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Filmado na Maré, série educativa ‘Nenhum Aluno a Menos’ forma jovens periféricos

Especialistas e professores que participam foram selecionados por sua conexão com as comunidades, garantindo que o conteúdo ressoe com os espectadores

“Nenhum Aluno a Menos” (NAM) é uma série de vídeos educativos que acaba de estrear no YouTube. Patrocinado pela Light e pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, via Lei Cultural do ICMS, o NAM busca preencher a lacuna educacional deixada pela pandemia de Covid-19, especialmente entre os jovens das periferias urbanas. Para celebrar o lançamento, a exibição de um episódio da série foi exibida em um telão ao ar livre, na última sexta-feira (5), às 19h, na Praça do Timbau.

A iniciativa oferece conhecimento através de um conteúdo audiovisual denominado “gotas do saber”, que aborda assuntos pouco divulgados nas escolas tradicionais. Essas pílulas do conhecimento cobrem uma variedade de temas transversais que são essenciais para a formação dos jovens, incluindo mercado de trabalho, formação técnica, economia criativa, grafite, hip hop, literatura, matemática financeira, música, audiovisual, artes visuais e português.  

“A linguagem adotada evita o formato tradicional de videoaulas, optando por uma abordagem mais artística e criativa. Essa proposta busca engajar o público e criar uma experiência educativa mais envolvente, contribuindo significativamente para a formação desses jovens e, consequentemente, para o desenvolvimento da sociedade como um todo”, destaca Pery de Canti, idealizador e produtor executivo do projeto.   

Realizado principalmente no Conjunto de Favelas da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, o NAM conta com a participação de profissionais majoritariamente oriundos da periferia, tanto na produção quanto na execução dos conteúdos. Além disso, os especialistas e professores que participam dos vídeos foram selecionados por sua conexão com as comunidades, garantindo que o conteúdo ressoe com os espectadores. Importante frisar que o projeto teve um impacto na economia local, favorecendo trabalhadores diretos e indiretos, o que reforça o caráter social da proposta.

As filmagens aconteceram entre maio de 2023 e maio de 2024, com 95% das gravações realizadas em meio a operações policiais e confrontos sociais da violência, evidenciando o abismo existente entre o Estado e a periferia. “Essa realidade traz autenticidade e urgência às produções, refletindo as verdadeiras condições vividas pelos jovens dessas comunidades”, finaliza Canti, que há 20 anos se dedica a trabalhos socioeducativos voltados para as regiões periféricas.

Fotógrafo da Maré inaugura exposição de arte contemporânea no Espaço Normal

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O trabalho que já teve exibição no Centro Cultural do Rio Janeiro, na Casa França-Brasil agora têm sua montagem inédita dentro do território

O fotógrafo mareense Douglas Lopes, inaugura neste sábado (6), no Espaço Normal – Espaço de Referência Sobre Drogas na Maré – a exposição fotográfica Biografias Imaginárias. Será a primeira vez que o Espaço Normal recebe uma exposição de arte contemporânea.

O trabalho que já teve exibição no Centro Cultural do Rio Janeiro, na Casa França-Brasil foi apresentado na exposição “Literatura Exposta” e agora têm sua montagem inédita dentro do território onde essa série nasceu, o Conjunto de Favelas da Maré; reforçando a agenda de arte e cultura da região e possibilitando o acesso a arte de forma gratuita para toda a população das favelas da Maré.

“Essa montagem pro espaço normal pensamos em além de apresentar essas fotografias, mais algumas do trabalho que venho desenvolvendo ao longo desses anos na Maré. Então são 10 fotografias, 6 da biografias imaginárias e 4 da Maré, além do vídeo arte Baile Encantado, que é fruto da minha pesquisa sobre bailes funk na Maré”, ressalta Douglas.

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O vídeoarte que Douglas se refere fez parte de uma exposição no Centquatre-Paris, na França e também é inédita nessa mostra na Maré e no Brasil. Além disso, a exposição conta com mais três esculturas que foram desenvolvidas especialmente para essa mostra no Espaço Normal.

“As esculturas fazem um diálogo com as fotografias expostas no sentido de pensar formas de construção intelectual de identidades que fujam dos estereótipos designados à pessoas de favela”, afirma.

