Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável são possíveis nas favelas? Na Maré, moradores se unem para garantir o direito à alimentação
Maré de Notícias #125 – junho de 2021
Reportagem: Breno Sousa e Edilana Damasceno
Edição: Fred Di Giacomo
Arte: Nícolas Noel
A Agenda Global 2030 para o desenvolvimento sustentável tem como meta principal acelerar as transformações sociais, de forma que, em até dez anos, possamos alcançar um futuro possível e menos desigual, sobretudo para as populações mais pobres do mundo. Mas quais são as nossas perspectivas para o futuro diante de tantos problemas que nos cercam no presente? É possível acreditar num futuro mais justo numa cidade como o Rio em que 1,4 milhão de pessoas vivem em favelas? Não temos todas as respostas, mas sabemos que a luta por melhores condições de vida passa pela força e pelas mãos incansáveis da juventude periférica.
Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), de 2015, nasceram a partir dos 8 Objetivos do Milênio (ODM), lançados no ano 2000 pela Organização das Nações Unidas (ONU). Ao todo, foram propostas 169 metas, sendo as do objetivo 1 as que mais se aproximam daquilo que queremos ver para a Maré 2030: a erradicação da pobreza e a melhoria na qualidade de vida da população favelada. Sabemos que há muita gente no território lutando por isso.
“Olha, esse objetivo de diminuir a pobreza no Brasil até 2030 é uma grande falácia, na nossa comunidade [a pobreza] tem aumentado de forma avassaladora. A gente vê a quantidade de pessoas que cozinham com álcool, na latinha, porque não têm condições de comprar um gás de cozinha, e o motivo disso é que existem pessoas do outro lado da cidade que tão enriquecendo com essa pobreza”, diz Andressa Feitosa.
Andressa é professora e educadora popular, estuda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e atua no Comitê de Moradores do Salsa e Merengue. “Eu moro na Maré, especialmente aqui no Salsa há 23 anos, mas tem pessoas que moram aqui há trinta, quarenta anos e se juntaram para se ajudar. Durante a pandemia as coisas ficaram muito piores, então a ideia veio da necessidade de que a gente se juntasse para não passar fome”.
Vacina, arroz, feijão e renda!
Dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD COVID19), do IBGE, revelaram que, no início do segundo semestre de 2020, aproximadamente 3 milhões de pessoas ficaram desempregadas por causa da pandemia, com o Rio de Janeiro apresentando uma das maiores taxas do país (17,4%).
Para Márcio Henrique, 24, a preocupação com o desemprego é constante: “como sou trabalhador terceirizado da UFRJ, é bem capaz que eu fique desempregado devido aos cortes que a empresa vai dar por conta dessa situação em que a universidade se encontra. Ser morador de favela é assim… A gente vive numa guerra sempre”.
A necessidade de vencer coletivamente tantas crises deu origem ao Comitê de Moradores do Salsa. Segundo Andressa, as motivações pela luta por direitos são muitas: “antes da covid-19 a situação de vida das pessoas mais pobres já era muito difícil, com as migalhas de sempre, o Bolsa Família e tudo mais que não dá pra uma família viver dignamente. É alimentação, saúde, os gastos de ter um filho, então toda essa situação já era muito complicada pros moradores e moradoras aqui”.
Parece óbvio, mas Andressa explicita a interferência da fome em todas as outras necessidades do morador: “A segurança alimentar é uma questão chave, porque quem não se alimenta bem, não vive bem. Nós somos o que nós consumimos no sentido de fibras mesmo. Como uma pessoa que se alimenta mal vai conseguir correr atrás de emprego? Nós temos junto com os nossos apoiadores arrecadado alimentos para entregar essas cestas básicas e também refeições coletivas. Essa é a forma que nós temos de reduzir o sofrimento do povo”.
A professora Andressa Feitosa e suas companheiras de luta no Comitê de Moradores de Salsa e Merengue. Foto: Acervo Comitê de moradores do Salsa e Merengue.
A fala de Andressa expõe um dos maiores problemas de nossa sociedade: a extrema desigualdade: “Sobre a meta de atingir a redução da pobreza no Brasil, especificamente sobre o Salsa, eu acredito que as estratégias que a gente pode tratar são projetos. Que a gente possa desenvolver a solidariedade, se ajudar, de coletivismo, que a gente possa fomentar ideias dos próprios moradores. É claro que o governo precisa agir e precisa agir imediatamente. Porque eles estão mandando caveirão para matar a gente, eles estão deixando a gente beber água poluída, então, eles querem agir?”, questiona.
Mobilização para entrega de cestas básicas. Fonte: Acervo Comitê de moradores do Salsa e Merengue.
Brasil atrás de Tanzânia e Vietnã
A revolta de Andressa é a também a revolta de milhões de brasileiros, já que o Brasil esteve muito perto de atingir as metas das então ODM’s, figurando entre as nações do mundo que mais haviam avançado na redução da pobreza extrema. Uma reportagem da Casa Fluminense sobre a promoção da ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis) retrata um Brasil não muito distante, que viu a fome cair de 25,5% nos anos 90 para 3,5% em 2012, e que saiu do mapa mundial da fome, com expressivos avanços na redução da mortalidade infantil. Diante de tantos retrocessos nos anos que se seguiram, a mobilização comunitária em torno das pautas e necessidades da própria comunidade nunca foi tão urgente.
Thaynara Barreto, 26, que também é moradora do Salsa, tem notado retrocessos nas condições de vida em sua comunidade: “Com toda a situação da pandemia, mais pessoas na favela ficaram desempregadas, então a situação é bem diferente de três, quatro anos atrás”. Thaynara acredita que políticas públicas voltadas à geração de empregos são fundamentais para alcançar as metas: “para redução da pobreza na favela, o governo deveria criar mais empregos e mais oportunidades para as pessoas daqui. Não só empregos de base, precisamos desenvolver cursos e programas para as pessoas da favela terem oportunidades melhores. Primeiro temos que mudar o governo. Enquanto o Estado não vir a favela como um lugar de pessoas de bem, a pobreza vai reinar.”
Assim como Andressa e Thaynara, Marcio é um jovem morador da Maré e representa toda uma geração que cresceu sonhando com melhores condições de vida, mas que agora se vê diante da escassez de oportunidades: “eu era articulador no Projeto Caminho Melhor Jovem (CMJ) do governo do estado do Rio de Janeiro, cuja ideia era trazer o jovem que estava na rua e que estava sucumbindo ao tráfico para dentro do projeto e dar um futuro adequado a ele. Hoje eu não vejo oportunidades, eu não vejo nada.
Mas não é por falta de dinheiro ou somente por falta dele… A plataforma do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) para o cumprimento das ODS’s no Brasil informa um investimento de mais de R$808 bilhões. Enquanto o dinheiro vai, vem e some, o Portal Sustainable Development Report (em tradução do inglês, Relatório do Desenvolvimento Sustentável) aponta o Brasil na 53ª posição no ranking de cumprimento de todas as ODS’s, atrás de países como Vietnã e Tailândia num total de 193 países avaliados.
Quem não pode esperar subida ou descida de ranking é a fome. Andressa e quem a acompanha na luta acreditam que é possível virar este jogo: “Você vê como eles estão tratando o povo. Tem a operação, tem o coronavírus, tem a pobreza, a fome, a água, que não é potável. Então, tem que partir de nós a iniciativa. Nós levantamos alto a bandeira de que temos que plantar esperança para colher resistência. Existir enquanto favelado já é uma uma resistência.”