Por Luciana Bento – Conexão Saúde, em 10/10/2021 às 07h
O médico sanitarista Valcler Rangel Fernandes tem uma relação de longa data com os territórios da Maré e de Manguinhos, vizinhos à Fiocruz. Ainda estudante, na década de 80, ele já frequentava estes locais, participando de programas de educação em saúde.
Hoje, como assessor de Assuntos Institucionais da Fiocruz e membro do Comitê Gestor do projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid, Valcler está à frente de experiências pioneiras de combate à pandemia nestes territórios – não apenas no que se refere à saúde pública, mas também em relação à articulação e participação efetiva de atores e lideranças locais no processo.
Um ano e meio depois do início da maior crise sanitária já vivida globalmente pela humanidade, muitos desafios foram enfrentados. No caso da Maré, mesmo em um cenário difícil, respostas rápidas e acertadas ajudaram a diminuir óbitos e a tratar de forma inovadora e eficiente os casos confirmados de Covid-19.
Hoje, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro sedia uma pesquisa pioneira liderada pela Fiocruz, em parceria com a Redes da Maré e a Secretaria Municipal de Saúde, para avaliar a efetividade da vacina AstraZeneca, monitorar variantes do coronavírus, estudar a imunidade de pessoas não vacinadas e entender as sequelas deixadas pela Covid-19, entre outras questões.
“A Maré reúne um conjunto de especificidades que não é fácil de encontrar em outros locais. Não fazer algo do ponto de vista da investigação científica neste território único seria um erro, seria perder uma oportunidade que dificilmente vai se repetir”, diz.
Em entrevista exclusiva para o boletim Conexão Saúde – De Olho no Corona, ele fala da quebra de paradigmas que o estudo traz e da importância de desmistificar a ciência e valorizar saberes não convencionais. “Existe tanta gente capacitada e qualificada para participar dos estudos! São pessoas que têm curiosidade sobre novos assuntos, buscam novos conhecimentos, se engajam, se envolvem. Seria outro erro não valorizar este capital precioso”, arremata.
Para começar, você pode falar um pouco sobre esta relação histórica entre a Fiocruz e territórios periféricos, tanto urbanos quanto rurais, especialmente Maré e Manguinhos?
Valcler: É uma relação que remonta à década de 80 e abrange desde territórios periféricos em cidades, como é o caso das favelas, mas também populações indígenas, por exemplo. No caso da Maré e de Manguinhos, somos vizinhos de território, há uma ligação muito grande, coisas que acontecem ali e afetam o dia-a-dia da Fiocruz, a vida dos funcionários.
Um exemplo foi o episódio tragicamente famoso dos helicópteros da polícia sobrevoando a Maré e atirando. Este momento nos afetou totalmente, eu mesmo participei do processo de evacuação do prédio da Fiocruz, foi uma coisa muito forte. Então não dá pra tapar os olhos para esta realidade. A Fiocruz tem se envolvido nestas questões do território, discutindo violência como questão de saúde pública inclusive.
Já na década de 80, a Fiocruz desenvolvia um trabalho de educação para saúde na Maré, ajudando a desenvolver mecanismos de participação da sociedade organizada em vários processos, em um momento de formação da democracia no País, pós-ditadura militar.
E como esta relação histórica desembocou na criação do projeto Conexão Saúde – De Olho na Covid na Maré e em Manguinhos?
Valcler: Com a pandemia, a saúde passou a ser protagonista absoluta, prioridade como política pública nos territórios. Então não tinha como deixar de ser diferente: foi uma junção de expertises aliada a uma relação histórica para enfrentar um problema muito concreto e complexo.
A Fiocruz já estava com o projeto Se Liga no Corona!, de comunicação para territórios de favelas e periferias, e a aproximação foi muito orgânica, desdobrando na criação do Conexão Saúde e inclusive colocando a comunicação como um de seus pilares estratégicos.
