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A Maré na Olimpíada de Robótica

Grupo de estudantes está nesta temporada do Torneio SESI de Robótica First Lego League

Maré de Notícias #108 – janeiro de 2020

Thaynara Santos

Um grupo de estudantes do Ensino Médio do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, situado no Parque Maré, está se preparando para a primeira fase do Torneio SESI de Robótica First Lego League – Desafio City Shaper. A preparação é feita por meio de oficinas que ensinam os diversos usos da tecnologia e das linguagens de programação. O desafio desta edição é a City Shaper: pensar na cidade e descobrir um problema referente à sustentabilidade e à cidadania que possa ser resolvido ou amenizado por uma invenção robótica criada pelo grupo. O objetivo do torneio é aproximar os jovens da robótica ensinando valores humanos de cooperação.

A oportunidade para o grupo de estudantes mareenses surgiu por meio da coordenadora de Robótica do SESI, um dos apoiadores da Redes da Maré – organização que atua há 22 anos na Maré e mantém parcerias com o Colégio João Borges.  O técnico da equipe, Lucas Dominique e a coordenadora pedagógica Inês Di Mare explicam que as oficinas acontecem há dois meses, nas terças e sextas, após o horário escolar.  Como a primeira etapa da competição será em fevereiro, a turma seguirá na preparação no mês de janeiro. “Fomos convidados para participar dessa luta de robô, a FLL, que na verdade é muito além de uma luta de robôs, são desafios, para pensar a vida, desenvolver a convivência entre os diversos saberes e talentos dos participantes, utilizando o equipamento robótico da LEGO. Nós somos a única equipe de favela. Todo o nosso equipamento foi doado por uma apoiadora de Brasília. Nós temos as dificuldades comuns no estudo da Matemática e da tecnologia, como trabalhar programação com os jovens, mas isso faz parte da preparação. Esse projeto é muito importante, porque proporciona o contato da robótica com estes estudantes e, de certo modo, estará presente no cotidiano profissional desta geração. É bem legal, os adolescentes estão empolgados”, explicam os educadores. Os dois destacam também que a equipe de coordenação, direção e professores da escola têm sido essenciais para o desenvolvimento do projeto no Colégio João Borges.

                Na Maré, as oficinas são uma iniciativa da Redes da Maré, em parceria com o Colégio Estadual João Borges de Moraes, e fortalecem a rede de parceiros das instituições do território, valorizando a favela e seus moradores.

Torneio de Robótica FIRST LEGO League

Os jovens, liderados por dois adultos, precisam buscar soluções para problemas do dia a dia da sociedade moderna. Seguindo regras feitas especificamente para cada temporada, eles constroem robôs baseados na tecnologia LEGO Mindstorm, que devem ser programados para cumprir uma série de missões.

O torneio é formado por quatro etapas: Projeto de Inovação, em que apresentam uma proposta de solução de problemas pensando a cidade; o Design de Robôs, quando são avaliados a estética e a praticidade;  o Desafio do Robô, que são competições entre os robôs que deverão ser capazes de navegar, capturar, transportar, ativar ou entregar objetos em um tapete específico; e, por fim, o Core Values, que é uma avaliação do processo de trabalho, levando em conta a autonomia, a cooperação e o relacionamento entre os participantes, um dos pontos mais valorizados da competição.

Se a equipe da Maré for selecionada para as etapas internacionais, poderá participar de competições em outros países. A etapa final acontece nos Estados Unidos em julho de 2020. Como dizem os atletas: se o importante é competir, o fundamental é cooperar! Vamos mostrar que a favela tem valor e vibrar nesta torcida!

