Reforma faz parte de ação com caminhão-museu nos Cieps Elis Regina e Samora Machel
Por Adriana Pavlova, em 27/09/2022 às 12h59
Tem novidade multicolorida na quadra poliesportiva dos Cieps Elis Regina e Samora Machel, na divisa da Nova Holanda com o Parque Maré. O amplo espaço de lazer usado por alunos das duas escolas e pelos próprios moradores da região está totalmente transformado e muito mais acolhedor, depois de passar pela revitalização conduzida pela artistas Pinky e Rita Wainer, com participação de crianças frequentadoras do local.
A transformação idealizada e coordenada pela Redes da Maré fez parte de uma parceria com o Festival Agora, que trouxe para lá também, em meados de agosto, um surpreendente caminhão-museu com histórias da Independência do Brasil, visitado durante três dias por cerca de mil pessoas, entre estudantes das escolas públicas da Maré e comunidade. A ocupação inédita da quadra e do terreno comum aos dois Cieps, unindo lazer e aprendizado, trouxe novos ares à região marcada pelo conflito entre grupos civis armados do território.
Desde a revitalização da quadra, alunos do Elis Regina voltaram a fazer aulas de esportes ali e os professores de Educação Física do Samora Machel já estão pensando num extenso calendário de programação, a começar por um campeonato de futebol durante a Copa do Mundo, enquanto também buscam novas parcerias para seguir nas melhorias.
“A quadra não estava sendo usada, por isso a revitalização foi muito bem-vinda, melhorou muito. A ideia é que a comunidade se apodere desse espaço coletivo, que é dela”, disse Márcia Bamberg, diretora adjunta do Ciep Samora Machel, que, assim com a direção do Elis Regina, tem sido cautelosa na retomada do espaço, por conta dos conflitos na região.
A diretora do Elis Regina, Andréa Fonseca, conta que turmas de 4,5 e 6º anos já estão fazendo aulas de esportes em dois dias da semana, mas a proposta é ir ampliando a utilização da quadra, aos poucos. O reencontro com a área ao ar livre das duas escolas, que inclui a quadra e um amplo terreno sem construção, aconteceu justamente com a chegada do caminhão-museu, um projeto da Universidade Federal de Minas Gerais, que roda o Brasil há quase uma década. A versão que estacionou nos jardins dos Cieps da Maré é especialmente dedicada a histórias de projetos e conflitos políticos ligados à Independência do Brasil.
Mulheres na luta
Itinerários da Independência é o nome da exposição apresentada num caminhão que parece saído de filmes de ação, com diferentes ambientes expositivos: sala de cinema com vídeo curtos e animações sobre temas da Independência, sala de realidade virtual onde o visitante pode ser fotografado em momentos históricos, uma grande biblioteca, 11 painéis com reproduções de obras de arte que fazem alusão a acontecimentos relacionados à Independência em diferentes lugares das Américas, e painéis com as histórias de mulheres que lutaram pela Independência brasileira, mas que nem sempre são reconhecidas por seus feitos.
Apesar de um dia de visitação ter sido suspenso por conta de uma operação policial na Maré, nos demais dias de funcionamento, o caminhão-museu atendeu a um público bem variado de estudantes de dez escolas da região, além de crianças e adolescentes participantes de atividades da Lona Cultural Herbert Vianna. Para a diretora Andréa Fonseca, do Elis Regina, a visita do caminhão ofereceu a rara oportunidade de um contato mais aprofundado com a História do Brasil.
“De uma forma geral, há um grande desconhecimento sobre a História do país. A exposição ofereceu uma perspectiva nova de aprendizado, facilitando a compreensão e apresentando informações nem sempre divulgadas, como das mulheres que lutaram pela Independência do Brasil. As crianças amaram, desde os pequenos até os maiores”, avaliou a diretora.
De fato, a equipe responsável pelo nmuseu se surpreendeu com o envolvimento e a resposta das crianças das escolas mas também do público espontâneo do entorno que, em alguns casos, voltou várias vezes para aproveitar a experiência. Na biblioteca, o grande sucesso foram os livros com imagens do Rio, como contou Bárbara Deoti, pesquisadora do Projeto República da UFMG.
“Houve muito interesse sobretudo fotografias do Rio Antigo, como as de Marc Ferrez, porque eles iam comparando e falando como era antes e agora. Para nós, pesquisadores, foi muito bacana interagir com a criançada, porque, normalmente, nos outros lugares onde essa exposição esteve, a maioria dos visitantes era de gente adulta”, disse.
