Vai ficar por isso mesmo?

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Em diversas situações, a investigação de casos de homicídio nas favelas não segue os procedimentos necessários para que a responsabilização do crime seja efetivada 

Por Daniele Moura e Tamyres Matos em 10/05/2022 às 07h

Os seriados de investigação criminal – geralmente produzidos nos Estados Unidos – são consumidos avidamente pelo público. O enredo segue a mesma cartilha: local do crime isolado, técnicas de interrogatório, perícia com artifícios tecnológicos avançados e, ao fim do episódio, a resolução do caso. No entanto, a realidade brasileira costuma passar longe desse cenário, especialmente em regiões periféricas.

No Rio de Janeiro, somente 21,2% dos assassinatos cometidos em 2018 foram solucionados até o fim de 2020, de acordo com o Instituto de Segurança Pública — e essa percentagem inclui a prisão do assassino em flagrante. Quando o recorte é específico para as favelas ou para crimes cometidos por policiais, é um desafio encontrar essas informações, especialmente por conta dos casos que caem no limbo dos supostos autos de resistência. Num levantamento de dados do Instituto Sou da Paz publicado em 2019, o Rio de Janeiro ocupa o penúltimo lugar no Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios.

“A questão dos baixos índices de solução de homicídios é um problema nacional, sendo a média brasileira menor que 2%. Entretanto, cabe ressaltar que há problemas em todo o processo de investigação, desde a preservação do que usualmente se chama de ‘cena do crime’ para coleta de informações relevantes até a atribuição de penas aos envolvidos. Olhar essa questão pelos mapeamentos das estatísticas por região e/ou por atores envolvidos, dentre outras variáveis, é algo ainda mais complexo, pois não há um banco de dados integrado e acessível a todos”, explica Daniele Dionisio da Silva, vice-coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa do Instituto de Relações Internacionais e Defesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Coordenador de projetos do Sou da Paz, o doutor em sociologia Rafael Rocha aponta a ausência de investimentos estratégicos no processo de investigação como uma possível explicação para essa situação (atual e histórica). Além disso, há evidente discriminação de acordo com o perfil da vítima. 

“Nos casos de homicídio cujas vítimas têm alguma passagem pela polícia, elas são consideradas, entre muitas aspas, “bandidos”. Então, quando se trata da Polícia Civil, há tanto uma série de dificuldades, de limitações estruturais, como também de elementos morais na investigação do homicídio de alguém que já tem passagem pelo sistema de justiça”, analisa.

Rafael Rocha, coordenador de projetos do Sou da Paz, o doutor em sociologia Rafael Rocha

Por vezes, o elemento que usualmente anula o passo a passo de uma investigação nem precisa ser os antecedentes criminais da vítima; bastam simplesmente seu local de moradia, sua condição financeira ou sua cor da pele. O filho de Maria (*) foi morto aos 17 anos em plena Avenida Brasil durante uma ação policial nos arredores da Maré. Vendedor de pipoca, biscoitos e refrigerantes, o menino não conseguiu ouvir a ordem dos policiais para sair dali porque era surdo, e, por isso, foi baleado e morto. 

O caso, ocorrido em agosto de 2017, foi arquivado sem avanços nas investigações — sequer houve perícia ou a preservação da cena do crime. “Eu ia lá uma vez por mês para ver o andamento do processo, eu tenho o cartão lá em casa, para eu saber como é que tava a situação, entendeu? Mas não conseguia ser atendida. E depois soube que foi arquivado…”, relembra, aos prantos.

Na série de reportagens Rastro de Dor, relembramos o caso de Jeremias Moraes da Silva, o adolescente de apenas 13 anos morto com um tiro nas costas enquanto se encaminhava para o ensaio de um hino da igreja. Em suas mãos, apenas um pirulito foi encontrado. O caso aconteceu em 2018; a investigação contou com uma reconstituição da polícia, mas não houve perícia, nem mesmo a preservação da cena do crime. Segundo a mãe do menino, Vânia Moraes da Silva, até hoje ela não foi chamada para prestar depoimento. O caso segue em aberto.