Saiba mais em:

http://www.portaldaindustria.com.br/sesi/canais/torneio-de-robotica/first-lego-league-brasil/

Senhoras do destino

Projeto educacional oferece novos horizontes às mulheres da Maré

Maré de Notícias #108 – janeiro de 2020

Thaynara Santos

“A rotina é complicada, você chega tarde do trabalho, vai direto dormir, depois acorda só para fazer tudo novamente. Aí chega o final de semana, tem de arrumar a casa. É muito cansativo. Então a vida passa e você não conhece as coisas, não conhece nada da rua para fora. Uma vez, arrumaram um emprego para mim em Copacabana. Eu fui, mas só tinha a passagem de ida. Tive de pedir a um senhor a passagem de volta. Ele me deu e ainda pagou um lanche para mim. Agora eu já peguei a primeira letra do meu ônibus, só me atrapalho às vezes. Eu já sabia ler um pouco, mas agora tenho outras estratégias.” A dona do relato é Luzinete Silva dos Santos, de 50 anos, moradora da Nova Holanda. A paraibana, que chegou na Maré em 1989, decidiu investir nos estudos após criar seus três filhos. Atualmente, é uma das alunas do  “Escreva Seu Futuro – Alfabetização de Mulheres da Maré”, um Projeto da Redes da Maré, com apoio da L’Oréal/Lâncome e parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As aulas são para moradoras das 16 favelas da Maré, que tenham mais de 15 anos, que nunca frequentaram a escola, não completaram o Ensino Fundamental ou declaram não saber ler/escrever. Muitas têm o desafio de conciliar formação, responsabilidades familiares, domésticas e profissionais.

Segundo o Censo Maré, apenas 37,6% dos moradores da Maré completaram o Ensino Fundamental. A maior taxa de analfabetismo se encontra entre as pessoas pretas e indígenas. Esses dados alertam para os obstáculos oferecidos pela desigualdade social e racial que afeta a favela e a periferia.

Sala de aula: um espaço de escuta e acolhimento

 O primeiro ano do projeto na Casa das Mulheres foi em 2019. A sal de aula no Parque União é formada por diversos perfis: mães, tias, avós; algumas trabalham fora e outras são donas de casa; mulheres negras, brancas, de origem nordestina ou não.

As educadoras explicam que muitos são os fatores que influenciam na decisão de tantas mulheres retornarem aos estudos, ou começarem do zero. Um deles é a vontade de pensar um pouco em si mesmas, investirem em um futuro melhor, o desejo de ingressarem no mercado de trabalho, a valorização da educação, de saber ler e escrever, que vai além da leitura de mundo. Entretanto, há obstáculos como a rotina de cuidar da família, pois muitas vezes elas são a única fonte de renda dos familiares. Luzinete, por exemplo, conta que não recebeu o apoio de familiares e amigos quando decidiu voltar a estudar. Muitos criticavam ou não entenderam a necessidade do retorno à escola aos 50 anos. “Eu nunca fui à escola; na minha época, infância era para trabalhar, meu pai não me deixou estudar. Esse tempo todo era só cuidar da casa, trabalhar e olhar as crianças. Fiz tudo o que podia pelos meus filhos, agora vou olhar um pouco para mim. Não pude terminar meus estudos e hoje em dia as pessoas não contratam alguém sem estudos. Passou um carro de som na rua divulgando o Projeto, aí eu peguei meus documentos e fui fazer minha matrícula. E é isso, estou aqui e gostei. Sei que já trouxe mais três para cá.”

A educadora Alcicleia Ramos frisa que muitos aprendizados vão além da sala de aula. “A aprendizagem não precisa ser da forma tradicional, dentro de um quadrado. Passeios a museus e espaços de lazer também são significativos para o conhecimento e o saber. As alunas têm aulas regulares, de segunda a quinta-feira e, às sextas-feiras, fazemos o planejamento da semana seguinte. Nós precisamos respeitar e entender os perfis das nossas alunas; eu não posso trazer a mesma aula ou o mesmo tema de uma mesma forma. No nosso diálogo, percebemos que muitas tinham medo de sair e conhecer outros lugares, com um forte sentimento de não pertencer àquele espaço. E isso não é bobagem, é a realidade. Por isso fizemos muitos passeios e todos de transporte público. Queríamos que esse hábito fosse criado nelas”, diz.

