Família há três meses luta para limpar o nome do filho, Thiago Menezes, retratado em mural na Cidade de Deus
Foto: Mayara Donaria
Este conteúdo foi publicado originalmente por Lupa
Thiago Menezes, 13 anos, passou o dia 7 de agosto na casa da avó, na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Almoçou com a família naquela segunda-feira e, no final da noite, pediu para dar uma volta na moto do pai. O passeio virou tragédia: a menos de 2 quilômetros de casa, montado na garupa de um amigo que conduzia o veículo, ele foi alvejado por policiais do Batalhão de Choque que realizavam uma operação no bairro. Primeiro, foi atingido na perna e caiu. No chão, recebeu mais tiros. O menino morreu na hora.
Horas depois, Thiago era não só uma vítima da violência do Estado, mas também um adolescente negro falsamente acusado de ser bandido. Nas redes sociais, conteúdos desinformativos associaram o estudante à criminalidade. Sem tempo para lamentar a morte, a família teve que encontrar forças para tentar limpar o nome do filho.
A história do Thiago mostra o quanto jovens negros de favelas são vítimas duas vezes: quando são assassinados e, depois, quando viram alvo de boatos que os acusam, sem provas, de serem bandidos.
Nesse caso, ainda há um agravante: a onda de desinformação foi iniciada pela própria polícia. Ao terminar a operação na comunidade, já na madrugada do dia 8 de agosto, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) publicou no X (antigo Twitter) que um “criminoso” tinha ficado ferido ao “entrar em confronto com policiais”. O “criminoso” descrito na publicação era Thiago.
A família ainda não tinha velado o corpo do menino quando precisou recorrer à Defensoria Pública do Rio de Janeiro para que a postagem fosse apagada. O post só foi deletado mais de 12 horas depois, com, pelo menos, 315,8 mil visualizações.
Depois da publicação nas redes, a polícia apresentou outras versões. Todas acusavam o estudante de ter iniciado uma troca de tiros com os agentes. Priscila de Souza, mãe do menino, contou que conheceu outras mães que já passaram por uma situação parecida. A percepção dela é que o Estado não enxerga as crianças da favela como inocentes.
Eles vêm com a mentira mas a gente está com a verdade. Sempre que eles [os policiais] entram na favela e matam um inocente, justificam que a pessoa era criminosa, mas com o meu filho não conseguiram fazer isso. Temos um boletim escolar dele que comprova uma frequência de mais de 99,5%. Nossa luta é para que eles passem a enxergar que na favela tem gente inocente.
Priscila de Souza, mãe de Thiago
Além da escola, Thiago também se dedicava ao futebol e tinha o sonho de se tornar jogador profissional. “Ele era a alegria da casa, brincalhão e sempre dançando. Era uma criança educada, carinhosa e pelo jeitinho dele conquistava todo mundo. Frequentava a escola todos os dias, jogava em três times e ia à igreja”, conta a mãe. “Minha vida não é a mesma. Acordo e deito pensando no meu filho. A gente nunca imagina que vai perder um filho assim. Foi uma covardia que fizeram com ele. Era só uma criança”.
Em nota, a PMERJ confirmou que uma investigação da Corregedoria Geral da Secretaria de Estado de Polícia Militar (CGPM) apontou “indícios de fraude processual, omissão de socorro e descumprimento de missão por parte dos policiais à época lotados no Batalhão de Polícia de Choque, durante a tentativa de abordagem ocorrida naquela madrugada”. A corporação não respondeu, no entanto, sobre a publicação postada e depois apagada nas redes sociais ou sobre as diferentes versões para o caso.
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Desinformação ‘oficial’ e a lógica da criminalização da vítima
Segundo levantamento da ONG Rio de Paz, que atua desde 2007 no combate à violência e pobreza no Rio de Janeiro, entre abril de 2007 e setembro de 2023 foram registradas 103 mortes de crianças e adolescentes de zero a 14 anos, grande parte causada por balas perdidas. A maioria desses disparos foi num contexto de confronto entre policiais e bandidos.
O levantamento mostra que 2020 foi o ano com mais mortes de crianças e adolescentes até o momento, com 12 vítimas. Mas 2023 está quase superando a marca. Até setembro, 12 jovens de 0 a 14 anos já perderam a vida no estado.
De acordo com a ONG, dados oficiais sobre mortes de crianças por armas de fogo no Rio são escassos e, por isso, a compilação começa a partir das informações da imprensa.
