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“Sambas, sambas-enredos e orixás formaram minha identidade com a negritude”

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Criadora da BR Brasil Show, uma rádio on-line de samba que já conta com mais 29 milhões de acessos, a jornalista Cláudia Alexandre fala ao Maré de Notícias Online sobre sua vida, sucesso e relação com o samba e a cultura afro-brasileira

Thaynara Santos

Lançada em 2018, a rádio on-line BR Brasil Show tem uma programação voltada exclusivamente para samba e cultura afro-brasileira e já alcançou milhões de pessoas. A informação é da plataforma Similar Web, responsável pela análise de tráfego de sites. Nesta entrevista, a jornalista paulistana Cláudia Alexandre, criadora da rádio, fala um pouco sobre sua trajetória acadêmica e no mundo do samba, como mulher negra e periférica. Claudia é doutoranda, mestre e pós-graduada em Ciência da Religião, e estuda a relação do samba e as religiosidades afro-brasileiras.

MN: Quando escolheu trabalhar como radialista?

Claudia: Escolhi o jornalismo desde cedo e sou extremamente apaixonada por minha profissão. Me formei aos 21 anos. Meu primeiro emprego foi exatamente meses após eu ter me formado. Fui indicada para trabalhar num programa de rádio, Rádio Gazeta. E, quando cheguei lá, era um programa de samba. Rede Nacional do Samba, com Evaristo de Carvalho. Um homem negro, que fez história no rádio, principalmente por colocar no ar, por 45 anos, o mesmo programa. Quando eu entrei pela primeira vez num estúdio de rádio, já para ser a repórter de um programa de samba, não imaginei que estava entrando em um caminho para encontrar parte da minha história. Enfim, para uma recém-formada, negra, jornalista, posso dizer que uma mão preta, de um homem negro, me colocou nessa trilha profissional, no universo machista do samba e das escolas de samba, onde me especializei, e estou trabalhando até hoje, na perspectiva da complexidade e do fato social que o samba representa.

MN: Qual sua ligação com o samba?

Claudia: Pra quem não sabe, há uma relação bem importante do negro com o universo do rádio, não só como veículo de comunicação, mas de mercado profissional. Uma bela e única pesquisa sobre o negro e o rádio, feita pelo professor João Baptista Borges Pereira (Cor, Profissão e Mobilidade – o Negro e o Rádio de São Paulo) mostra que entre 1942 e 1964, o rádio e o futebol eram espaços, que, à parte do ambiente doméstico, acolhia o profissional negro. Muito mais homens que mulheres. A maioria como cantores e operadores técnicos. A presença da mulher negra era observada na plateia dos programas de auditório das rádios-novelas e programas ao vivo. Elas eram maioria entre as empregadas domésticas, babás e donas de casa, que, animadas, gritavam e cantavam. Imaginem que é daquele tempo a expressão “macacas de auditório”, um estereótipo que marca racialmente e pejorativamente aquelas mulheres, a maioria negra. Macacas de auditório! Hoje desenvolvo pesquisas que avançam com o tema e busco revisitar todos os registros e a produção sobre a presença de valores negros africanos, em especial, das expressões culturais e da religiosidade, que romperam um sistema de desigualdades, opressão, perseguição, o racismo para se transformar a partir de valores civilizatórios negro-africanos. Essa é uma das razões para que eu voltasse em 2012 para a Academia, depois de quase 20 anos, militando no samba, e encontrasse na Ciência da Religião uma forma de dizer que o samba é muito mais. Não é só o ritmo, a música! Revisitando a história do samba, eu encontro a história de construção de identidade, de ressignificações, de valorização e manutenção de valores ancestrais de matriz africana.

MN: Quando começou a trabalhar com rádio?

