Um ano que teve começo, sem meio e com fim bem distante
Por Hélio Euclides e Viviane Couto, em 30/12/2020, às 17h30
Editado por Andressa Cabral Botelho
O ano de 2020 foi bem amargo. Começou com um janeiro no qual os cariocas tiveram de beber uma água que saía da torneira com cheiro, cor e cheiro. A falta de gestão ambiental subverteu o que aprendemos na escola sobre a as características fundamentais da água e afetou a vida de milhares de cariocas. Todo mundo sofreu, mas, como sempre, a população mais vulnerável ficou desamparada com a disparada dos preços das garrafas de água e dos carros-pipa.
Em fevereiro veio a festa de Carnaval, dias de alegria e de muita aglomeração. Todos sabiam da ameaça global chamada novo coronavírus, mas, ainda assim, achavam difícil que o vírus fosse chegar no Brasil, “um país abençoado por Deus e bonito por natureza”. Mas chegou e mais uma vez demonstrou para o mundo que sim, somos um país abençoado por Deus e bonito por natureza, cuja desigualdade social ficou ainda mais escancarada. E assim tudo fica mais difícil.
Muitas imagens relacionadas ao humor, os populares memes, surgiram com a pandemia. Um mostrava uma professora perguntando quantos meses tem um ano. O aluno disse que o ano de 2020 teve quatro: janeiro, fevereiro, março e dezembro. Faz sentido, já que vivemos nessa condição de pandemia desde março e agora, dezembro, olhamos para o ano novo esperando melhoras. Mas olhando para trás e lembrando de quem conviveu com a doença, com a perda ou com as consequências sociais desta nova condição, o ano de 2020 entrou para a história e para a memória de muita gente.
Logo no início, a pandemia mudou a rotina de todos, com o surgimento de muitas expressões novas, como o termo lockdown, um confinamento total, com saídas restritas para sanar necessidades básicas, que funcionou em muitos países. O Brasil, com sua falta de políticas sociais, só conseguiu um breve isolamento social, com fechamento de escolas, instituições, áreas de lazer, espaços culturais e comércios não essenciais. Parecia que iríamos controlar o tal vírus. Mas meses depois começaram as flexibilizações e a falta de apoio ao povo que ficou desempregado e sem dinheiro. As consequências não tardariam.
Por uma gestão irresponsável, o auxílio emergencial, que seria um alento para a questão financeira, acabou colocando as pessoas em uma situação complexa: morrer de fome em casa fazendo isolamento ou pegar a covid-19 nas longas filas da Caixa Econômica. Para se beneficiar do auxílio era necessário ter um celular e um pacote de internet. Sendo que 25,3% da população brasileira ainda encontra problema para acessar à internet, o que representa cerca de 46 milhões de pessoas, segundo pesquisa realizada em 2018, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso sem falar nos erros do aplicativo e na fiscalização precária. A cara da desigualdade social ficou exposta, e foi aí que, mais uma vez, viu-se o poder de a mobilização nas favelas, como na Maré e Complexo do Alemão, aqui no Rio, e Paraisópolis, em São Paulo, entre outras favelas e periferias do país, onde um ajudava o outro.
A comunicação também foi importante nesse 2020, ano mais complicado que um jogo de xadrez. Um ano em que os veículos de comunicação não pararam, publicando descobertas e avanços sobre o vírus e vacinas, o que foi de muita importância para dar um xeque-mate nas fake news que se multiplicavam tão rápido quanto o vírus. Mentiras que muitas vezes o chefe do país insistia em confirmar e divulgar. Na Maré, no início da pandemia, entramos em casas de pessoas infectadas para simplesmente ouvir moradores que desejavam desabafar sobre a falta de exame, de atendimento e de atenção. Essas pessoas nem número são, pois no início da pandemia não fizeram o teste e por isso nem entraram para a triste estatística dos doentes.
