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Juíza determina que viaturas deverão ter câmeras e GPS na Maré

João Ker

Em 27 de junho, a Juíza Ana Cecília Argueso Gomes de Almeida, da 6ª Vara da Fazenda Pública do Estado do Rio, acatou uma Ação Civil Pública que tem o potencial de mudar a realidade de quem mora na Maré. Ela tomou uma decisão que é um marco histórico no País: no prazo máximo de seis meses, o Estado deve criar um plano efetivo para reduzir o número de vítimas durante as operações policiais na região. Por meio de um sistema de monitoramento com câmeras, GPS e áudio em todas as viaturas da PM, além da presença obrigatória de ambulâncias durante o cumprimento de todas as operações policiais na Maré (que deverão ser cumpridas durante o dia, salvo em situações de flagrante, delito ou desastre). A decisão abre um precedente inédito na relação entre a comunidade e o poder público, com o potencial de garantir um futuro melhor para os mais de 140 mil habitantes que ali moram e também para outras comunidades que podem lutar pelo mesmo direito.

 

Histórico da inédita conquista

A história dessa conquista dos moradores das 16 favelas da Maré começou ainda em junho de 2016. Quase um ano atrás, a comunidade passava pelo terror de mais uma operação policial às pressas e de maneira inconsequente: estudantes se espalhavam pelo chão de escolas, moradores estavam impedidos de circular pelas ruas e até os trabalhadores que precisavam voltar para casa se viram presos na região em mais um dos vários fogos cruzados entre policiais do BOPE e grupos civis armados. A situação precária se alongava pela madrugada e já havia feito vítimas fatais, até que presidentes das Associações de Moradores, representantes de ONGs, como a Redes da Maré e a Luta Pela Paz foram ao Plantão Judiciário solicitar a suspensão desse tipo de atuação policial.  Isso resultou em uma liminar que proibiu buscas domiciliares noturnas.  Dessa liminar, uma ação civil pública foi instaurada com o apoio do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública. “Havia uma agente comunitária baleada, outro homem morto por bala perdida e os moradores não sabiam a quem recorrer. Nós então nos unimos e fomos ao plantão judiciário pedir a suspensão do cumprimento dessa ordem em período noturno”, explica Daniel Lozoya Constant Lopes, um dos defensores públicos à frente da Ação Civil. Em 18 de outubro, porém, esses agentes comunitários voltaram a se reunir para apresentar uma proposta mais concreta e que não tivesse apenas efeitos imediatos, mas garantisse os direitos dos moradores da periferia em longo prazo. E então começaram a surgir os esboços para aquela que se tornaria a Ação Civil aprovada neste ano. “Junto com a Defensoria Pública, tentamos responsabilizar o Estado por essas ações da PM. Dessa forma, colocamos a responsabilidade nas costas de quem permite que esses crimes aconteçam. Pensamos no que poderia ser feito para reduzir danos. Ambulâncias e câmeras são objetivas, mas questões de planejamento podem e devem ser realizadas. Como fazer uma operação militar no meio da tarde, com 12 mil crianças em colégios da Maré?”, questiona Lidiane Malanquini (29), coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré.

Um fator primordial para entender qual a forma melhor de ajudar a população da Maré foi focar não no policial que infringe a lei durante as intervenções policiais, mas, sim, no Estado que permite e não pune tal infração. “A gente exige mais fiscalização e mais prestação de contas. Pedimos até que tivesse um superior hierárquico para fiscalizar essas ações em tempo real”, comenta Daniel. Entretanto, ele reconhece que o trabalho para garantir que essas mudanças sejam efetuadas ainda é longo. “Agora, temos de cobrar das autoridades superiores, de quem está lá na alta cadeira hierárquica. Os policiais também têm responsabilidade, mas temos de pressionar seus superiores”. “É de fato inovador que tenha saído uma decisão como essa, uma ferramenta de luta para influenciar as políticas públicas. É uma decisão judicial, então você tem de cumprir”, argumenta Lola Werneck (30), coordenadora da Liderança Juvenil na Luta Pela Paz.

 

O poder da denúncia

É impossível negar que os moradores precisaram de uma dose extra de coragem para se posicionarem contra o sistema e fincarem o pé no chão naquilo que diz respeito ao direito básico de uma vida digna e segura. Aí, mais uma vez, veio o papel das ONGs. “São poucos os que chegam a denunciar, porque muitos deles têm medo de serem perseguidos. De tudo o que acontece, 10% das pessoas chegam a falar com a Redes e, desses, só uns 2% denunciam de verdade”, comenta o Sr. Vilmar Gomes (53), Presidente da Associação de Moradores de Rubens Vaz. Morador da Maré desde quando tinha oito anos de idade, há 25 ele atua como um dos principais líderes comunitários na região. Parte fundamental do grupo responsável pela pressão popular sobre a Ação Civil, ele conta que desde quando chegou à Maré, a Polícia abusa do poder e faz vítimas durante suas operações. Um quadro que, ele observa, tem piorado nos últimos anos. “Vir para reprimir o tráfico é uma coisa. Agora, o que eles estão fazendo é covardia com os moradores e até roubando. Sem falar nas balas perdidas, todas às vezes! A cada dia que passa, as operações estão mais violentas”, reclama.