Claudia: Exatamente em 1988, ano do Centenário da Abolição, o que foi muito simbólico. Fui contratada para ser repórter do programa Rede Nacional do Samba, do Evaristo de Carvalho. Além de ter sido meu mestre. Ele me ensinou a ser uma repórter de rádio, escrever para rádio e transformar o samba em notícia. Valorizar a história do povo negro jornalisticamente, coisa que até hoje nos ressentimos quando falamos de inserção das pautas negras pela mídia. Naquele ano, o Evaristo, que era também colunista do jornal A Gazeta Esportiva, me indicou para ser repórter especial do Caderno dos 100 Anos. Foi o melhor começo que uma jornalista recém-formada e negra poderia ter. Entrevistei as pessoas mais importantes da época sobre o tema racismo, cultura negra, ações afirmativas. Falei com políticos e personalidade, e muita gente do samba. Da periferia ao Centro. Foi minha base profissional. Fui efetivada também na redação do jornal. Gostaram tanto do meu trabalho, que consegui o meu primeiro registro em carteira. Passei a entrevistar sambistas e artistas para a editoria de Variedades, mas continuei na equipe do Evaristo. Aí vieram os convites: passei pelo jornalismo da Rádio América, Tropical FM, Imprensa FM, 105 FM e, até que em 1992, fui contratada pela Transcontinental FM para integrar a equipe da emissora, que tinha decidido mudar a programação e tocar exclusivamente, [durante as] 24 horas, samba na programação. Foram cinco anos em primeiro lugar! A maior audiência do rádio de São Paulo. Me tornei ainda mais conhecida, tendo já o público e o reconhecimento conquistado, desde o início tendo atuado ao lado do Evaristo de Carvalho. Me desliguei da rádio depois de um episódio de racismo de um diretor de promoções, que assumiu o departamento e iniciou uma desqualificação do meu trabalho e de um outro locutor negro. Preferi me desligar. Se fosse hoje, teria enquadrado ele na lei de racismo e assédio moral. Passei por outros veículos de comunicação como a TV da Gente (que o Netinho de Paula dirigiu em 2005); SBT (como repórter do Jornal da Massa) e hoje tenho uma plataforma digital, chamada BR Brazil Show, que é um hub de comunicação, que desenvolve a rádio online BRZ, a digital do samba.

MN: E sua Rádio online BR Brasil Show? Quando decidiu falar sobre samba e cultura afro-brasileira? Qual foi sua reação quando sua produção atingiu milhões de pessoas?

Claudia: Eu estou muito feliz! É um universo muito complexo, saio de uma atuação de 30 anos no universo analógico para o digital, as mudanças são a todo momento. Tive que profissionalizar toda a minha equipe e intensificar o estudo, voltado para estratégias nesse novo universo. Tenho o desafio de lidar com um produto de tantas tradições e fundamentos e inseri-lo num universo. Mas está sendo desafiador. É resistência, militância em tempo real. As performances da plataforma também são medidas de várias maneiras e, depois de um ano de operação, tivemos esta grata notícia: de que hoje já estamos próximos de 30 milhões de acesso no nosso site www.brbrazilshow.com.br . O que tem facilitado é essa brasilidade que vendemos para o mundo. Esses acessos vão de encontro ao “z”, que se refere ao Brasil sendo ouvido lá fora e ao nosso slogan que é “a digital do samba”, uma inspiração para dizer que temos um DNA da ancestralidade que o samba representa, como a digital das nossas mãos e pés; e também ao universo digital que ocupamos. Hoje quem navega no site ou ouve a rádio pelo aplicativo e pelas mídias sociais, com certeza já está vivendo o futuro, com a nova forma de vivenciar o samba.

Maré de Notícias: fale um pouco sobre sua história de vida e formação?

Cláudia: Sou paulistana, nascida em um bairro periférico, fim de linha, do Distrito de Butantã, divisa com Taboão da Serra, região sudoeste da Capital. Sou Filha de um militar, de uma família de dois filhos, meu irmão mais velho nasceu exatamente 11 meses antes de mim. Sou mãe da Rubiah, hoje ela tem 21 anos, e é formada em Gastronomia. Essa configuração de família negra na década de 60 fez toda a diferença na minha construção como pessoa. Se por um lado foi muito seguro, para uma base sem traumas domésticos, também foi um problema pra mim. Sou eu mais uma mulher negra, que se construiu numa solidão cruel, desde fora, mas de muitas referências negras desde dentro. Uma casa própria, bem-estruturada, não houve nenhuma limitação financeira, emocional, pelo contrário. Na minha casa eu tive uma mãe maravilhosa (que nos deixou aos 45 anos de idade, após um infarto fulminante!), que nos deixou um legado de coragem, inteligência e espiritualidade. Meu pai, um provedor, dentro do seu tempo, junto com minha mãe, me transferindo todo um gosto pelo samba e pelo axé, já que ele é um iniciado no candomblé. Eu nasci e cresci com essas referências. Fui batizada na Umbanda aos 16 anos e mais tarde, na nação do meu pai biológico, como herdeira da ancestralidade, com a missão de continuar o que ele iniciou. Sou uma filha de Oxum. Essas referências, essa ligação com a ancestralidade, dentro de casa era minha janela para olhar um mundo que eu não encontrava na escola, que era meu caminho para o mundo externo. Eu acredito que a educação, assim como os meios de comunicação, colaboram profundamente para manter o olhar de inferioridade em direção ao povo negro e, em especial para a mulher negra. Sambas, sambas-enredos e orixás, formaram minha identidade com a negritude.