Arte e redução de danos

Sendo inaugurada a partir das 15h deste sábado, a exposição estará aberta para visitação até o final de setembro. Quando questionado porque escolheu a fotografia como forma de fazer arte, Douglas exaltou como as imagens são ferramentas que contam outras narrativas possíveis para as favelas contrapondo as imagens que retratam as periferias com escassez, violência e pobreza.

A escolha para a exposição no Espaço Normal também não foi por acaso. Além de receber o convite para pensar como poderia contribuir com alguma intervenção artística no local, Douglas também tem forte relação afetiva com o espaço e acredita que a fotografia também é uma ferramenta para a redução de danos.

“Eu acho que a fotografia pode impactar as pessoas de diversas formas, através de sensações e emoções que possam nos despertam, de conexões que nosso subconsciente pode fazer ao ver uma obra, das interações que possam surgir a partir delas, mas principalmente do poder de visar novas possibilidades de mundo e de futuro”, conta.

Eu gosto de dizer que a fotografia é como um mapa que me permite navegar pelas paisagens da vida, analisando cada detalhe do território que me cerca, descobrindo novas perspectivas sobre nós mesmos e o mundo ao nosso redor

Douglas Lopes

O Espaço Normal fica localizado na Rua 17 de fevereiro, nº 237, Parque Maré. O evento é gratuito.


Justiça é diferente de vingança: uma visão contra a pena de morte

Flávia Cândido*

A frase “bandido bom é bandido morto” reflete uma mentalidade punitivista que negligencia a complexidade dos problemas sociais e as potencialidades de reabilitação e reintegração dos indivíduos. Apesar disso, 76% de paulistanos e cariocas defendem a pena de morte. Esta visão, embora popular entre certos segmentos da sociedade, é contraproducente para a construção de um ambiente seguro e justo. Em vez de apostar na eliminação dos considerados “bandidos”, devemos focar em políticas públicas que promovam a recuperação e ofereçam oportunidades reais de mudança de vida.

Vivemos em uma sociedade onde a justiça é frequentemente substituída pela vingança, criando um apartheid social. Um crime cometido por alguém com recursos financeiros é tratado de maneira muito diferente do mesmo crime cometido por alguém sem recursos. Esse apartheid social é evidente no sistema de justiça criminal brasileiro, onde a superlotação das cadeias é em grande parte devido a pessoas que ainda nem foram julgadas. É fundamental entender que a recuperação e reintegração são caminhos mais justos e eficazes para lidar com o crime, ao invés de perpetuar a punição severa e a exclusão.

 A importância da recuperação e reintegração

Pessoas boas são aquelas que, mesmo após cometerem erros, têm a chance de se recuperar e reintegrar na sociedade. Essa visão está fundamentada na crença de que todos têm potencial para a mudança, desde que sejam oferecidas condições adequadas para isso. Programas de reabilitação bem estruturados, educação e capacitação profissional são ferramentas poderosas para transformar vidas e reduzir a reincidência criminal.

Após serem julgados e condenados por seus crimes, os indivíduos que cumprem suas penas têm o direito de reconstruir suas vidas. Eles pagaram pelo erro cometido e, apesar de sua ficha permanecer manchada, devem ter a oportunidade de recomeçar. A verdadeira justiça não se confunde com a vingança; a dor da justiça é distinta da dor da vingança. A morte de uma pessoa não desfaz o crime cometido, nem alivia a dor. Em vez disso, perpetua um ciclo de violência e sofrimento. A sociedade deve focar em proporcionar uma segunda chance, oferecendo suporte para que ex-detentos possam se reintegrar, contribuindo positivamente para a comunidade e vivendo de maneira digna.

Políticas públicas eficazes

Para que a recuperação seja eficaz, é essencial a implementação de políticas públicas preventivas e de apoio à reintegração social dos indivíduos que cometeram crimes. Políticas públicas preventivas, como a melhoria do sistema educacional, a criação de oportunidades de emprego e o fortalecimento das redes de apoio comunitário, são fundamentais para abordar as raízes dos problemas sociais que levam ao crime.