“Não foram poucos os casos em que a gente se aproximou da família e teve a oportunidade de ouvir a história real e não a que circula na mídia ou nas redes sociais — que no geral colocam esses adolescentes como ligados ao tráfico. Foi assim no caso do Marcos Vinícius [morto em 2018, quando estava a caminho da escola], da Maré. Foi assim no caso do Ray Pinto Faria [morto em 2021], no Campinho. Foi assim no caso do Thiago Menezes e vários outros que a gente acompanhou”.
João Luís Silva, articulador social da ONG Rio de Paz.
Nessa mesma linha, o ouvidor-geral da Defensoria do Rio, Guilherme Pimentel, que acompanha a família de Thiago na busca por justiça, afirma que ações de letalidade policial em favelas, normalmente, seguem o mesmo padrão até quando as vítimas são crianças. Logo após a morte, começam a surgir uma sequência de acusações contra a vítima com versões conflitantes dos próprios policiais sobre o ocorrido.
“A produção de um discurso que criminaliza a vítima para legitimar aquela morte é uma das estratégias. Muitas vezes fazem isso sem apresentar nenhuma prova. Vale lembrar que o protocolo não é investigar a vítima e, sim, o fato que a vitimou”, diz o ouvidor-geral.
Pimentel também é crítico à prática da polícia de apresentar uma declaração oficial sobre o ocorrido antes mesmo da apuração dos fatos, sem dar espaço para a investigação — a exemplo da publicação da PMERJ após a operação que matou Thiago Menezes.
“É muito importante apurar os fatos antes de fazer a divulgação para não cometer mais uma injustiça com a família”, finaliza Guilherme.
“A família, sem escapatória, sofre duas vezes. Ao invés de se preocupar com o luto, tem que se voltar para a luta, para provar que o seu familiar era inocente. Ou mesmo que não fosse: foi covardemente morto, executado.”
João Luís Silva, articulador social da ONG Rio de Paz
Do luto à luta para desmentir boatos
A família e os vizinhos de Thiago Menezes acusam a polícia de tentar forjar a cena do crime. Diogo Flausino, pai do adolescente, conta que, quando chegou ao local, os policiais atiraram com fuzil. Ao se aproximar do corpo sem vida do filho, foi alvejado novamente com balas de borracha. A marca nas costas ainda está aparente.
A família agora pede por justiça e espera que os policiais envolvidos sejam responsabilizados. Flausino contou que o processo está lento. As investigações seguem, mas nenhum policial foi acusado pelo homicídio. Em nota, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro informou que o inquérito está sob sigilo. Já a Corregedoria-Geral da PMERJ apontou “indícios” de fraude processual, omissão de socorro e descumprimento de missão por parte dos policiais — mas não citou homicídio.
Flausino, que trabalha com moto-táxi, também foi acusado nas redes sociais de proximidade com o crime. “Pegaram fotos do meu filho com cordão dourado de R$ 20 que eu dei para ele, imagens dele em cima de moto de amigos e até fotos minhas”, lamenta.
“Que menino da idade dele não gosta de tirar foto com moto? Não preciso provar que meu filho era inocente. É só ver: Thiaguinho era nota 10, a vida dele era escola e futebol.”
Diogo Flausino, pai de Thiago Menezes
Lutos atravessados pela desinformação
O caso da família de Thiago Menezes não é isolado nas favelas do Rio de Janeiro. Em junho de 2018, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, foi baleado pelas costas quando estava a caminho da escola durante uma operação policial no Complexo da Maré, na Zona Norte da capital fluminense. Ele estava com o uniforme escolar. A mãe do estudante, Bruna Silva, precisou desmentir uma série de boatos que afirmavam que o garoto tinha envolvimento com o tráfico de drogas. Na época, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou que o Facebook retirasse do ar conteúdos falsos sobre o caso.
Da Cidade de Deus, a mãe de Thiago se uniu a grupos de famílias de diferentes territórios do Rio que há anos se encontram e buscam juntas por justiça por meio de grupos, como as Mães de Acari, a Rede Contra Violência, a Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense, o grupo Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado e o Mães do Jacarezinho e Manguinhos.
“A nossa luta por justiça não é fácil. Antes do Thiago, aconteceram outros casos. E depois dele, também. Conheci muitas mães que estão há anos tentando provar a inocência dos seus filhos, tendo que provar que uma criança de 10 anos era inocente.”
Priscila Souza, mãe de Thiago Menezes
Todo dia 7, a família e amigos do Thiago ocupam as principais vias da Cidade de Deus em protesto e memória. A caminhada sempre tem a presença de muitas crianças da favela.
