Pobre, favelado e periférico lê, sim!

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Em oposição à fala da Receita Federal, coordenadores de bibliotecas comunitárias e escritores ressaltam a importância da leitura

Por Hélio Euclides, em 22/04/2021 às 16h30
Editado por Andressa Cabral Botelho

“Pobre não lê”. Foi essa a justificativa que a Receita Federal deu para acabar com a lei que isenta o mercado de livros de papel de pagar alguns impostos. Na atual conjuntura, tem ficado cada vez mais difícil ter acesso a eles, seja pela diminuição do hábito de leitura, seja pelo aumento do preço dos livros a partir de um novo imposto. Entretanto, bibliotecas comunitárias seguem na contramão desse movimento para mostrar que quando se tem acesso, é possível, sim, consumir livros além dos lidos em sala de aula.

No início do mês de abril foi lançado um documento pela Receita Federal que defende o fim da isenção de impostos para livros. Na prática, a reforma pretende encarecer em 12% o preço final dos livros para os consumidores, fazendo, assim, com que pessoas de baixa renda tivessem cada vez menos acesso à leitura – e à educação, de certa forma. A justificativa para o aumento é que os livros são adquiridos e consumidos pelos ricos, com renda superior a dez salários mínimos. 

No Brasil, 52% das pessoas  têm o hábito de ler e são lidos cerca de 4,2 livros por ano. Um número baixo, se comparado à França, onde a população lê 21 livros ao longo do ano. Entretanto, o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores entre 2015 e 2019, segundo levantamento do Instituto Pró-Livro, em parceria com o Itaú Cultural. A leitura é a 10ª na lista de atividades de lazer, ficando atrás de ficar na internet e assistir televisão. Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro, vê nas “desigualdades econômicas e estruturais, somadas à falta de políticas permanentes e eficientes para o incentivo à leitura” o motivo para o baixo desempenho na leitura no país. 

Incentivo à leitura

Por outro lado, autores estimulam o hábito de abrir um livro. É o caso da escritora Thalita Rebouças, campeã de venda de livros direcionados ao público adolescente, que visitou em 2011 a Biblioteca Comunitária Lima Barreto, na Nova Holanda. Na época, escritora teve um encontro com crianças e adolescentes da Maré e fez questão de incentivar a leitura. “Quem lê não tem erro na fala e ainda se sobressai na entrevista de emprego. O hábito de leitura é bom para o futuro do estudante”, exaltou. Sobre a repercussão de seus livros, ela destacou a importância de se poder estar próxima dos leitores. “É uma alegria maior do que ter 20 aviões. Meus livros aproximam os professores dos alunos, e os pais dos filhos”, concluiu.

Esse é o mesmo pensamento de Adriana Kairos, escritora e moradora do Parque União. Ela criou o projeto A Literatura dos Espaços Populares Agora (Alepa), que estimula e apresenta a produção poética e ficcional de autores oriundos de periferias. “O livro é o melhor amigo. Por ele se viaja para outros mundos, se conhece outras pessoas, culturas e outros universos possíveis e impossíveis. A leitura nos faz sonhar com um mundo mais justo e fraterno. O livro, seja ele digital, áudio ou físico, como conhecemos, é maravilhoso”, comenta.

Kairos conta que em viagens que fez pelo país pôde acompanhar cidades que não têm uma sala de leitura. Outro problema é encontrar livros para pessoas com deficiência visual. “Eu sofro por não achar nada de autores de favela como áudio livro. Eu penso na possibilidade de trabalhar com livros para cegos e baixa visão”, diz. Para ela, ainda há muita dificuldade de acesso ao livro e que não acredita na história que brasileiro não gosta de ler. 

Para a classe popular, o acesso a esse bem é extremamente caro. Ou escolhe comprar um quilo de carne, que custa R$ 40, ou um livro. Nós que conhecemos o livro sabemos da importância e valor que ele tem, mas a fome tem pressa. Acho absurdo o governo federal ser favorável ao aumento do valor do livro, com justificativa que pobre não precisa ter acesso aos livros”.