Além disso, políticas públicas focadas na recuperação dos indivíduos condenados são cruciais. Esses programas devem incluir apoio psicológico e psiquiátrico, proporcionando um tratamento adequado para os problemas de saúde mental que muitas vezes estão na base dos comportamentos criminosos. A motivação para estudar e participar de oficinas criativas também desempenha um papel vital na reabilitação, oferecendo aos ex-detentos habilidades e oportunidades que podem ajudá-los a se reintegrar na sociedade de forma produtiva.

Investir em psicólogos, psiquiatras e programas educacionais para os presos não só ajuda na recuperação individual, mas também contribui para a redução das taxas de reincidência e para a construção de uma sociedade mais segura e coesa. Exemplos de sucesso podem ser encontrados em países que implementaram essas políticas com seriedade, mostrando que a recuperação é não apenas possível, mas também benéfica para toda a comunidade.

A falácia da pena de morte

Defensores da pena de morte argumentam que ela serve como um dissuasor eficaz contra o crime. No entanto, estudos mostram que não há correlação significativa entre a aplicação da pena de morte e a redução das taxas de criminalidade. Em muitos países que adotam a pena de morte, os crimes continuam ocorrendo, demonstrando que o punitivismo não resolve a questão da segurança pública. Pelo contrário, a pena de morte perpetua um ciclo de violência e não aborda os fatores subjacentes que levam ao comportamento criminoso. Além disso, o sistema judicial é falível e pode resultar na execução de inocentes, uma injustiça irreversível.

A moralidade e os direitos humanos

A aplicação da pena de morte levanta sérias questões morais e de direitos humanos. Uma sociedade que se baseia na vingança e na eliminação dos “indesejáveis” nega a dignidade e o valor inerente a cada ser humano. É crucial entender que vingança é diferente de justiça. Enquanto a justiça busca reparar o dano e proporcionar um caminho para a recuperação e a reintegração, a vingança simplesmente perpetua o ciclo de violência e sofrimento. A justiça é fundamental para a vítima ou seus familiares, proporcionando uma sensação de fechamento e equilíbrio. No entanto, a vingança, na forma de pena de morte, não resolve o problema e não traz de volta a vítima. Em vez disso, devemos focar em políticas que visem a prevenção do crime e a recuperação dos indivíduos, construindo uma sociedade mais justa e segura para todos.

A realidade do sistema carcerário brasileiro

Especialistas ouvidos recentemente pela Comissão de Segurança Pública apontaram que o sistema prisional brasileiro tem graves falhas e práticas inconstitucionais que não garantem a dignidade nem a ressocialização dos presos. A senadora Leila Barros destacou que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro, responsabilizando-o pela violação massiva dos direitos fundamentais dos presos e exigindo soluções urgentes. O Brasil tem atualmente a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 852 mil pessoas cumprindo pena. Destas, 650 mil estão em celas físicas, 129 mil estudam para diminuir a pena e 166 mil estão envolvidas em atividades laborais.

Gabriel Sampaio, da Conectas Direitos Humanos, afirmou que o sistema penitenciário precisa de medidas emergenciais para superar seus problemas crônicos, que incluem a falta de condições mínimas de educação, saúde e acesso ao trabalho. Ele criticou a recente lei que restringe as saídas temporárias de presos, argumentando que isso dificulta ainda mais a ressocialização e reinserção familiar dos detentos. Além disso, Sampaio destacou que a implementação de exames criminológicos para a progressão de regime penal, exigida pela nova lei, não tem eficácia comprovada e sobrecarrega um sistema já deficiente em recursos e pessoal.

O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, pontuou que a desestruturação do sistema prisional impede que ele atenda às suas finalidades básicas. Ele ressaltou que o sistema prisional existente “mata” e “cancela” pessoas para o resto da vida, em vez de promover a recuperação e a reintegração. Para enfrentar essa crise, é necessário refundar o sistema, aproveitando as boas iniciativas e os bons profissionais existentes, além de garantir os recursos públicos necessários para implementar políticas públicas eficazes.