O interesse da garotada pelo veículo que também é museu na Maré encantou Heloísa Starling, historiadora responsável pelo projeto e autora de livros como Brasil: uma biografia, ao lado de Lília Schwarcz. Em sua primeira visita ao conjunto de favelas, Heloísa passou muitas horas observando e interagindo com os estudantes que exploraram o caminhão com muita curiosidade.
“Os alunos de fato me convenceram que estavam não só curtindo o caminhão como reinventando a experiência na imaginação deles. Ficavam me perguntando onde era o botão de desmontar o caminhão, porque para eles era um grande transformer (brinquedo). Também não queriam sair do cinema, voltavam mais de uma vez. Eu fui conversar para entender e me contaram que nunca tinham entrado numa sala de cinema. É apavorante meninos que moram no Rio de Janeiro, onde teoricamente teriam acesso ao cinema, não terem esse hábito, muito provavelmente pelo preço ou medo de preconceito. Eles me deram várias aulas na biblioteca sem perceberem.”
A historiadora surpreendeu-se também com o acolhimento dos alunos ao saberem que era ela a idealizadora do projeto. A estreia na Maré, segundo Heloísa, foi puro aprendizado, a começar pelo trabalho da Redes no território:
“No encontro com os estudantes, fiquei impressionada com o afeto deles. Eles perguntavam se eu era a dona do caminhão, eu explicava que era a professora e vinham me dar um abraço. O que eu vivi ali não vivi até hoje em lugar nenhum e certamente fez e está fazendo diferença na minha vida. Cada lugar ensina uma coisa para mim e para a minha equipe e a Maré ensinou muito. Nunca vi um trabalho como o da Redes. Você vai andando, entra num galpão e vê uma aula de balé (da Escola Livre de Dança da Maré, no Centro de Artes da Maré), depois tem um biblioteca de três andares (a Biblioteca Lima Barreto), onde eu queria tirar férias para poder ficar lendo tudo que não li, e, mais para frente, um memorial, um muro imenso, bonito e doloroso, com azulejos em homenagem a pessoas que morreram de covid na Maré (na Rua Bittencourt Sampaio). Você vai ficando surpreendida. Ainda não consegui elaborar tudo que vivi ali”, relembra.
Realização fruto de parceria
Na prática, as melhorias no entorno dos colégios começaram a serem feitas para receber o caminhão-museu e, no embalo da revitalização, aconteceu o embelezamento da quadra, tudo previsto pela parceria da Redes com o Festival Agora, que aconteceu no Museu de Arte Moderna (MAM), em agosto, com o tema Mulheres da Independência. A primeira artista a ser convidada pela coordenadora de Comunicação da Redes, a produtora Geisa Lino, foi Rita Wainer, que já havia colaborado com a Casa das Mulheres, e que rapidamente engajou sua mãe, a também artista Pinky Wainer. Foram dois dias de trabalho, com a criançada em volta, participando de tudo, como contou Pinky:
“O processo de fazer foi incrível. As crianças se aproximaram e tomaram posse da quadra através da pintura. Bonito demais. As crianças entenderam mil vezes melhor do que eu o que estava acontecendo naquele lugar. E, no final, liberamos os pinceis e as tintas e elas começaram a pintar o entorno, ruínas, pedaços de muro. Foi muito bonito e cheio de significados”.
Geisa destacou o fluxo novo de pessoas no espaço a partir da chegada do caminhão, que culminou na reaproximação das famílias que vivem na região, no dia do trabalho das artistas:
“Houve muitas visitas espontâneas ao caminhão-museu, inclusive de gente de fora da Maré porque foi o lugar escolhido para mostrar o projeto no Rio. Depois, com a pintura, as famílias começaram a reocupar a quadra e o espaço entorno, as crianças brincaram, pintaram e os mais velhos foram se sentar no gramado para ver a pintura.”
Edson Fernando Júnior, professor de educação física do Samora Machel, avaliou que a revitalização da quadra deu o primeiro passo para reaproximar a comunidade do espaço mas que agora é fundamental buscar novos parceiros para seguir com as transformações.
“Precisamos reformar a cobertura e comprar material esportivo, além de colocar balizas e rede de vôlei. Foi ótimo o que as artistas fizeram, reforçando a marcação no chão. Além disso, gostaríamos muito de usar a área de vestiário como abrigo, em caso de tiroteio. É importante ter um plano de ação devido à especificidade da região”, lembra o professor que espera contar com o apoio do comércio local para seguir com as melhorias.
O projeto a curto prazo é realizar amistosos entre os alunos dos dois Cieps e também programar uma copa de futebol até o fim do ano, inspirada na Copa do Mundo.