Lacuna nacional

A complexidade de todo o processo tem que ser lembrada sempre que se fala em segurança pública. Para Daniele Dionisio, trata-se de uma cultura processual com muitas falhas, marcada pela carência de recursos das forças de segurança — meios essenciais e que poderiam contribuir diretamente para a investigação e a solução dos crimes, além de impactar positivamente as taxas de homicídios. 

“Um ponto importante a ressaltar é que não temos um georreferenciamento dos dados de homicídios tão preciso que nos permita identificar ruas e índices (socioeconômicos). Essa coleta de dados e a integração entre eles requer uma grande amplitude de recursos do Estado e vontade política, elementos raros nas políticas públicas recentes. Por outro lado, as estatísticas de homicídios, quando usadas de modo isolado, não conseguem gerar um panorama adequado da conjuntura. Precisamos considerar outros elementos, como os armamentos utilizados; a geografia do local; o acesso a serviços públicos de saúde e educação; o senso comunitário e as medidas de proteção; e a atuação das forças de segurança e de agentes criminosos”, analisa.

Para o sociólogo Rafael Rocha, a sociedade brasileira tem um “olhar viciado”, ou seja, acredita que as soluções que trarão mais segurança à população estão diretamente vinculadas à militarização e ao policiamento ostensivo — quanto mais viaturas e blindados nas ruas, quanto maior for o calibre das armas dos policiais, supostamente mais protegida está a população. 

“Há pouco investimento, por exemplo, nos laboratórios de perícia. Em muitos estados, como é o caso de São Paulo, não existe interesse na realização de concursos e na especialização dos profissionais que neles trabalham. Isso resulta em quadros muito defasados. Investe-se uma parte considerável do orçamento na ostensividade, no efetivo policial na rua, em viaturas novas… Não estou dizendo que o policiamento de rua não é importante; claro que é. Mas igualmente são a investigação e a inteligência”, diz o estudioso.

Em números gerais, o levantamento de 2019 do Instituto Sou da Paz mostrou que 70% dos casos de assassinato ocorridos no Brasil não foram solucionados. No Rio de Janeiro, temos o caso simbólico da vereadora Marielle Franco, pessoa pública mareense assassinada no meio de uma região movimentada do Centro da cidade. A investigação policial ainda não chegou ao mandante ou à motivação do crime ocorrido há mais de quatro anos. O caso desde então mobiliza instituições e indivíduos no mundo inteiro a cobrar pelo seu desfecho. Mas e quando as mortes acontecem em becos e vielas?

Princípios fundamentais

Daniele acredita que o que precisa ser priorizado é o respeito ao mais básico: o direito à vida. Para ela, a falta de segurança das pessoas, a circulação de armas e a ausência de uma gestão em segurança pública integrada por parte dos estados são a realidade das grandes cidades brasileiras. “De acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Ao pensarmos nas investigações de homicídios como parte de uma segurança pública de fato, devemos considerar muitos elementos que têm sido deixados de lado pelos agentes públicos. A vontade política e a prioridade desse tema no delineamento de políticas estatais integradas (que inclua toda a rede de agentes públicos corresponsáveis pelo tema) são elementos fundamentais.”

Resposta da Polícia Civil

Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) afirma “que vem melhorando todos os índices, nos dois últimos anos, e que está investindo em inteligência e novas tecnologias, além da realização de concurso público para melhorar ainda mais estes números. Em regiões sob o domínio de traficantes e milicianos, as investigações encontram barreiras da ditadura do crime como: falta de câmeras; lei do silêncio paga com a vida; impedimento de entrar na localidade imediatamente com perícia — uma vez que é necessário montar operação para acessar locais dos homicídios, por exemplo”.

Segundo a Sepol, “para dar continuidade às investigações mediante tais dificuldades impostas pelas organizações criminosas, a instituição tem focado no enfraquecimento gradual desses grupos, por meio da prisão dos seus líderes e com o efetivo combate às atividades que realizam. A Sepol reforça que todas as investigações só são finalizadas mediante provas consistentes para evitar qualquer tipo de conclusão precipitada e o indiciamento de pessoas inocentes”.

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