Comando de Operações Especiais (COE) realiza quarta operação na Maré em 20 dias

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Moradores, que estavam à porta de suas casas, foram surpreendidos por tiros de fuzil disparados bem próximo a eles; há relatos de violações como homicídio, cárcere privado, violência física e psicológica e invasão de domicílio. 

A segunda-feira na Maré amanheceu, mais uma vez, ao som de tiros. Hoje (2), por volta das 4h40, enquanto alguns moradores saíam para trabalhar, crianças se preparavam para ir à escola e jovens ainda curtiam a madrugada, Policiais Militares do Batalhão de Ações com Cães (BAC), do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e do Batalhão de Polícia de Choque (BPChq) entraram, segundo moradores, atirando nas favelas Parque União, Rubens Vaz, Parque Maré e Nova Holanda. Duas unidades de saúde e 18 escolas não funcionaram hoje.

Os frequentadores de um pagode, no Parque União, uma das 16 favelas que compõem a Maré, também foram surpreendidos com abordagem violenta dos policiais nas primeiras horas do dia. Moradores afirmam que os agentes de segurança pública iniciaram um tiroteio ainda durante o evento.  Comerciantes tiveram que deixar seus produtos para trás e pessoas, que correr, para se protegerem.

Durante todo o dia, a equipe do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré esteve em contato com o Ministério Público do Estado do Rio para denunciar o não cumprimento da Ação Civil Pública da Maré, que entre outras coisas, determina a presença de ambulâncias e viaturas com câmeras e GPS´s durante as incursões policiais na Maré. A equipe identificou, pelo menos, dois caveirões circulando por essas regiões sem a presença de ambulâncias, e policiais a pé pelo território. A equipe do Maré de Direitos, que mantém o  Whatsapp (21) 99924-6462 para atendimento, recebeu denúncias de invasões de domicílios e violência física contra jovens no Parque Maré.

Segundo informações do Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), dois jovens feridos na operação deram entrada ao hospital nesta manhã, por volta das 11h30. No final da tarde, o HGB confirmou a morte de um jovem. Ele foi morto na rua 29 de janeiro, no Parque Maré. Uma adolescente de 14 anos foi colocada dentro de um carro por policiais militares encapuzados na passarela 10 (entrada para Rubens Vaz e Parque União). A jovem relatou ter sido mantida em cárcere privado, sofrido violência física e psicológica por cerca de duas horas, sendo liberada a um quilômetro de onde os agentes de segurança pública a pegaram.

Na rua Carmelita Custódio (antiga rua 2), na Nova Holanda, policiais novamente realizaram disparos de fuzil próximo a um grupo de moradores. Homens, mulheres e crianças estavam na porta de casa quando foram surpreendidos pelos tiros e questionaram a ação dos policiais. 

A Assessoria de Comunicação da Polícia Militar informou que drogas e armas foram apreendidas. Quatro pessoas foram presas e encaminhadas a 21°DP (Bonsucesso). Foram mais de 13 horas de operação. A Redes da Maré foi informada do término da incursão policial às 19h. Mas até o momento, a Assessoria da Polícia Militar não apresentou uma explicação sobre motivos de uma operação tão longa que avançou para noite.