 Recuperar é mais barato que manter preso

Além dos aspectos humanitários e de segurança, é importante frisar que recuperar um indivíduo é significativamente mais barato do que mantê-lo preso. Estudos mostram que, enquanto o custo anual para manter um preso pode chegar a R$ 40.000,00, os programas de reabilitação e reintegração custam significativamente menos. Programas de educação e capacitação profissional, por exemplo, podem custar em média R$ 5.000,00 por ano por pessoa. O investimento em suporte psicossocial e tratamento de saúde mental também é mais econômico, com custos estimados em R$ 8.000,00 anuais por indivíduo. Esses programas não só diminuem a reincidência criminal, mas também aliviam o peso financeiro sobre o sistema penitenciário e, por consequência, sobre os cofres públicos.

Pode-se concluir que, em vez de perpetuar a ideia de que “bandido bom é bandido morto”, devemos promover a visão de que pessoas boas são aquelas que tiveram a chance de se recuperar e reintegrar na sociedade. Políticas públicas eficazes e compassivas podem transformar vidas, reduzir a criminalidade e construir uma sociedade mais justa e segura para todos. Acreditar na capacidade de mudança e investir na recuperação é, em última análise, um ato de fé na humanidade e um compromisso com um futuro melhor.

A justiça é fundamental para a vítima ou seus familiares, mas não deve ser confundida com vingança. Este artigo defende a verdadeira justiça, que busca a reparação e a recuperação, e não a vingança, que apenas perpetua o ciclo de violência e sofrimento.

*Flavinha Cândido é moradora da Maré e colunista no Maré de Notícias, formada em Letras pela UERJ, Pós-graduada em Letramento Racial e Idealizadora da Página no Instagram Racial Favelado

Estudantes da Maré perderam um quarto do semestre letivo em 2023 por causa de operações policiais

Boletim Direito à Segurança Pública na Maré aponta que operações policiais causaram a suspensão de 25 dias de aulas

Lucas Feitoza e Maria Teresa Cruz

As crianças e adolescentes moradoras do Conjunto de Favelas da Maré ficaram quase um mês sem aulas em 2023, por causa das 34 operações policiais realizadas no ano. Os dados estão no 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado no dia 14 de junho deste mês. 

O levantamento aponta os impactos nos direitos dos moradores da Maré, como saúde, educação e o direito ao lazer. Se considerarmos os 200 dias de aulas previstos por lei, os estudantes da Maré perderam um quarto do semestre no ano passado. A série histórica do boletim, que começou a ser sistematizado em 2016, traz um número alarmante: alunos perderam um ano e meio de estudos por causa de fechamentos de unidades escolares de 2016 a 2023.

A assistente social Aline Regina, que também atua na Redes da Maré, fala do lugar de mulher preta, moradora de favela e mãe solo de uma criança atípica. “Sei o quão árduo, difícil e desafiador é fazer com que nossos filhos possam vivenciar uma infância plena, experimentando da saúde, do brincar, do lazer, da educação e da segurança”, declara.

 Ela destaca que, mesmo conhecendo a legislação que deveria garantir os direitos básicos às crianças, essa não é uma realidade na favela.

“O cenário de violência presenciado por nossos filhos causam medo, angústia, estresse, ansiedade,  depressão, síndrome do pânico, entre outras questões de saúde mental, além de gerar atrasos no desenvolvimento social e cognitivo da criança. Só esse ano já se foram 17 dias sem aulas por causa de operações”

Aline Regina

O sistema de ensino da Maré conta com quatro unidades estaduais e 46 municipais. Em operações policiais, está previsto o acionamento do protocolo Acesso Mais Seguro, que visa proteger não apenas os pais e alunos, como os profissionais da educação. “Além do impacto na aprendizagem, a gente vai ter outros efeitos, como o desemprego, visto que muitas dessas mães não contam com rede de apoio e precisam faltar ao trabalho por causa desses confrontos.”, pondera Aline Regina.

Cotidiano de incertezas

Para Andréia Martins, uma das diretoras da Redes da Maré e integrante do Eixo de Educação, os impactos no processo de ensino e aprendizagem mostrados no boletim são evidentes. “As aulas não são adequadamente repostas, mas a gente não pode se limitar a medir o impacto apenas naquele momento, naquele dia da operação em que não houve aula. Estamos falando de um cotidiano de incertezas e aí não precisa ser tão especialista para entender os impactos, por exemplo, na saúde mental. A sensação permanente de incerteza, de insegurança atrapalha toda uma construção da subjetividade do ser humano. E isso com a infância é muito cruel, né? Porque as crianças não conseguem expressar exatamente o que elas estão sentindo, mas elas dão sinais. Vão adoecendo, mudando o comportamento”, analisa.