Uma parceria que gerou frutos

A supervisora pedagógica do projeto Edvânia Ferreira Bezerra, de 30 anos, explica  que, no município, a EJA (Educação de Jovens e Adultos) é dividida em dois blocos: a EJA I, que são os níveis iniciais, do primeiro ao quinto ano, e a EJA II, que são os níveis finais do Ensino Fundamental (do sexto ao nono ano). No Projeto “Escrevendo Seu Futuro”, a parceria é com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e, a princípio, só há a alfabetização, mas já existem parceiras para as que queiram continuar o processo de aprendizagem formal. “No fim do ano passado, conseguimos uma parceria com o CEJA Maré, Centro de Educação de Jovens e Adultos, e muitas alunas alfabetizadas serão encaminhadas para lá e darão continuidade aos estudos”, completa.

São sete turmas que acontecem em três turnos (manhã/tarde/noite) localizadas em diferentes comunidades que compõem o conjunto de favelas da Maré: Nova Holanda, Parque União, Baixa do Sapateiro, Marcílio Dias e Vila do João; e seis alfabetizadoras. Para ingressar no curso é necessário ser mulher, preferencialmente moradora da Maré e ter passado pelo Programa Integrado da UFRJ. O Projeto já teve mais de 20 turmas, só na Maré. Hoje em dia, a falta de verbas das universidades reduziu esse número, mas não à força. “Com o ‘Escreva seu Futuro’ nós devolvemos um direito negado a essas mulheres, que é o direito à Educação. E isso é muito importante para a gente. Todos deveriam ter acesso, mas por diversas questões – como uma família que não estimula os estudos, ou por necessidades financeiras – não conseguem estudar no período regular. Por isso percebemos a importância de ter o acesso ao estudo em diferentes horários, não só no turno da noite.

E os relatos das alunas confirmam isso. Por ser uma turma só de mulheres, acredito que elas se sintam mais confortáveis em se abrir nesse espaço mais acolhedor”, explica Alcicleia, que faz parte da equipe pedagógica junto com  Ana Cláudia de Araújo, Carla Beatriz Barreto dos Reis, Jaqueline Soares da Silva, Maria Cleani da Silva da Costa, Jessica da Costa Pinheiro, Edvânia Ferreira Bezerra (UFRJ), Ana Paula Abreu Moura (UFRJ) e  Alessandra Pinheiro (Redes da Maré).

Coordenadores do curso, representantes da Redes da Maré e L’Oréal junto com as formandas – Foto: Douglas Lopes

Saiba mais em: http://redesdamare.org.br/br/info/48/projeto-escreva-seu-futuro

Pintores: temos muitos por aqui

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A Maré tem muitos moradores que se dedicam à arte da pintura. São telas, quadros, pinturas nas paredes e letreiros que colorem o dia a dia

Maré de Notícias #108 – janeiro de 2020

Hélio Euclides

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo… e com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo… Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel, num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu…” Esses dois trechos da música Aquarela, composição de Toquinho, Vinicius de Moraes, G. Morra e M. Fabrizio, retratam numa uma metáfora a infância, adolescência, vida adulta e terceira idade, por meio da pintura. E na Maré não são poucos os moradores que colocam sua emoção na tela, transformam uma vida que poderia ser em preto e branco num presente bem colorido.

Diversos pintores influenciaram o mundo da arte, como Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Jean-Baptiste Debret, Vincent Van Gogh, Leonardo da Vinci e Salvador Dalí. Por inspiração de muitos desses, Edson Vital, de 72 anos, estudou a História da Arte e vive dos seus quadros. Desde a adolescência, deixava as matérias de lado para desenhar na escola. Na época, eram histórias em quadrinhos. Edson concluiu o Ensino Fundamental e logo depois um curso por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro. E não parou por aí: fez outro curso, desta vez presencial de um ano, na Escola de Belas Artes, em 1988 – seu xodó, do qual mostra, com orgulho, sua carteira escolar.