Brasil e Angola no palco da Maré

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“Hoje não saio daqui”, o novo espetáculo da Cia Marginal, estreia em dezembro no Parque Ecológico, na Vila dos Pinheiros. A peça mobiliza atores e músicos de origem africana para tecer diálogos sobre um tema sempre complexo: o respeito às diferenças

Maré de Notícias #107 – Dezembro de 2019

Flavia Veloso e Nicolas Quirion

Em Luanda, capital de Angola, “Marginal” é o nome de uma célebre via, moderna e luxuosa, de frente para o mar. Como se fosse uma Avenida Atlântica. Mas aqui, na Maré, a “Marginal” é uma jovem Companhia de teatro que quer provocar uma reflexão sobre a cidade a partir da sua periferia. Pode uma palavra ou uma ideia mudar de sentido ao atravessar o oceano? Que mal-entendidos surgem do encontro com o diferente? Quantas semelhanças há entre jovens brasileiros moradores da Maré e os filhos dos imigrantes que se estabeleceram no Rio de Janeiro nas últimas décadas? Essas são algumas das “bolas” levantadas pelo novo espetáculo da Cia Marginal: “Hoje não saio daqui”.

A ideia de montar uma peça, reunindo o elenco habitual da Companhia e jovens atores de origem africana, teve origem há vários anos. “A gente resolveu pensar sobre a xenofobia e o racismo crescentes no mundo, sobre a dificuldade na relação com o outro. Começamos a pensar sobre esses temas a partir da comunidade angolana da Maré”, lembra a diretora, Isabel Penoni.

Foto © Douglas Lopes

De fato, a Maré é conhecida por acolher um número significativo de pessoas oriundas de Angola. Segundo o Censo Maré, eles seriam atualmente em torno de 200 pessoas, residindo no conjunto das 16 favelas. Muitos deles chegaram há mais de 20 anos, fugindo dos terríveis conflitos que assolavam suas terras. No Brasil, os primeiros tempos não foram fáceis. No entanto, hoje em dia, a cultura desses imigrantes se enraizou profundamente na Maré. Como todo bom mareense sabe (ou deveria saber), é lá na “esquina dos angolanos” (Rua C-11 com B-3, nos Pinheiros) que é possível experimentar a melhor comida africana do Rio de Janeiro e dançar ao ritmo do kizomba e do kuduro até altas horas da noite.

“Quando cheguei na mata (Parque Ecológico), não pensava de jeito nenhum que faria uma peça de teatro ali, tranquilamente, porque eu chorava muito todos os dias em que pisava lá. A mata, para mim, parecia a África, eu via nossa casa.” O depoimento é de Ruth Mariana, uma dos artistas de origem angolana que estarão na peça. Ela também escreveu todas as letras das canções que estão presentes no novo espetáculo da Cia Marginal. Mesmo aos 34 anos, a atriz ainda se emociona quando se lembra dos seus países de origem: a Angola, onde nasceu; e o Congo, onde passou a infância e vivenciou a guerra. Ela explica que reviver esses momentos nas artes cênicas se tornou uma terapia. “Mexe com a emoção, então eu choro muito. Estamos no palco, atuando, mas choro de verdade até voltar para o camarim. Meus colegas de profissão perguntam: ‘Ruth, o que houve?’, e eu digo que eles nunca vão entender, mesmo que eu explique.”

O Parque Ecológico virou o palco perfeito para se falar de territorialidade, um dos temas propostos pela peça. Assim como Ruth se viu projetada na infância, o ator e um dos fundadores da Companhia, Wallace Lino, lembra que a mata conta a história da Maré, e explica que isso foi crucial para o projeto: “Tivemos o território e a memória como bússolas e principais pilares do nosso trabalho.”

Link para o evento no Facebook: http://www.facebook.com/events/2593538500732663/

Van Gogh também é coisa de criança

Alunos do 1º ano do Ensino Fundamental Osmar Paiva Camelo criam, recriam e estudam, a partir da vida e da obra de um dos maiores pintores de todos os tempos

Maré de Notícias #107 – Dezembro de 2019

Thaynara Santos

O pintor holandês Vincent Van Gogh foi estudado durante um semestre letivo e sua vida e obras serviram de inspiração para a exposição produzida por professores e alunos do 1º ano do Ensino Fundamental. O trabalho foi uma parceria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Escola Municipal Primária Osmar Paiva Camelo, do Campus Maré. A ideia para a exposição surgiu durante uma conversa com as crianças sobre moradia. O objetivo das professoras foi entender a forma como as crianças se relacionavam e enxergavam o lugar onde moram.