Andréia Martins exemplifica esse cenário ao mencionar o livro “Eu devia estar na escola”, uma coletânea de relatos e desenhos feitos por crianças e jovens da Maré em dias de operação, lançado em março deste ano. “A escola deveria ser um lugar como a sua casa, né? Um lugar seguro, um lugar de acolhimento, um lugar de pessoas felizes para que esse ambiente possa ser propício para construção do conhecimento. Mas essa é uma realidade muito distante para os estudantes da Maré. As ilustrações e os recadinhos do livro mostram o quanto essas crianças estão impactadas. E a gente precisa de uma política pública que olhe para essas especificidades”, avalia.

Preocupação mundial

O impacto da violência nas crianças e adolescentes é uma pauta global. Em agenda no Brasil na semana passada, a Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Proteção Contra Violência, Najat Maalla M’jid, passou pelo Rio de Janeiro e falou sobre a violência armada no ciclo de desenvolvimento de crianças e adolescentes. 

Em encontro na Câmara dos Vereadores com jovens líderes de movimentos que atuam pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, Najat ouviu mais sobre as preocupações e realidades vividas em territórios de favela, incluindo a falta de segurança pública.

Em entrevista exclusiva para o Maré de Notícias a pediatra ressaltou que garantir direitos é um dever do Estado e que “acho que esse é um momento enorme para o Brasil começar a revisar a forma que lidam com a segurança pública e também o que pode ser feito para garantir que todas as crianças e adolescentes que são deixados para trás estejam sendo incluídos e levados em conta em toda a parte econômica.” pontua. Dra Najat também ressalta que crianças, adolescentes e ativistas jovens devem ser vistos pelos Estados como parte da solução e envolvidos nas tomadas de decisões.

 “A falta de acesso e permanência segura nas escolas afeta não só o desenvolvimento das próprias crianças, mas tem impacto econômico negativo para o desenvolvimento de toda a cidade”, declarou em coletiva de imprensa.

Maré amanhece com 19ª operação policial no território 

Moradores relataram tiros na Nova Holanda e Parque União nas primeiras horas desta manhã 

Na manhã desta quarta-feira (3), moradores do Parque União, Nova Holanda e Rubens Vaz no Conjunto de Favelas da Maré amanheceram com sons de tiros. “Misericórdia! Ninguém merece acordar assim”, lamenta um morador por volta de 5h50. 

A Polícia Civil iniciou nas primeiras horas da manhã uma operação que, segundo os relatos, foi marcada por intensa troca de tiros, bombas e presença de veículo blindado (caveirão) pelas principais ruas da Nova Holanda. 

Em nota, o órgão respondeu que a operação é contra a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e para cumprir 16 mandados de prisão na Nova Holanda e no Parque União. 

19 operações em 6 meses

Esta é a 19ª operação policial do ano na Maré, causando prejuízos contínuos à vida dos moradores. Até agora, 24 escolas foram fechadas, incluindo duas estaduais. Além disso, a Clínica da Família Jeremias Moraes da Silva suspendeu suas atividades nesta manhã, e a Clínica da Família Diniz Batista dos Santos, apesar de manter os atendimentos na unidade, interrompeu as visitas domiciliares.

São 19 operações em apenas 6 meses, o que significa quase uma operação por semana. Qual a efetividade e resultados desta aposta de uma política de enfrentamento ao longo de todos esses anos?

ADPF das Favelas

Entre as exigências preconizadas na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) das favelas — instrumento jurídico que impede o Estado de praticar condutas que firam a constituição e violem direitos dos moradores — está a presença de ambulância durante as operações para socorrer possíveis feridos, assim como câmeras corporais dos agentes com o objetivo de diminuir letalidades durante as incursões. No entanto, não há registros ou relatos que confirmem o seguimento dessas determinações.

Apesar disso, em entrevista a TV Globo na última terça-feira (2), o Secretário de Segurança Pública afirmou que Cláudio Castro fez um investimento de 3 milhões mensais só com câmeras corporais.