Edson mostra com orgulho sua carteira da Belas Artes – Foto: Douglas Lopes

Os seus primeiros quadros expostos foram no muro da Escola Municipal Tenente General Napion, na saída da Ilha do Governador, e foram todos vendidos. Hoje tem quadros fora do território brasileiro, um em Angola e outro no Paraguai. Mas até chegar lá não foi fácil, mas valeu a pena. O morador da favela Roquete Pinto, na Maré, que já fabricou sapato Nauru (feito de camurça com solado de borracha) e bonecos de bola de gude, sabe bem sobre o atual ofício. “O pintor precisa ter o conhecimento do desenho, para fazer o esboço. Na pintura é importante saber o que se faz, se é realismo, surrealismo ou cubismo. Esse último me fascina, pelas formas geométricas”, comenta. 

 A esposa Inácia Lima é sua maior incentivadora. “Acho muito bom quando ele sobe para a laje, liga o rádio e, com a música a tocar, coloca toda a sua arte na tela”, revela. Edson também faz cópias de quadros conhecidos, como Mona Lisa e, às vezes, coloca detalhes pessoais. “Cada tela tem a sua história, um tema. Gosto de estudar a história dos artistas, como Leonardo da Vinci que inventou o paraquedas e o helicóptero. Me emociona é pintar o real, gosto de movimento, com técnica de sombra, dobra de roupa, luz e relevo”, detalha. Ele lembra que ser artista não é barato, já que um bom pincel custa 20 reais. A tela também é muito cara, por isso muitas vezes utiliza madeira. Mas ele não desiste da arte. “Não paro de pintar, acho que está no sangue”, conta.

Uma vila colorida

Um atelier em plena Rua Catorze, conhecida como a principal da Vila do João, um dos locais mais movimentados da Maré, onde passam pessoas indo e vindo do trabalho: esse é o local escolhido por Afonso Carlos, de 66 anos, para criar suas obras de arte, um pintor ao ar livre. Esse ambiente eufórico fascina o artista, que acaba pintando de quatro a cinco quadros por dia. A grande maioria é composta de natureza, praias e verde. Ele nunca fez curso, acredita que é um dom de Deus.

Afonso Carlos em seu atelier na Vila do João

Tudo começou no período de infância, quando fugia da escola para fazer desenho de letra japonesa. Por isso, só terminou o curso primário. Mas o talento acompanhou a sua vida. Contudo, Carlos fez outras atividades como segurança da Linha Vermelha e pescador. Seu retorno à arte foi fazendo quadro em madeira, mas sobre a pintura ele diz:”É com o que criei meus filhos, com dinheiro da pesca e da pintura. Agora quero passar a profissão para frente. Tem um neto de 6 anos que mostra um dom para trabalhar com pincel, chora para pintar”, conta. Carlos usa para pintura tinta plástica Acrilex, e se destaca por reciclar madeiras e criar seus próprios quadros.

Ele fica emocionado quando lembra que a pintura o tirou do caminho errado e diz que seus quadros já chegaram nos Estados Unidos e em Portugal. “Isso me faz chorar de emoção, ter quadros no exterior”, resume.  Mas é na Maré que ele se realiza. “Falam que há um artista na comunidade. As escolas daqui me chamam para expor e ainda vendo para os pais e professoras. O que me deixa feliz é a o sorriso dos clientes, de orelha a orelha”, comenta. 

Um artista da tesoura e dos pincéis

Por meio de suas pinturas nos quadros e telas, Zezinho retrata a sua infância, na cidade de Reriutaba, no Ceará – Douglas Lopes

Num salão de cabeleireiro na Baixa do Sapateiro, poucos imaginam que além de um artista dos cabelos, há também um talento da tela. José Carlos de Medeiros, de 53 anos, é mais conhecido por Zezinho. Ele nasceu em Reriutaba, no Ceará e desde criança gosta de pintar. Na escola, já fazia os primeiros traços. Mas na sua vida atuou como garçom e depois retornou para a pintura. Isso foi possível após um curso, onde aprendeu o bê-á-bá dos pincéis. Depois disso, em 2012, fez exposições com inspirações no Nordeste. 

Ele se divide entre as pinturas dos cabelos e dos quadros. “Tenho gratidão por cuidar dos cabelos; é algo que me sustenta, e também trato como uma arte pintar cabelos. Quando pinto a tela também sou feliz; a tinta tem cor e passa um sentimento”, diz. Os clientes do salão admiram o artista. “A primeira coisa que chama a atenção no salão são os quadros. Algumas telas retratam a fé do nordestino, acho muito bonitas, um trabalho perfeito”, conta Ramires da Silva, morador da Baixa do Sapateiro.