O projeto inovou muito, trouxe resultados concretos e foi porta de entrada para alçarmos outros voos entre os parceiros. Foi muito importante esta presença no território, inclusive porque havia uma atuação muito fraca da Prefeitura naquele momento. A Secretaria Municipal de Saúde não respondia bem às propostas apresentadas nem apontava caminhos para a resolução de problemas muito urgentes.
E estamos vendo como é importante gestores que tomem decisões adequadas. Muita coisa só tem sido possível porque a Prefeitura mudou a postura em relação à pandemia e ao território.
Quase um ano e meio depois, outras inovações ocorreram. Desde a realização da campanha #VacinaMaré até a realização de um estudo inédito, liderado pela Fiocruz em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde e a Redes da Maré no território…
Valcler: Tivemos que responder aos desafios da pandemia a cada momento. Nesta construção, que a gente achava que ia durar três, quatro meses, e se prolongou muito mais, vimos a possibilidade de fazer uma pesquisa repleta de especificidades que só a Maré pode apresentar.
É um território de favela com adensamento populacional grande, são 140 mil habitantes em uma faixa muito estreita entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha, que traz resultados importantes no combate à pandemia, fruto do Conexão Saúde, aliados à vacinação em massa…
Tudo isso em um território que, em tese, é mais difícil de atuar, sobretudo por conta da violência. Mas até neste ponto o estudo é uma quebra de paradigma. A dificuldade não pode ser impossibilidade e estamos mostrando que dá para operar de forma diferente.
O estudo tem uma característica importante, de mobilização e envolvimento de pessoas do território no processo. Pode falar um pouco sobre esta questão?
Valcler: É de fato uma pesquisa que prioriza a interação com a população, o envolvimento de atores do território, o protagonismo de Agentes Comunitários de Saúde, das clínicas da família, das organizações locais e dos próprios moradores.
É uma forma de mostrar a importância da ciência no dia-a-dia, aproximar esta discussão, que normalmente fica muito distante. A pesquisa ajuda a trazer esta dimensão científica para o palpável. E as pessoas respondem muito bem, percebem que também podem fazer ciência de alguma forma. Não é coisa para iluminados.
Nosso estudo poderia ser de outro jeito? Sim. Há várias formas de se fazer uma pesquisa: a partir de dados secundários ou de observação, por exemplo. Mas fizemos esta escolha de trazer quem de fato vivencia a favela para participar do processo.
É um caminho mais arriscado, mais complexo, sem dúvida. Como faço pesquisa com engajamento? Como promover esta aproximação? Por detrás desta escolha está a crença de que a pesquisa não pode ser importante só para o pesquisador, para o grupo de pesquisa, para a instituição, para a universidade.
Ela tem que ser importante fundamentalmente para a população, para o morador, para o sistema público de saúde. Quando elementos de pesquisa, de dados científicos, são incorporados nos serviços, eles se qualificam, melhoram. É uma forma de devolver o conhecimento para a sociedade.
Quero ressaltar um ponto da sua fala, de que a ciência não pode ser coisa para iluminados… Como ampliar este acesso, em um momento em que as informações e saberes científicos são colocados em xeque em todo o mundo e em especial no Brasil?
Valcler: Quando o próprio ministro da Educação fala que a Universidade não é pra todo mundo, vemos que o cenário está de fato muito complexo. Eu contraponho este pensamento com outro: fazer ciência não pode se coisa de outro mundo. A busca pelo conhecimento é para todos. Não podemos ser vencidos por este pensamento medieval que emergiu nos últimos tempos.
Um exemplo é o papel dos Agentes Comunitários de Saúde no estudo da Maré. Entendemos que eles são elementos fundamentais para a qualificação da pesquisa. Eles têm um conhecimento dinâmico, vivo e específico do território. Existem questões que só eles podem trazer. São saberes diferenciados que precisam ser incorporados no estudo. Seria outro erro não fazer esta interlocução, não inseri-los de forma profunda neste processo.