Foi um ano de muito trabalho. O Maré de Notícias não parou e fizemos de tudo para explicar o que é o vírus, o seu impacto na saúde e como se prevenir. Pesquisamos, fizemos parcerias – como o Se liga no Corona! e o Painel Unificador COVID-19 nas Favelas do Rio de Janeiro – saímos atrás para entender o que era coronavírus. Tivemos ajuda de muitos especialistas como: Flávia Salles (USP), Fernando Lucas Melo (UNB), Daniel Soranz (Fiocruz), Raphael Rangel (IBMR), Luan Marques (UNB), Eugênio Carlos Lacerda (Fiocruz), Valcler Rangel Fernandes (Fiocruz), Margareth Dalcolmo (Fiocruz), Sabine Zink (SAS), Alexandre Pessoa (Fiocruz), Sergio Ricardo (Baía Viva), Luiz Vianna (Fiocruz), Carlos Machado (Fiocruz), Marcos Ornelas (Atenção Básica AP 3.1), Marcelo Gomes (Fiocruz).
O novo normal
Contudo, sem estrutura para garantir a saúde e a dignidade da população, os governos foram estimulando a reabertura. Especialistas recomendaram a lavagem das mãos, o uso de máscara, álcool em gel e o distanciamento social. O grande problema é que é impossível garantir essas medidas se os governantes não se esforçam para colocá-las em práticas: no trabalho, no transporte, nos serviços públicos e na conscientização e convencimento. O Brasil ficou parecendo o Titanic, numa viagem pelo mar cheio de icebergs. A tripulação diz que não há perigo, pois são apenas cubos de gelo. Mas a cada trombada com esses “cubos de gelos”, muitas vidas foram e são jogadas ao mar.
Com tanto desgoverno, mesmo com o navio perfurado e com as vidas perdidas, muitas pessoas sem ter perspectiva de que haverá uma saída responsável para a situação, acabam desacreditando de todas essas medidas de segurança e enfrentaram o desafio, mesmo que com medo. Isso é visível andando pelas ruas, é possível ver muitos sem o mínimo cuidado, que é máscara. Isso não acontece só na favela. Mas a favela sabe exatamente como isso funciona. É só fazer uma analogia com a questão da violência. Diante de tantos riscos de violência armada que os moradores de favelas se veem expostos diariamente, e sem nenhuma perspectiva de que haja uma solução para isso, muito acabam arriscando suas vidas saindo para trabalhar ou para fazer outras ações que julgam importantes no meio a operações policiais porque se nada pode mudar esta situação, a vida também não pode parar. E a vida segue. Da mesma forma, muitas pessoas pensaram sobre a pandemia também.
E o número de mortes, assim como nas situações de violência, não para de aumentar. Os médicos não aguentam mais trabalhar sem condições e perspectiva de melhoria. E a vida de quem conseguiu sobreviver a isso tudo segue também. Nos perguntamos: segue para onde? Que mundo será este que teremos depois que tudo isso passar? Será que aprenderemos alguma lição disso tudo? Ou será que seguiremos com antes e qualquer outro argumento terá mais valor que a vida humana?
Em dezembro temos arrumação da casa e montagem de árvore de Natal, um momento tão esperado por todos. Para cristãos, a comemoração do nascimento de Jesus. Para outros, a ocasião de reunir a família. Um tempo de festa em torno de uma ceia e celebração do ano que termina e dá espaço à esperança em outro que virá. E, ao mesmo tempo, um dezembro de mortes, medo, fome e indiferença.
O sinal vermelho está aceso. Especialistas alertaram que era necessário cuidado para não ter um número de infectados e de mortes ainda maior, com um janeiro mais triste da história. O que vivemos neste dezembro foi uma ceia com distanciamento, portas e janelas abertas, com higienização das mãos ao pegar nos presentes e nada de aperto de mãos e abraços. Sem clima para celebrar. Não teve as tradicionais visitas aos vizinhos para dar felicitações e beliscar a ceia alheia, algo normal na favela e bairros periféricos com grande socialização. Na oração, sempre o pedido de uma vacina e a diminuição da desigualdade social. A esperança vem do novo ano. Falta pouco para 2021. Mas o Réveillon segue a mesma cartilha do Natal: máscara, álcool em gel e distanciamento social. Se fizermos bem a lição, o futuro será melhor. É preciso ouvir a ciência. Seguir as medidas básicas na prevenção do coronavírus, só assim poderemos dizer que se até a uva passas, a pandemia também vai passar!
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