No destaque do salão, a pintura do Cristo Redentor sangrando. “Esse sangue representa a violência; fiz em homenagem às crianças que morreram em virtude de tiros no Rio de Janeiro. Mas na maioria das vezes pinto com pensamento no meu Ceará. Sinto a calma de lá”, revela, olhando para o quadro que mais gosta, que junta três paisagens do povoado onde foi criado, Campo Limpo. 

Um artista sem quadro

De uma vida difícil surge a superação. Nilton Sérgio, de 48 anos, morador da Praia de Ramos, teve sua história marcada pela separação dos pais e assim teve de abandonar a escola. Uma tia o ensinou a ler, mas pouco sabe escrever. Para tentar uma vida melhor, em 1991, saiu de João Pessoa e veio para o Rio. Na cidade, não encontrou domicílio, dormia na Ceasa e depois em um banheiro da antiga Praia de Ramos. Sua vida começou a mudar quando começou a olhar o trabalho de um amigo e aprendeu a técnica de cartazista. “Sou agradecido à minha esposa e à pintura, foram elas que me tiraram da dependência química”, conta.

Um diferencial de Sérgio é pintar letras sem saber ler. “Por isso, preciso de um texto pronto para escrever na parede, faixa ou no cartaz. Me sinto feliz com a profissão de cartazista; o desenho das letras, quando pinto, me sinto abrindo a mente e cheio de vida”, conclui. Além das letras, o artista ajuda a colorir a favela, porque também desenha personagens infantis como Hulk, Pica-pau, Piu-piu e Os Simpsons.

10 anos do Maré de Notícias: Jornal feito pra comunidade

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Jornal que teve o nome escolhido por moradores, hoje tem novos distribuidores e é usado como ferramenta pedagógica nas escolas da Maré

Maré de Notícias #108 – janeiro de 2020

Dani Moura

Em dezembro de 2009, nascia, ainda sem nome, o jornal comunitário da Maré feito para e pelos mareenses. O nome, que foi sugerido por dois moradores, passando pelas pautas, reportagens, fotos, edição, revisão e diagramação, é pensado para quem mora, vivencia ou trabalha na Maré. O objetivo de informar, formar, criar opiniões críticas, reforçar a potência da favela e também denunciar violações de direitos tem sido cumprido ao longo desses anos. E não foi, e nem é fácil, fazer isto. São 16 favelas com especificidades diferentes, com desejos e demandas diferentes. 

Estreitando laços

Uma das estratégicas para a comunicação ser efetiva entre os moradores e o periódico é o número de WhatsApp para receber denúncias e sugestões de pauta (97271-9410). Mas não para por aí. A distribuição, desde setembro de 2019, ganhou força com frequentadores do Espaço Normal. O lugar é referência no atendimento à população de rua, ex-usuários e usuários de crack e outras drogas, pessoas que conhecem meticulosamente todos os becos, ruas e vielas que compõem as 16 favelas da Maré.  A equipe é mista, formada por moradores da Maré, frequentadores do Espaço Normal e também tecedores da Redes da Maré. Douglas Thimoteo Pereira Lima é um deles. “Acho muito bom contribuir em prol da comunidade, distribuindo o Jornal, conversando com os moradores, trocando ideias com cada um, andando pela comunidade… a gente acaba vendo o quanto nossa comunidade é bonita”

Nova equipe de distribuidores é formada por moradores da Maré, frequentadores do Espaço Normal e tecedores da Redes – Foto: Arthur Viana

A distribuição começa todo 1º dia útil do mês e conta com 12 distribuidores, além do Douglas, que leem a Edição do Jornal antes de começarem o trabalho de campo, que leva em torno de cinco dias. Ao fim desse tempo, há uma reunião com toda a equipe quando as sugestões dos moradores ouvidas pelos distribuidores são compartilhadas.