Vilmar, mais conhecido como Magá, conta que a sua própria casa já foi invadida em uma ocasião e os policiais, ao não encontrarem nada de incriminador, saíram dali levando todo o estoque de produtos de beleza que a sua esposa revendia, mais R$200 que estavam guardados na gaveta da cômoda. Apesar de reconhecer o rosto dos oficiais, ele diz que não prestou queixas naquela época por saber da impunidade com que o caso seria tratado. Hoje, entretanto, ele diz que agiria diferente. “Depois dessa parceria com a Redes, nós estamos orientando e conversando com os moradores para que eles não fiquem calados. Tem de fazer a ocorrência, porque quanto mais fizer, mais eles vão ficar sabendo”, diz, referindo-se aos órgãos públicos.

As denúncias oficiais também contribuíram no embasamento legal necessário para a Ação Civil Pública. Mas, antes que elas fossem protocoladas, foi necessário esclarecer que, mesmo com o resultado não vindo de imediato, ela era imprescindível em longo prazo. “Nosso trabalho é muito de fomentar o ato da denúncia. Porque se não tem registro, é como se não tivesse acontecido, e daí não podemos fazer nada para mudar essa realidade”, aponta Lidiane. Ela frisa a importância do Maré de Direitos no atendimento e acompanhamento jurídico desses casos, prestando de forma gratuita todo o auxílio necessário para que os moradores possam expor os problemas enfrentados sem sofrerem retaliações. “Quando você formaliza, existe automaticamente o registro de ocorrência, que também passa pela Defensoria e pelo Ministério Público. Ou seja, no mínimo três órgãos do sistema judiciário ficam cientes do caso”, esclarece.

Entre os jovens que atuam na Luta Pela Paz, a realidade é similar e o encorajamento por parte dos voluntários é incansável. “A maioria deles tem medo de fazer essa denúncia porque muitas delas não vão adiante. Então, há uma descrença generalizada em relação aos direitos que a população tem frente à polícia. Eles pensam: ‘Vou denunciar, vão invadir de novo e eu vou estar sozinha’. Por isso que trabalhamos muito com a resiliência do que é possível fazer e do que está sob a nossa responsabilidade”, conta Lola.

A Ação Civil Pública começa a vigorar em seis meses, provavelmente apenas no início do próximo ano, levando em conta que o Estado ainda deve recorrer contra a ordem. Ainda assim, ninguém pretende ficar parado e de braços cruzados até lá. “Nós nos encontramos com o Ministério Público e, mês que vem, temos uma reunião com a Defensoria. No mês seguinte, será com a Secretaria de Segurança. A ideia é fazer uma grande audiência, reunindo todo mundo e permitindo que os moradores da Maré façam propostas objetivas”, explica Lidiane.  E, como diz o próprio Sr. Valmir: “a gente está nessa luta e não pode parar”.

[vc_text_separator title=”Depoimentos de moradores sobre a Ação Civil:” title_align=”separator_align_left”]
[blockquote author=”JEFFERSON FERREIRA, 33 anos, gerente de supermercado”]“Concordo com a Ação Civil, porque tem muita covardia durante as invasões da polícia. Eles entram nas casas das pessoas, reviram tudo e batem nos moradores. Acho que, para entrar na casa de alguém, eles devem ter algum tipo de alvará ou autorização. E, também, quando for procurar alguém tem de ir com um destino certo, não sair dando tiro para tudo quanto é lado, como eles fazem.”[/blockquote]
[blockquote author=”JANETE, 48 anos, professora e comerciante”]“Eu não concordo com a Ação. Sabe por quê? Porque exigir que tenha ambulância é já pressupor que vão ter feridos, e eu não acho isso certo. O problema
todo é político. Enquanto não mudar a base, isso vai continuar estourando para cima da gente, porque a questão é bem maior. Hoje, vivemos um colapso político e social – estamos completamente à deriva. E isso não é um fato isolado, é resultado de uma má gestão que começa lá em Brasília.”[/blockquote]
[blockquote author=”PAULO CÉSAR, 45 anos, farmacêutico”]“O problema é a corrupção dentro da polícia. Quando acabar com isso, melhora. Eles querem pegar bandido, mas só porque ganham dinheiro assim. O trabalhador que não tem como pagar nada acaba tomando bala. Na Zona Sul eles não fazem isso. Por quê? Porque lá tem filho de promotor, de juiz… O governo precisa mandar alguém pra reunir todo mundo, ouvir o que a gente tem para falar e acreditar nisso.”[/blockquote]
[blockquote author=”MARLENE LIMA, 51 anos, comerciante”]“Acho que com as câmeras e o GPS a situação vai melhorar, porque pelo menos vão saber por onde [os policiais] andam. Mas não acho que a violência vá diminuir só no dia que a imprensa filmar tudo o que eles fazem. A bala do policial não tem destino, pode atingir qualquer um. Toda vez que eles invadem a favela, eu preciso fechar as portas da minha loja. A gente [os vendedores] abre depois, porque é nosso compromisso, mas não fica ninguém na rua. Não tem clima. A Maré não é um lugar ruim, só está abandonada.”[/blockquote]

Clique aqui para ler o documento com a decisão da justiça.

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