação da PM em relação a eficiência, respeito, racismo, corrupção e violência. As pessoas também deram notas para as forças de segurança. A polícia Militar teve o pior desempenho entre os participantes do estudo com nota 5,4.

As notas são as médias de todos os entrevistados, considerando que alguns grupos fizeram avaliações mais negativas da Polícia Militar: 45% das pessoas pretas reprovaram a Polícia Militar (isto é, deram nota menor que 5); 23% das pessoas brancas e 28% das pessoas pardas também reprovaram a PM. Apenas 3% consideram a PM nada corrupta e 7%, nada violenta.

Sobre operações policiais, 80% dos entrevistados acreditam que elas precisam existir, mas quase a totalidade (97%) discorda que a polícia poder ferir e matar pessoas nessas ações. 

Sobre o CESeC

O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania é uma das primeiras instituições dedicadas aos estudos da segurança pública. Fundado em 2000, tem como principal objetivo a realização de pesquisas inovadoras e outros projetos que alimentem o debate público e contribuam para promover os direitos humanos no sistema de justiça criminal do país. 

Na presente pesquisa concluímos mais uma vez que o viés racial, a seletividade, o “racial profiling” nas abordagens policiais não é um “desvio”, mas sim parte da engrenagem racial e racista que estrutura a sociedade e, em particular, a justiça criminal. Por isso o CESeC assume o compromisso de transformar a luta antirracista numa prioridade de sua atuação e produção intelectual.

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