Não binária e cria da Maré, artesã exalta a cultura negra e LGBTQIAPN+

Cria da Vila do João, Retinto Fecar conta que desde criança dançava com sua mãe, onde nasceu a vontade de estar perto das ações culturais da favela

Rahzel Alec*

A favela é um território de criatividade: aqui nascem os crias, as músicas, as comidas típicas, a farofada, as gambiarras e sempre tem espaço para um novo puxadinho. O Conjunto de Favelas da Maré não fica fora disso e, mesmo com 16 favelas e 140 mil habitantes, quem vê de fora consegue captar que essa terra tem espaço para todo mundo e mais um pouco. Assim como outros territórios de periferia que foram marginalizados desde o seu início, a Maré também precisou se movimentar para lutar contra o racismo, a violência policial e outras dores que afetam todos os moradores, como a falta de água e o acesso à saúde de qualidade. 

A partir das iniciativas culturais, de esporte, cuidado e incidência política que surgiram ao longo dos anos, através dos próprios moradores, muitos crias tiveram a oportunidade de enxergar novos caminhos para preservar a identidade das favelas a partir de suas histórias e das histórias de suas famílias e, com isso, muitas dessas produções e iniciativas que pensam no bem estar, na criatividade e na liberdade do favelado surgiram dentro desse território.

Iniciativas como as primeiras Associações de Moradores, os encontros e paradas LGBTIA+ da favela, os coletivos que surgiram ao longo dos anos e instituições como o CEASM, Luta pela Paz, Conexão G, e a Redes da Maré, foram importantes para fortalecer gerações de crias que na Maré se criaram, na Maré se fortaleceram e na Maré transacionaram. 

“Eu cresci como uma criança viada, sempre tive trejeitos, e só hoje me entendo como não binária. Já me tratavam diferente desde os meus 12 anos” 

Retinto Fêrcar, de 28 anos é dançarina, artersã, performer e cria da Vila do João. Ela conta que desde criança dançava com sua mãe nas festas de família, onde nasceu a vontade de estar perto das ações culturais da favela, e foi no Centro de Referência de Mulheres da Maré que Retinto teve seu primeiro acesso ao teatro. O desejo preocupava seu pai, que logo a inseriu em uma escolinha de futebol para que ela “fizesse coisas de menino”. 

“Eu até era boa no futebol sabe, dava um baile nos meninos, mas eu queria muito experimentar o teatro e a dança e foi o que escolhi”.

A Escola Municipal Teotônio, no Conjunto Esperança, foi um espaço em potencial para incentivar a estudante a se jogar de vez no mundo da dança. O corpo escolar ensaiava apresentações e organizou o 1º Concurso de Dança das Escolas, onde a Teotônio ganhou o primeiro lugar nas duas edições. 

Mesmo tendo uma boa relação com a arte e cultura dentro da favela, a vivência na escola e na rua de casa tinha como marca a LGBTIfobia. Aos 13 anos, Retinto já precisava lidar com os xingamentos e algumas agressões vindas de crianças vizinhas, colegas de classe e até adultos. “Comecei a me impor quando percebi que eu não era obrigada a aceitar essas agressões”

Através de um projeto social na Vila do Pinheiro,  Retinto passou a ter aulas de hip-hop e conhecer mais sobre as musicalidades da cultura negra brasileira e internacional. Seu interesse pelo carnaval surgiu quando, ainda na época da escola, conheceu o projeto Usina de Cidadania, que atuava em Manguinhos e tinha como objetivo introduzir jovens no conhecimento das artes como dança, teatro e percussão, onde seguiu por alguns anos.

A curiosidade pela dança afro foi um motivador para conhecer novos lugares e em uma dessas oportunidades surgiu o convite para ensaiar junto do Bloco Orunmila – bloco de Carnaval que ressalta a importância da cultura afro-brasileira, apadrinhado pelo bloco do Ilê Ayê.

No início o comprometimento com os ensaios e a maquiagem das companheiras de bloco. Retinto não tinha muito conhecimento sobre maquiagem em si, mas a artista gostava de enxergar como suas companheiras de dança ficariam com alguns adereços. Foi quando aprendeu sobre as amarrações de turbante e sua importância para a Comunidade negra. 