Foto: Douglas Lopes

Na exposição, foram apresentados autorretratos, painéis e pinturas produzidas pela turma. “Autorretrato”, “A noite estrelada”, “Doze girassóis em uma Jarra” e “A casa amarela” foram algumas das obras estudadas que as crianças mais gostaram. Nathan Isaque, um dos alunos-artistas, explica: “Nós fizemos ‘A casa amarela’ e a ‘Noite Favelada’. Foi muito legal!” As professoras explicaram que o nome na pintura é “Noite estrelada”, mas ele prefere o nome que deu. Alícia Beatriz Lima, colega de classe do Nathan, apresentou orgulhosamente o desenho que fez de Van Gogh e diz que foi sua “parte preferida na exposição”. 

Aline Marvila e Nathalia Alho contam que os alunos de História da Arte da UFRJ foram essenciais para o planejamento artístico do projeto. Quinzenalmente, de agosto a novembro, os graduandos ofereciam oficinas de arte para os alunos. Além disso, as crianças conheceram um atelier na UFRJ. Aline explica que o objetivo do projeto é ampliar os horizontes dos alunos que, muitas vezes, se restringem ao local onde vivem, e que o ensino das matérias do plano escolar não foram afetadas:  “As crianças estão em fase de alfabetização e aprenderam Matemática e Português de forma lúdica, a partir da vida de Van Gogh, e os processos do projeto, como arrecadação de dinheiro e recolhimento de tampinhas de PET”. Detalhe: foram recolhidas mais de 8 mil tampinhas, utilizadas no painel “Noite estrelada”. 

“Durante o projeto, a gente sempre valorizou o trabalho deles, sempre falamos que eles fazem coisas lindas, para que se sentissem valorizados e especiais. A participação dos pais foi muito importante no projeto, eles embarcaram em todas as loucuras (risos). Toda semana, falamos para eles sobre os eventos que estão acontecendo próximos daqui – muitos, gratuitos. Tem a Lona da Maré, tem bibliotecas, o Centro de Artes da Maré (CAM), entre outros equipamentos. Queremos que os alunos saibam que têm outros horizontes, novas possibilidades”, explica professora Aline Marvila. 

Catador, com muita honra

O garimpo que transforma lixo em materiais recicláveis

Maré de Notícias #107 – Dezembro de 2019

Hélio Euclides

O lixo é um grave problema no mundo moderno. Enquanto a natureza trabalha com perfeição transformando tudo o que não é mais utilizado em algo que pode ser útil, o ser humano, cada vez mais, produz lixo, que vai para aterros ou lixões e só polui o meio ambiente. Se aprendesse com a natureza, saberia que resíduo pode ser transformado em nova matéria-prima para retornar ao ciclo produtivo. Enquanto a humanidade descobre, aos poucos, essa máxima da natureza, por necessidade e/ou consciência, surge um personagem: o catador, trabalhador fundamental nesse círculo de reciclagem.

 No programa “Lixo & Cidadania”, criado em 1998 por iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), os catadores são reconhecidos como verdadeiros agentes ambientais. Eles são responsáveis por coletar 90% de todo o material que as indústrias de reciclagem operam no Brasil. Permitem, por exemplo, que o País esteja no primeiro lugar do ranking mundial de reciclagem de latas de alumínio.

Sergio Ricardo, ambientalista, lembra que o Brasil tem uma política nacional de resíduos sólidos, pela Lei 12.305, de 2010, que estabelece o papel importante para as cooperativas de catadores na gestão dos resíduos sólidos. “Uma pena que o Brasil continue enterrando toneladas de resíduos, todos os dias, nos aterros sanitários e lixões. O País não desenvolveu uma economia de reciclagem; o resultado é que os catadores estão empobrecidos, trabalhando em situação muito precária”, conta.

A Lei a que Sergio se refere menciona, no parágrafo 4º, o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis. Já no Capítulo V, artigo 42, diz que o Poder Público pode instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, à iniciativa de implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda – o que na prática ainda está muito longe de ser cumprido.

Julia Rossi, bióloga e coordenadora do projeto “Maré Verde”, percebe que os catadores não têm o trabalho valorizado. “Tinha de ter um programa da Prefeitura e do Estado que valorizasse os catadores, pois é uma forma de geração de renda, em especial para a população pobre. Essa atividade traz um bem para todo mundo, que é a reciclagem. Eles sabem distinguir os materiais, levam para as separadoras”, diz.