Inúmeras reportagens vieram dessas reuniões. Uma deles chamou a atenção da equipe de jornalistas: “Beco, ruas e vielas: a importância e a história de seus nomes”, do repórter Hélio Euclides, na Edição de novembro de 2019, foi usada como ferramenta pedagógica para uma turma do Ensino Fundamental da Escola Municipal Tenente General Napion, localizada na Avenida Almirante Frontin, n° 50, em Ramos. A professora Aline Pereira Botelho, de 39 anos, já conheceu o Jornal em 2017, quando começou a dar aulas na Maré: “De lá pra cá, tenho alterado minha prática devido à escuta impressionante das vozes desses alunos e ao fato de a escola receber o Jornal Maré de Notícias.” Mas foi em 2019 que um projeto pedagógico nasceu. “Iniciei um Projeto que me acompanharia durante todo o ano letivo (…) com a questão do pertencimento territorial, pois eles não se viam como moradores da Maré e, para isso, as reportagens sobre o nosso território foram importantíssimas como a ‘Becos, ruas e vielas. A importância e a história de seus nomes’. O reconhecimento de algumas pessoas que estavam no Jornal, o nome de algumas ruas que os estudantes conheciam e o fato de eles já identificarem o Jornal, pois alguns o recebem em casa, enriqueceu ainda mais nossa aula”, conclui a docente.

Aline enviou uma carta à redação doJornal, na qual agradece a equipe. “Gostaria de agradecer, utilizando o meu lugar de fala como educadora, pelo grande recurso pedagógico que o Jornal se tornou para mim e para a turma 1203. A turma confirma o entusiasmo. “É muito legal estudar, porque isso vai ajudar o nosso futuro. Achei muito legal ver as coisas que a gente não vê.”, diz Isaac Gomes da Silva, de 8 anos de idade

Além da Maré

Aline teve o apoio do Diogo Nascimento, professor de Educação Física da escola, que utilizou o Jornal em seu doutorado, para explicar a importância da construção de novas narrativas sobre o território periférico, valorizando as potências locais. “O Jornal é imprescindível, ainda mais no contexto multidisciplinar, porque ele traz o protagonismo para a Maré. A Maré é um mundo. E eu acho legal trabalhar essa identidade desde cedo com as crianças, porque eu mesmo que nasci na Maré só fui criar essa identidade já na faculdade. Sempre neguei o território, falava que morava em Bonsucesso. É legal ver crianças tão pequenas sentirem orgulho dessa identidade mareense”, diz o professor, que é morador do Morro do Timbau, na Maré.

 Na escola da Maré, Diogo usou a agenda cultural do Jornal, um dos destaques na sala de aula dos pequenos. “A agenda cultural do Jornal possibilita à criança ter acesso a espaços que muitas vezes ela nem sabia que existiam, com a divulgação de cursos, apresentações, eventos, e isso proporciona um entendimento melhor sobre o que é a Maré, o Jornal ajuda a construir o Bairro Maré, diferente de outros veículos que reforçam os estigmas de não lugar. Isso muda a perspectiva do lugar que eles moram. O Jornal é uma ferramenta importante, por ser algo físico, ser impresso e trazer tantas imagens, que podem ser usadas como práticas pedagógicas no cotidiano da escola. Ele ajuda a mudar a visão sobre um lugar que é marcado com essa vivência negativa, com todos esses estigmas.”

Paulo Freire e Maré de Notícias 

 São 50 mil exemplares que são distribuídos nos domicílios, nas associações de moradores, organizações não governamentais, instituições que atuam no território, além das 48 escolas da Maré. 

Na Escola Municipal Paulo Freire, na Vila do Pinheiro, uma matéria eletiva foi criada, inspirada no Maré de Notícias. No início, o Jornal era esmiuçado pelos professores e alunos que trabalhavam a oralidade, a interpretação de texto, análise crítica pelas reportagens apresentadas. “O Jornal traz outro suporte de leitura; a gente faz uma leitura crítica e isso forma um senso crítico incrível! Lemos, a cada dia, uma notícia e o Jornal tem um papel importantíssimo, porque falam do local onde eles moram, traz notícias que interessam e isso causa impacto na vida deles”, diz Mônica Bezerra do Nascimento Pinheiro, professora do 5° ano da escola.

