Onde você mora?

Data:

Maré de Notícias #130 – novembro de 2021

Por Edson Diniz*

Não sei se você, amiga leitora e amigo leitor, já passou por experiência semelhante: lembro bem que, ao começar a procurar emprego, ainda com 14 anos, recebi o seguinte conselho de um vizinho: “Na entrevista, quando perguntarem onde você mora, diz que é em Bonsucesso. Não diz que mora na Maré e nem na Nova Holanda!” Fiquei intrigado, mas era muito jovem para entender o sentido real daquele conselho.

Descobri, mais tarde, que o conselho era uma forma de “driblar” o preconceito contra quem mora na favela, porque muitos empregadores evitavam contratar pessoas desses espaços. Hoje, a pergunta que me faço e faço a você caro leitor, cara leitora, é: por que aqueles que moram em favelas, desde que elas surgiram, sofrem com esse tipo de problema para conseguir emprego? Por que morar numa favela pode impedir alguém de trabalhar?

Comecei a pesquisar um pouco mais e descobri que o problema tem a ver com certa “imagem”, construída ao longo dos anos, da favela e do favelado na cidade do Rio de Janeiro. O próprio termo “favelado” carrega infinitas interpretações negativas não só por parte da sociedade carioca como da brasileira, e que se acumularam e ainda produzem uma série de preconceitos.

Os dois mais comuns enfrentados são os que caracterizam quem mora nas favelas como “conivente com o crime” e “carente”. Aliás, é muito comum ouvirmos a favela sendo chamada de “comunidade carente” por aí.

No primeiro caso, veja você leitor ou leitora, há uma associação perversa entre favela e crime. Quem mora na favela, de acordo com essa visão, seria conivente com grupos criminosos e, por extensão, também “pessoas perigosas”. Daí a desconfiança na hora de dar emprego. É por isso também que muitos que adotam tal visão defendem um “maior controle” sobre as favelas, principalmente através das operações policiais como a que matou 27 pessoas no Jacarezinho ou as que sempre ocorrem na Maré, também com muita violência. 

Já a ideia de que o favelado é uma pessoa “carente” é igualmente injusta. E embora, na maioria dos casos, as pessoas que têm essa visão reconheçam os problemas enfrentados nas favelas, no final, acabam por reproduzir preconceitos do mesmo modo que o grupo que vê a favela como o lugar do crime. Isso porque, amigos leitores, tal visão reduz os moradores das favelas a pessoas que precisariam ser “cuidadas” ou controlados por outras pessoas “mais esclarecidas”. Na verdade, chamar alguém de carente é reduzir a importância social dessa pessoa e não respeitá-la enquanto cidadã.

No fundo, quando se caracteriza a população das favelas como conivente com o crime ou carente, a ela é negado o direito à cidadania. Ou seja, o direito de ter acesso real a educação de qualidade, saúde, cultura e arte, política de segurança que preserve suas vidas, oportunidades no mundo do trabalho e reconhecimento de sua importância para a sociedade.

Por isso, não podemos admitir que os moradores das favelas sejam vistos como perigosos ou carentes. Na verdade, o que existe são pessoas que sofrem os efeitos das enormes desigualdades sociais, econômicas, culturais, étnico-raciais e de gênero, tão marcantes na sociedade brasileira. 

Como você bem sabe, a favela é um lugar de vida, alegria, resistência e superação. Todos os dias, milhares de moradores desses territórios saem para estudar, trabalhar, rezar, se divertir, encontrar pessoas, produzir cultura e movimentar esta cidade. Isso tudo apesar dos muitos problemas e preconceitos, do racismo, da discriminação contra as mulheres faveladas, e de toda a sorte de dificuldades que encontram no caminho.

Por tudo isso, precisamos construir uma cidade mais justa e igualitária, onde as pessoas não sejam julgadas por seu lugar de moradia. Para tanto, temos que cobrar do Estado e seus diferentes níveis de governo, das instituições da sociedade civil e do mercado o reconhecimento de que a favela contribui para a cultura, a beleza e a riqueza do Rio de Janeiro.

 Isso porque a favela é cidade! Cabe a nós, amiga leitora e amigo leitor, não deixarmos que ninguém se esqueça disso, para que nunca mais nenhuma pessoa que more numa favela tenha medo de dizer seu endereço em alto e bom som.

*Edson Diniz é doutor em educação brasileira, professor de história, e fundador e diretor da Associação Rede de Desenvolvimento da Maré.

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