Catadores são vítimas de preconceito da sociedade e constantemente associados ao problema do lixo, sendo que, na verdade, são a solução. “Uma pena que hoje quem ganha mais dinheiro são as empresas de reciclagem. Esse recurso tinha de ser distribuído de forma mais igual; para reverter isso, teria de ter um processo de valorização”, explica Julia. Ela avalia que o ideal é a implantação de política pública voltada para os resíduos sólidos.

Uma profissão em discussão

Em 2010, foi apresentado um Projeto de Lei que regulamentava a profissão de catadores de materiais recicláveis. O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis foi contra e reivindicou o veto, feito dois anos depois pelo Governo federal. A justificativa foi que a medida criaria obstáculos para o livre exercício da catação, excluindo a maior parte dos catadores que hoje não possuem todos os documentos exigidos. Outro ponto é que as atividades relacionadas aos catadores já estão definidas na Classificação Brasileira de Ocupações, permitindo o reconhecimento e o registro desses profissionais.

Catador é sinônimo de reciclagem

Felipe Virgens: para o catador, regulamentação da profi ssão tornaria mais fácil a prestação do serviço | Foto: Douglas Lopes

Segundo o aplicativo Cataki, que conecta catadores, no Brasil existem 800 mil profissionais. Um deles é Felipe Virgens Pereira, de 25 anos, sendo três deles no “garimpo”, como gosta de mencionar o seu trabalho. O catador, antes, foi ajudante de pedreiro e fazia manutenção de placas de trânsito. Só que uma tragédia mudou sua vida: após a morte da mãe e briga com irmãos, foi morar na rua e, hoje, sobrevive da profissão.

“Tem dia que é da caça e outro do caçador”. Na vida do catador também é assim. Felipe comenta que tem dia que tira só o da comida, mas em outros a safra é boa. “O lixo é luxo. Já achei 850 reais, duas alianças de ouro, celular e sapateira grande, tudo no lixo. Quando saio da Maré vou para Botafogo, porque lá o povo é compreensivo, dá biscoito e roupas. Certa vez, ganhei um freezer de uma madame. Mas onde gosto de garimpar é no Parque União e Nova Holanda”, conta.

Para os catadores, os melhores produtos para a venda são o alumínio, o cobre e as garrafas PET. “O ferro-velho compra pela metade do preço, são eles que ganham mais dinheiro. Eu entendo que seria bom a regulamentação da profissão, pois ficaria mais fácil para prestar serviço e conseguir se organizar. Hoje, o ideal é participar de uma cooperativa, que ia ajudar muita gente”, sugere. Felipe diz que a concorrência é grande e acredita que a Maré tenha mais de 300 catadores.

“Muitos moradores são parceiros. Uns separam o material e deixam para a gente. Outros são bons de coração e nos convidam para almoçar. Mas também há preconceito e humilhação. Certa vez, tomei tapa por mexer no lixo”, lembra. Ele entende que realiza uma coleta seletiva informal. “Se não fosse a gente e os garis, a cidade seria muito pior”, conclui.

Uma coleta seletiva ainda distante

No site da Prefeitura, a Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb) informa que atende a 115 bairros com a coleta seletiva. O material recolhido é destinado a 25 núcleos de cooperativas de catadores credenciados pela Comlurb. Eles recebem gratuitamente materiais, fazem a separação e comercializam os recicláveis com empresas especializadas, gerando emprego e renda para os cooperativados.

A coleta seletiva chega bem próxima à Maré. Ela é feita na Rua Teixeira Ribeiro, do outro lado da Avenida Brasil. Algo que também ocorre com a Rua Gerson Ferreira, deixando a Praia de Ramos fora da coleta. Em Marcílio Dias ainda é pior, pois além da Rua Lobo Junior, só o Mercado São Sebastião, que fica ao lado, recebe a coleta. Em maio de 2017, o Maré de Notíciasperguntou à Coordenadoria de Comunicação Empresarial da Comlurb se havia alguma previsão de um dia se fazer uma coleta seletiva na Maré. A resposta foi positiva, que existiam estudos para a implantação, mas passados dois anos e meio, o projeto não saiu do papel.

