Após suspensão do Plano Nacional de Educação Especial (PNEE), importância da inclusão de alunos com deficiência volta ao centro do debate educacional
Por Tamyres Matos, em 09/09/2021 às 09h30
Pensar a diversidade é pensar a vida e o tema é cada vez mais frequente nas discussões sobre como podemos avançar enquanto sociedade. A inclusão da pessoa com deficiência no ambiente escolar é uma das pautas relevantes neste contexto. O assunto voltou ao centro do debate educacional desde a instituição da Política Nacional de Educação Especial (PNEE) em setembro de 2020. Em dezembro do mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o decreto e as discussões sobre a legislação têm se arrastado desde então. Recentemente, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, saiu em defesa do conjunto de medidas e criticou o que chamou de “inclusivismo” presente nas críticas.
Milton Ribeiro afirmou em entrevista ao programa Sem Censura, da TV Brasil, que a convivência com crianças em graus específicos de deficiência poderia “atrapalhar” o desenvolvimento nas escolas regulares. “A palavra ‘atrapalhar’ não é a melhor, a gente se equivoca, mas um prejudica o progresso do outro. A criança com deficiência tem que ter um olhar e um cuidado especial e é isso que o nosso governo quer ter, nosso governo quer ter um cuidado especial para com a criança com deficiência”, declarou durante evento realizado em agosto pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes).
Segundo a organização internacional Human Rights Watch (em tradução literal, Observatório dos Direitos Humanos), mais de 1,3 milhão de brasileiros com deficiência estão matriculados no sistema regular de ensino. “O Plano do presidente Jair Bolsonaro pretende criar um sistema educacional segregado para pessoas com deficiência, enfraquecendo a educação inclusiva e buscando uma política retrógrada e incompatível com as obrigações internacionais de direitos humanos do Brasil”, critica texto publicado em agosto no site da organização.
O Governo Federal nega que a PNEE represente qualquer movimento de segregação. O decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro aponta que o Estado precisa oferecer “instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”.
Diversos especialistas em educação argumentam que a alteração representa um retrocesso nas décadas de luta pela inclusão social da pessoa com deficiência, além de apontar que o novo decreto pode afastar este público da possibilidade de frequentar as escolas regulares. O ministro da Educação contra-argumentou que a escolha do local da matrícula segue sendo dos pais. Após a divulgação de nota com pedido de desculpas a respeito da utilização do termo “atrapalhar”, ele voltou a abordar o tópico ao afirmar que, dependendo do grau de deficiência, algumas crianças “criam dificuldades para elas e outros alunos”.
Para a pedagoga pós-graduada em educação infantil e transtorno do espectro autista Ligia Maria Santos do Nascimento, moradora da Vila do Pinheiro, a reflexão contida nas palavras do ministro – antes e depois da nota com pedido de desculpas – não condiz com a realidade. “Jamais uma criança com deficiência atrapalha. O que atrapalha é o preconceito das pessoas em relação a esse assunto. Toda criança tem o direito de estudar em classes regulares, por isso que estamos na luta, principalmente para que haja respeito”, considera.
Ligia é autora do livro “EU SOU ASSIM: ‘Vejo o mundo de uma forma diferente”, fruto do contato em sala de aula com crianças e adolescentes autistas em diferentes graus, mas, em especial, com um aluno cuja trajetória compartilhou durante 5 anos. “Com o meu livro, eu quis dar voz ao meu aluno. Meu objetivo era ajudar as pessoas a compreender os processos de uma criança autista. Ajudar a entender porque elas agem de tal forma, pois eu quero contribuir para que tenhamos uma sociedade com um olhar sensível, que as pessoas possam ser mais tolerantes, tenham mais empatia antes de julgar e excluir. O que eu almejo é que tenhamos menos dedos apontados e mais mãos estendidas”, conclui a escritora.
Luta pela inclusão na Maré
Lotado no Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) Ministro Gustavo Capanema, na Vila do Pinheiro, o professor Luiz Costa, de 62 anos, morador do Morro do Timbau, é um dos especialistas que discordam da visão do ministro. Para o docente, Milton Ribeiro foi “infeliz e cruel” em suas falas. “O trabalho de inclusão não só é benéfico para quem é incluído, mas também para quem acolhe. Às vezes entender as diferenças demanda sutileza, se você olhar nos olhos da pessoa com dificuldade de comunicação, se você se ver dentro dos olhos dela, você vai entender que ele está te vendo, que está reagindo. A criança, quando se depara com esses desafios, se desenvolve, a humanidade fica muito mais potente”, acredita.
Com experiência de 40 anos no magistério, Luiz Costa é um velho conhecido da educação “especial”. O professor e psicólogo, inclusive, tem boa parte da sua atuação voltada para o atendimento de crianças que não têm como se locomover até a escola. Em sua rotina normal – interrompida pela pandemia -, uma vez por semana, o professor vai até cada um dos sete alunos da Maré que atende e dá 2 horas de aula. Mas essa atividade voltada às excepcionalidades não o conduz à defesa da construção de classes ou mesmo escolas que separem alunos com deficiência de alunos sem elas.
“A gente (profissionais da educação) precisa se reinventar e, num primeiro momento, tem uma dor de aprendizado. A faculdade não nos forma para isso. Mesmo no caso da psicologia, minha formação não era aprofundada para a prática. Quando a gente mergulha no tema, começa a entender que a pessoa com paralisia cerebral, por exemplo, tem uma pulsão de vida incrível. Ao deixar que ela nos acolha, a gente é acolhido. Quando a criança ou adolescente nos acolhe, é algo que mexe muito com a gente, nos faz crescer como seres humanos. Existe uma diferença na forma de aprender, na forma de acessar o mundo. E isso não atrapalha, isso ensina a todos”, afirma.
Para o professor, as restrições da pandemia têm representado perdas significativas na evolução de todas as crianças. “A escola ficou com atendimento remoto para alguns, aqueles que têm mais recursos. No caso das crianças com deficiências severas, nossa atenção se voltou para as campanhas de doação. Especialmente nos casos dos alunos cujos pais estão sem emprego. Além disso, temos casos de equipamentos públicos que foram abandonados durante a pandemia, como é o caso do Ciep Elis Regina e da Vila Olímpica. Muito tempo sem a presença de alunos e pouca ou nenhuma obra de manutenção realizada”, critica.
Luiz conta, ainda, que trabalha com a arrecadação de recursos para as famílias em maior vulnerabilidade, como fralda, leite, cadeiras de rodas, entre outros tipos de suporte. Para ajudar, qualquer pessoa pode entrar em contato com o grupo Especiais da Maré.“Quando você ajuda a cuidar de alguém que não pode ou tem dificuldades de se cuidar sozinho você melhora a vida do seu entorno”, diz.
Segundo o Censo Populacional da Maré de 2019, há 1.670 domicílios em que há pelo menos um morador que seja uma pessoa com deficiência, o que corresponde a 3,5% da população das 16 favelas. No caso do Brasil, essa porcentagem chega a 6,2%, mas as bases de cálculo são diferentes. O documento, iniciativa da Redes da Maré em parceria com o Observatório de Favelas, aponta que “o problema maior é que as condições precárias de acessibilidade e de limpeza urbana, de acesso a equipamentos e profissionais de saúde, de renda e outros fatores geram dificuldades severas para a garantia do direito de ir e vir das pessoas em situação mais grave de deficiência e/ou transtorno”. A Maré conta com 48 escolas públicas, que oferecem da creche ao ensino médio.