O impacto foi tamanho que, hoje, na eletiva, os alunos têm o seu próprio Jornal, editam e produzem conteúdo audiovisual. O repórter fotográfico do Maré de Notícias, Douglas Lopes, foi convidado a ir à escola e ficou impressionado com o trabalho dos alunos. “Muito importante para eles aprenderem com as notícias sobre as favelas, sobretudo sobre os espaços que eles têm afeto, que são os locais onde moram.  Eles já produzem, pelo celular, notícias, entrevistam pessoas, editam o material e veiculam na internet. E ninguém melhor pra falar sobre o território do que os próprios moradores.” 

Outra professora da mesma escola, confirma: “O Jornal é muito relevante e eles gostam muito, porque é uma notícia muito próxima a eles. Falar sobre o espaço deles, mesmo que eles já conheçam, é muito legal, diz a professora Adriana Bezerra do Nascimento Pinheiro, também do 5º ano. Ela destaca a Edição de número 100, que teve uma reportagem especial com um mapa de toda a Maré. “Na Edição 100, do mapa, eles amaram!  Esse Jornal está guardado lá!  Se ver dentro do Jornal é a parte mais positiva!”

Portanto, vida longa ao Maré de Notícias!

Página da edição número 100 do Maré de Notícias com o mapa das 16 favelas que a professora Aline guardou

Nilcéa Freire

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A Redes da Maré lamenta profundamente o falecimento de Nilcéa Freire ocorrido no último sábado, 28/12/19, em sua casa. Ela deixou um legado de luta incansável em defesa da democracia, dos direitos humanos e, especialmente, de defesa dos direitos das mulheres e das minorias.

Nilcéa Freire enfrentou muitas adversidades em nome do combate às desigualdades no Brasil. Durante a ditadura civil-militar (1964-1685) foi ameaçada e teve de se exilar no México entre 1975-1977. De volta ao país, Nilcéa continuou sua luta em prol da redemocratização e da construção de uma sociedade mais justa.

Médica, professora e pesquisadora da UERJ, Nilcéa foi a primeira mulher a se tornar reitora dessa universidade em 2000. Em sua gestão implementou o sistema de cotas que contribuiu para democratizar a UERJ ao dar a oportunidade para alunos negros e pobres de frequentar a universidade. Não é exagero afirmar que se o sistema de cotas conseguiu consolidar-se como uma das políticas públicas mais importantes do Rio de Janeiro e serviu de exemplo para todo o Brasil isso se deve, em grande parte, à coragem e à persistência de Nilcéa.

Ela também foi ministra nos governos Lula entre os anos de 2004 e 2011, sendo responsável pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Durante sua gestão foi realizada a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2004, e o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Nilcéa foi fundamental também para a criação da Lei Maria da Penha, do disque 180 e do Pacto de enfrentamento da violência contra a mulher. Todas essas ações consolidaram sistemas de proteção para as mulheres e colocaram o debate sobre a violência e o desrespeito aos direitos das brasileiras, em especial das mulheres pobres e negras, na ordem do dia.

Feminista, intelectual, pioneira e engajada na vida política e social, Nilcéa também atuou junto a instituições da sociedade civil, como a Fundação Ford, e desenvolveu uma série de ações que fortaleceram o campo democrático na luta contra todas as formas de violência e desigualdades.

Nilcéa foi uma mulher que contribuiu de modo singular para o trabalho da Redes da Maré quando nos convidou a ser parte do FOPIR (Fórum Permanente pela Igualdade Racial), uma articulação de instituições que lutam, de forma coletiva, contra o racismo. Por isso e por tudo que foi dito acima, apesar da imensa tristeza, agradecemos imensamente seus ensinamentos e seu inestimável legado.

Nos solidarizamos com os amigos, familiares e com todos e todas que admiravam o ser humano extraordinário e a lutadora incansável por um mundo melhor e mais justo. Nilcéa vive dentro de cada uma e um!

Tecedoras e tecedores da REDES da Maré.