Novo Ensino Médio vai contra a Educação

A previsão de chegada das Diretrizes Curriculares do Ensino Médio é 2022, quando se iniciará o processo de implementação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e avalia-se que o desmonte da educação também avance

Maré de Notícias #107 – Dezembro de 2019

Flávia Veloso

Terceira e última etapa da Educação Básica, o Ensino Médio – antigo 2º grau – dedica seus três anos a aprimorar os conteúdos aprendidos nas duas etapas anteriores: a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. O objetivo é desenvolver no estudante o exercício da cidadania e assegurar-lhe uma formação de base para que ele avance na vida profissional e em estudos posteriores, conforme prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). 

  • 36% dos jovens de 19 anos não concluíram o Ensino Médio
  • 62% desses jovens não frequentam mais a escola

(Movimento Todos Pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua/IBGE, 2018)

Aprovada em fevereiro de 2017, a Lei nº 13.415 é o documento que determina a nova estrutura do Ensino Médio brasileiro. As medidas desta reforma valem para as redes pública e privada, e tratam, de maneira geral, de dois pontos principais: carga horária e componentes curriculares. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), o objetivo do novo modelo é garantir a oferta de educação de qualidade ao jovem e aproximar as escolas de sua realidade, do ponto de vista social e do mercado de trabalho.

A carga horária no Novo Ensino Médio

O Novo Ensino Médio amplia a carga horária das escolas de 2.400 horas para, pelo menos, 3.000 horas totais, garantindo até 1.800 horas para a formação geral básica, com os conhecimentos previstos na BNCC, e o restante da jornada para os itinerários formativos. As escolas têm até março de 2022 para se adaptar a essa mudança.

O que é a BNCC?

Aprovada em dezembro de 2017, a Base Nacional Comum Curricular é o documento que determina a estrutura das grades curriculares dos estudantes em todo a Educação Básica, ou seja, tudo aquilo que eles irão estudar.

A BNCC é uma formação comum a todos os estudantes, e é composta por itinerários formativos, por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, a saber:

I – Linguagens e suas tecnologias;

II – Matemática e suas tecnologias;

III – Ciências da Natureza e suas tecnologias;

IV – Ciências Humanas e Sociais aplicadas;

V – Formação técnica e profissional.

Itinerários formativos: são as quatro áreas da BNCC + Formação técnica e profissional.

A ideia é que o aluno estude as competências gerais da BNCC e escolha um itinerário formativo. O ensino da Língua Portuguesa e da Matemática será obrigatório nos três anos do Ensino Médio e incluirá, obrigatoriamente, estudos e práticas de Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia. O Inglês será obrigatório no Ensino Médio (a Lei nº 13.415/2017 torna o Inglês obrigatório desde o 6º ano do Ensino Fundamental até o Ensino Médio). Os sistemas de ensino poderão ofertar outras línguas estrangeiras se assim desejarem, preferencialmente o Espanhol.

O Ensino Médio precisa mudar?

Em um vídeo de campanha para o Novo Ensino Médio, o MEC afirma que o Ensino Médio precisa de mudanças, pois o mundo não é mais o mesmo. Como justificativa, o Ministério da Educação diz que a escola se tornou desinteressante para o jovem, e que isso se reflete em dados de evasão escolar e indicadores de conhecimento em Língua Portuguesa e Matemática.

Escolas que não recebem materiais, 40 crianças dentro de uma sala de aula, professores que precisam trabalhar em várias escolas para conseguir uma renda razoável, falta de merenda escolar, funcionários terceirizados que chegam a receber menos de um salário mínimo: estes são aspectos levantados por Roberto Marques, professor do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF); ele questiona se o problema da educação refere-se mesmo aos indicadores de aprendizagem, que apontam se o aluno realmente absorveu aquele conteúdo ou se o professor não ensinou direito.

Para o professor Roberto, dizer que o Ensino Médio precisa mudar com base em indicadores vende uma ideia de que há algo errado na educação, e não nas condições precárias em que se encontra o sistema educacional. Passar essa ideia dá a entender que o MEC não está fazendo o que quer, mas o que é necessário ser feito, e isso acaba mascarando uma intenção do verdadeiro sentido da reforma, que pode ser negativo.