Bebê acusado de resistir à polícia
Um dos primeiros casos como o de Thiago a ganhar visibilidade foi o assassinato de Maicon de Souza da Silva. Ele tinha apenas dois anos de idade quando foi morto – e, mesmo com tão pouca idade, acusado de ter reagido a uma ação policial.
Na tarde de 15 de abril de 1996, a criança brincava perto de casa com um amigo de seis anos na comunidade de Acari, na Zona Norte do Rio, quando foi atingida por balas disparadas por policiais militares durante uma operação no bairro.
“Além de matar, o Estado marginaliza. O Maicon teria completado 30 anos em 25 de outubro. Ele tinha dois anos. Só muda de favela, nome e idade. O Estado viola a todo o instante o nosso direito de ir e vir. E o Ministério Público, por sua vez, não fez a gentileza nem cumpriu o dever de retratar o auto de resistência.”
José Luiz Faria da Silva, artista plástico, pai de Maicon
O auto de resistência mencionado pelo pai de Maicon, José Luiz Faria da Silva, é um conceito jurídico utilizado para inocentar policiais que matam pessoas em operações. Essa medida foi criada em 1969, durante o regime militar, após o Ato Institucional nº 5, e passou a ser utilizada para registrar casos de civis mortos mediante suposta resistência à prisão e confronto. Na prática, foi um instrumento criado para justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio.
Fake news, racismo e punitivismo
A edição mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, indicou que houve 47.508 mortes violentas intencionais no país em 2022 – 76,5% das pessoas mortas eram negras. Ainda sobre as mortes desse grupo étnico-racial, o relatório indicou que 83,1% foram vítimas de intervenções policiais (página 31).
Conteúdos desinformativos, como os que afetaram as famílias de Thiago Menezes, Marcos Vinícius, Maicon e outras crianças e adolescentes, são instrumentos para “justificar” excessos e violências contra negros no país. É o que aponta artigo publicado em 2019 pelo pesquisador Edson Mendes Nunes Júnior, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que analisou a relação entre a disseminação de fake news e o racismo institucionalizado no Brasil.
Ele concluiu que a construção da imagem do “bandido” associado a pessoas negras está relacionada à busca de legitimar uma ação violenta para restabelecimento de uma suposta “ordem”. “Entendemos que, para além da atuação punitivista existente na imprensa tradicional, existe a forma não oficial de mídia, atuante nas redes sociais, que, como expressão da ideologia dominante na sociedade, cria boatos para justificar excessos e violências”, diz o texto.
Mendes Nunes Júnior ainda reconhece a desinformação como um “braço do Estado Penal”, que atua de forma não oficial para justificar a violência contra negros e pardos de periferias e favelas. “Destruir a memória de pessoas marginalizadas cujo estado encontra-se responsável, direta ou indiretamente, pela violência praticada, através da ação em massa de notícias falsas, em geral espalhando imagens em páginas de Facebook e grupos de WhatsApp, requer organização e disciplina suficientes para que se amplie o alcance das narrativas, rompa-se as limitações de algoritmos e, para além disso, ecoe em uma população que já sofre com uma mídia tradicional de caráter punitivista”, afirma.
Para João Luís Silva, articulador social da ONG Rio de Paz, não é possível falar de desinformação e violência contra jovens negros sem passar pela questão econômica e social e pelo racismo.
“A gente tem que fazer esse recorte racial. É o que mostram os números e o perfil dessas crianças que foram assassinadas e acusadas de vínculo com o tráfico. É conveniente taxar o menino ou a menina preta de bandido ou bandida. Se um jovem branco é preso com certa quantidade de drogas fora da favela, é usuário ou portador de entorpecente. Quando você é preto e é preso na favela com uma quantidade ridícula, é traficante. Então aí está a resposta.”
João Luís Silva, articulador social da ONG Rio de Paz
Questionada sobre os índices de letalidade das operações no Rio de Janeiro e sobre quais procedimentos a corporação toma para evitar mortes, a PMERJ informou que os “números representam o elevado grau de resistência por parte dos criminosos armados, que tornam a opção pelo confronto uma constante”. Informou ainda que “vem investindo em treinamento, nas melhorias das condições de trabalho dos policiais e em equipamentos para que as ações da corporação sejam cada vez mais técnicas e seguras para seus integrantes e a sociedade”.
Os policiais envolvidos na morte de Thiago Menezes foram presos em 6 de setembro, mas acabaram soltos 22 dias depois, em 28 de setembro.
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