A autoestima veio a partir daí, em contato com outras pessoas negras, de religião afro e que também eram da dança. A artesã conseguiu perceber que não estava tão deslocada quanto pensava.

“Foi um choque de realidade porque eu fazia nas meninas mas eu mesma não usava. Eu saída de casa com os panos dentro da bolsa e quando chegava na Avenida Brasil eu amarrava pra ir pros eventos. Era uó mas foi assim que aprendi a fazer um turbantão em qualquer lugar e ficar bonita na rua”, conta Retinto, que há época tinha receio do preconceito dos vizinhos e outros moradores em relação às amarrações de turbante, por causa dos casos conhecidos por agressões a pessoas de religiões de matriz africana.

“O turbante foi algo que entrou na minha vida e se tornou a minha marca registrada. E foi através dele que eu consegui me conectar com várias pessoas da minha favela”, conta a modelo e performer, que a passou a conciliar sua carreira como modelo e dançarine com os Workshops sobre amarração dentro e fora da Maré.

Em 2018 a Maré sofreu uma mega operação policial durante e um dos focos da operação foi próximo ao Espaço Infantil Éder Carbonera, na Vila do João. O ato impactou a vida de dezenas de crianças e funcionários que estavam na escola durante a incursão e presenciaram os disparos. Na mesma semana Retinto foi chamada para dar uma atividade sobre a população negra com as crianças e teve a ideia de contar uma história enquanto os ensinava a amarrar um turbante. “Eu contava a história de dois coleguinhas que estavam afastados e precisavam se encontrar. Foi muito interessante fazer essa atividade nesse momento porque as crianças estavam muito abaladas com o que aconteceu e essa Foi a minha forma de conseguir dialogar com eles sobre o racismo e também sobre a estética negra”, conta a artista, que pontuou o sucesso da atividade entre os mini crias e a vontade de continuar produzindo contos, histórias e outros materiais sobre o racismo à brasileira, que também converse  com as crianças da favela. 

Inspirada nos turbantes e adereços que começou a construir para os desfiles dos blocos afro, a artista transformou algumas ideias em peças complementares para as roupas utilizadas pelas suas companheiras de dança, criando as Viseiras. Enfeitadas com pedras de búzios, palhas e outros elementos afro referenciados, as peças, que são leves e criativas, trazem referências da cultura africana.

A partir das ideias desenvolvidas para as Viseiras surgiram as suas primeiras headpieces ou Cabeça, como prefere chamar. As Cabeças são peças inspiradas na simbologia da coroa em diferentes culturas, elas trazem cores elementares e outras referências da cultura negra têm ganhado destaque em ensaios fotográficos e em performances de artistas negros e LGBTQIA de dentro e de fora do Rio de Janeiro. Recentemente, a Cabeça Hórus foi prêmio da DeVeras Ball, evento que aconteceu no final de agosto deste ano, no Museu da Maré. O evento,  promovido pela Casa de Laffond reuniu a Comunidade Ballroom Rio, uma cena artística criada e movimentada por pessoas negras e LGBTI+, que nasceu em Nova York entre os anos 30 e 40 e tem sido popularizada no Brasil desde 2015, através de batalhas de dança como vogue femme e old way.

A  comunidade artistica do Rio de Janeiro tem protagonistas de diversas favelas, inclusive da Maré, com lendas como a Legendary Imperatriz Lua Brainer 007, que é uma travesti negra cria da Nova Holanda e Legendary Kill Bill, que é bicha preta cria do Parque União. O evento teve como tema principal uma homenagem a Jorge Laffond e contou com sete categorias de performance, canto e dança, além da categoria face, que tem o objetivo de convidar pessoas a performarem para o público e os jurades a face mais bonita.

“Foi forte! Eu acredito muito nos artistas que tem dentro da Maré e fomentar um evento como a DeVeras Ball e poder trazer outros artistas de fora do território pro Museu da Maré, pra  contar a história do território de onde eu sou cria é muito representativo. Já até me perguntaram quando vai ter de novo.” conta Retinta, que na Ballroom tem o nome e título de Star Princess Aziza Laffond.

*Rahzel é comunicador e produziu essa reportagem para o projeto Cores Marés, do Maré de Notícias, criado com o apoio com apoio da Redes da Maré e do Fundo Positivo.