As entrelinhas dos itinerários formativos

Segundo a Lei da Reforma do Ensino Médio, a obrigatoriedade da oferta dos itinerários não é contemplada, o que permite interpretar que as escolas não precisam disponibilizar conteúdos nas áreas de Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas e Sociais aplicadas e Formação técnica e profissional. Outro ponto é que somente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática serão obrigatórias nos três anos, enquanto as demais áreas de conhecimento podem ser distribuídas à maneira que os dirigentes municipais e estaduais decidirem, ou seja, permite que nem em todos os anos essas áreas sejam aplicadas.

Quanto às competências gerais, Marques dá um exemplo de como podem ser oferecidas na prática: “Se falta professor de Biologia, não necessariamente o secretário estadual irá tentar preencher a lacuna com um profissional desta área, uma vez que a Base Nacional Comum Curricular determina que Biologia está dentro das competências específicas de Ciências da Natureza e suas tecnologias, que abrangem Biologia, Física e Química. Portanto, qualquer uma das outras duas disciplinas pode vir a substituir a primeira.”

Ainda de acordo com o professor, não se resolve desemprego com escola e, sim, questões de ordem econômica e estrutural, incentivando a sociedade a produzir e adquirir riquezas. “O grande desemprego hoje, no mundo, não é um problema, é uma consequência de escolhas políticas e econômicas. Então, não é um problema e, sim, um sucesso”, afirma. 

On-line: a diferença entre ensino e educação

Uma das maneiras de se organizar metodologias, conteúdos e formas de avaliações no Novo Ensino Médio será por meio de ensino on-line (Educação a Distância). Usar desse recurso pode não gerar o resultado que a Constituição prevê para o povo: o de promover educação, se levarmos em consideração as definições de ensino (como construção de conhecimento) e educação (oferta de conhecimento e aparato para que o indivíduo desenvolva capacidades intelectuais, morais e físicas). O uso da Educação a Distância (EaD) está limitado em até 30% da carga horária para os cursos noturnos; 20% para os diurnos e em até 80% para a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Em que pé está a rede pública?

O Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) Professor César Pernetta, um dos três colégios estaduais da Maré, localizado no Parque União, ainda aguarda recomendações e diretrizes da Secretaria de Estado de Educação sobre as mudanças, mas é esperada uma posição para o próximo ano. De acordo com o coordenador pedagógico da instituição, Rodrigo Malvar, os alunos e a maioria dos professores ainda não têm conhecimento da medida. Mas o coordenador não faz boas previsões para o novo sistema: “Algumas matérias só são oferecidas durante o Ensino Médio, o que refuta o argumento de que os alunos teriam autonomia para escolher a partir de suas aptidões e preferências. Como saber se tem ou não aptidão para algo que ainda não conhece? Vemos também a clara desvalorização das áreas do saber, uma vez que as únicas disciplinas nominalmente obrigatórias são Português e Matemática. Acredito que este novo sistema vá aprofundar as desigualdades no ensino de qualidade e restringir ainda mais o acesso dos alunos da rede pública ao Ensino Superior”, expõe Malvar. 

Futuro Sombrio

A Emenda Constitucional nº 95, aprovada no fim de 2016, foi criada pelo Governo federal para limitar investimentos públicos, nas áreas de saúde e educação, por 20 anos. No início de 2017, o então presidente Michel Temer sancionou a Lei nº 13.415, que trata sobre a reforma do Ensino Médio. Tais medidas mostram que a educação pública vem sofrendo ataques que configuram um projeto de desmonte. No atual Governo federal, este processo continua em curso, com mais de 6 bilhões de reais em cortes de verbas, além do programa “Future-se”, que entrega ao setor privado a autonomia financeira e pedagógica das universidades públicas federais.

O jovem está preparado para o futuro, mas pode não haver futuro digno, desabafa Roberto Marques. “Qual o futuro de um País em que as pessoas estão, cada vez mais, vivendo em situação de rua? Qual o futuro de um País em que a polícia usa helicóptero como plataforma de tiro nas favelas? Não há itinerário formativo que vá dar conta deste futuro.”

A escola preparando para o desemprego

Desemprego em 2019

12% de desempregados no País

25,8% de desempregados entre 18 e 24 anos

42,2% de desempregados entre 14 e 17 anos (idade em que se já pode trabalhar, desde que em condições legais)

(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua, 2º trimestre de 2019)