Adriana Kairos, escritora e criadora do projeto Literatura dos Espaços Populares Agora (Alepa)

Biblioteca é o caminho para a leitura

A integrante da Academia Brasileira de Letras, Nelida Piñon, chegou a visitar por duas vezes a biblioteca comunitária que leva o seu nome, em Marcílio Dias. A escritora, em ambas as vezes, doou livros como forma de incentivo à leitura. Na primeira visita à biblioteca, em 2011, a escritora disse que a palavra é fundamental e que a colocou no livro como forma de expressão. Geraldo Oliveira, idealizador da biblioteca, acredita que o livro é a ferramenta mais transformadora e impactante que as pessoas conhecem. Ele ainda defende a importância das bibliotecas periféricas como forma de disponibilizar livros sem burocracia e acesso aos livros a quem mais precisa. 

Para Oliveira, há dificuldades para a aquisição de livros, mas é preciso ter força de vontade. “Não é uma questão de prioridade para os brasileiros, mas quem gosta de ler pode adquirir bons livros a preços acessíveis; inclusive nas bienais e nas feiras de livros. Sem os livros, a humanidade estaria fadada à profunda escuridão e ao fracasso. O livro é vida, direção e o caminho que leva à educação”, comenta. Ele critica que as pessoas se afastam do livro para dar preferência à internet e às redes sociais. “Hoje, as pessoas querem tudo para ontem, perdem muito tempo com bobagens e não tem disposição nem paciência para ler um bom livro”, expõe. 

Outro espaço na Maré é a Biblioteca Comunitária Luciana Savaget, do Instituto Vida Real, que conta com quase 5.000 livros. Sebastião Araújo é o coordenador e defende a criação de mais bibliotecas. Ele conta que antes da pandemia realizava o projeto Fábrica de Bibliotecas, no qual recolhia livros e depois levava para a casas de moradores, com o objetivo de montar pequenos espaços de leituras.

Araújo faz críticas aos valores dos livros. Como opção, ele defende que o governo faça doações de livros para a população ou ofereça condições da pessoa adquirir uma obra literária. “Um cara que ganha um salário mínimo, pode ter certeza que vai faltar alguma coisa dentro de casa”, diz. Outro ponto marcante é sua posição positiva ao livro tradicional de papel. “O livro físico se manipula mais, o que estimula a memória do leitor”, finaliza.

Anote a relação de bibliotecas na Maré:
Biblioteca Comunitária Nélida Piñon
Travessa Luiz Gonzaga, 58 – Marcílio Dias.
Biblioteca Comunitária Infantil Maré de Luz
Rua São Pedro número, 26, 3° andar – Parque União. 
Biblioteca Comunitária Semente
Rua Joana Nascimento, s/n – Baixa do Sapateiro.
– Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto 
Rua Sargento Silva Nunes, 1.010 – Nova Holanda.
Biblioteca Bela Maré (Galpão Bela Maré)
Rua Bitencourt Sampaio – Nova Holanda.
Biblioteca Comunitária Luciana Savaget
Rua Teixeira Ribeiro, s/n – Nova Holanda
– Biblioteca Paulo Freire
Rua dos Caetés, 07 – Morro do Timbau.
– Biblioteca Popular Municipal Jorge Amado 
Rua Ivanildo Alves, s/n – Nova Maré.
– Biblioteca Elias José
Avenida Guilherme Maxwell, 26 – Morro do Timbau.
– Ônibus-biblioteca Livros nas Praças 
Rua Tancredo Neves s/n – Nova Maré.

Datas importantes relacionadas à leitura:

07 de janeiro: Dia do leitor
02 de abril: Festa Internacional do Livro Infantil. 
18 de abril: Comemoração do aniversário do autor Monteiro Lobato, com o Dia Nacional do Livro Infantil.
23 de abril: Dia Internacional do livro, com homenagem a William Shakespeare, Miguel de Cervantes, e Inca Garcilaso de la Vega. 
12 de outubro: Dia Nacional da Leitura e celebração da Semana Nacional da Leitura e da Literatura no Brasil.
29 de outubro: Fundação da Biblioteca Nacional, em 1810. 

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