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O resultado dos confrontos armados na Maré

Saiu o Boletim de Segurança Pública na Maré de 2017

Daniele Moura

Desde 2016, a Redes da Maré monitora os dados referentes à Segurança Pública e seus desdobramentos, nas 16 favelas que fazem parte do território da Maré. Em 2017, esse monitoramento incluiu os confrontos entre grupos armados, além dos agentes de Segurança Pública. Foram coletados dados de todas as operações policiais (todas as polícias e Forças Armadas) e também dos grupos armados rivais, de janeiro a dezembro de 2017.  Esses dados foram reunidos de várias formas: por uma equipe da Redes da Maré, constituída por moradores em sua maioria,  que fica de plantão  quando acontecem os confrontos armados; pelo relatos de moradores que procuram o serviço de  orientação jurídica oferecido pela Organização para denunciar violações de direitos; por reportagens publicadas na Imprensa  e pelas informações dadas pelas assessorias de comunicação das Polícias Militar e Civil e das Secretarias Municipais de Saúde e Educação da cidade do Rio de Janeiro.

A pesquisa registrou 41 episódios de operações policiais (8 a mais que 2016), 41 confrontos entre grupos armados e 26 eventos com disparos sem confronto, ou seja, promovidos por um único grupo.

 Os abusos

Os dados mostram que houve abusos cometidos pelos policiais. Um exemplo ocorreu em março de 2017, quando o roubo de um veículo de um policial civil na Ilha do Governador fez com que, no dia seguinte, sábado, 25 de março, dia da Campanha de Vacinação contra a Febre Amarela, alguns policiais se juntassem para ir à Maré tentar recuperar o veículo.  A consequência foi um intenso confronto armado, que deixou três mortos e um ferido, além da interrupção das atividades de vacinação nas Unidades de Saúde. Não há informações oficiais sobre a ação nem sobre quem autorizou a intervenção policial. Consultadas, as Polícias Militar e Civil declararam desconhecer o planejamento de qualquer operação policial naquele dia. Esse é um fato gravíssimo, porque revela o descontrole do Estado e de suas forças policiais, que agem à revelia ou com a conivência de agentes públicos, realizando ações sem qualquer respaldo legal.

As consequências

Os confrontos armados, tanto os provocados por intervenção policial quanto por grupos armados, resultaram em 42 mortos e 57 feridos. Foram 35 dias sem aulas e 45 dias sem funcionamento de Postos de Saúde.  Profissionais de Educação e da Saúde já foram atingidos por disparos de arma de fogo enquanto trabalhavam.  E o número de casos de violação de direitos quase dobrou em relação a 2016, passando de 28 para 52 pessoas. Na mesma proporção, o número de relatos de violência também cresceu, passando de 32, em 2016, para 67, em 2017. Esses dados foram coletados a partir do atendimento do Maré de Direitos. Imaginando que nem toda pessoa que sofre violência ou que tenha algum direito violado vai buscar atendimento, esse número, apesar de assustador, pode ser maior, pois tudo indica que há subnotificação.

A duração das operações também interfere no cotidiano das comunidades. Doze operações policiais, durante 2017, ultrapassaram 8 horas de duração. As operações, além do desgaste da população, interferem na Economia local, pois, ao encerrar as atividades mais cedo ou com intervalos ao longo do dia, o comércio local é afetado pelos confrontos, sem contar o número menor de dias letivos e a interrupção dos serviços de assistência à saúde nos Postos da Prefeitura.

Os confrontos armados são a maior causa morte na Maré. E um dos objetivos desta pesquisa foi, justamente, chamar a atenção para a incapacidade de o Estado proteger a população. Esses dados confirmam que o Estado, com a complacência de parte da sociedade, considera que as favelas não têm garantidos direitos básicos, como os direitos à segurança e à vida.

O Rio sob Intervenção Federal

Tudo o que você precisa saber sobre a chegada das Forças Armadas na cidade

Jorge Melo – 05/03/2018

As perspectivas não são nada boas para as populações das favelas e periferias para o ano de 2018. O Rio de Janeiro está sob Intervenção Federal. O Decreto presidencial, de 17 de fevereiro, foi aprovado pelo Congresso.  O interventor, Walter Braga Netto é um general do exército e já nomeou o novo secretário de Segurança Pública do Rio, Rubens Nunes. O Ministro da Justiça, Torquato Jardim, mostra o caminho que essa intervenção deve seguir. Dentro da lógica da Guerra às Drogas, ele afirma que “tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola”.  Essa declaração, dada em 20 de fevereiro ao jornal “Correio Braziliense”, é contrária a proteção da criança e do adolescente prevista em Lei pela Constituição Federal e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Mandados coletivos

O Ministro da Defesa, Raul Jungmann, fez uma proposta tão ou mais preocupante. Ele defendeu a utilização de mandados de busca e apreensão coletivos.  Ao apresentar a proposta Jungmann foi claro: “em lugar de você dizer rua tal, número tal, você vai dizer, digamos, uma rua inteira, uma área ou um bairro. Naquele lugar inteiro é possível que tenha um mandado de busca e apreensão”. A proposta enfrentou uma ampla rejeição da sociedade civil, juristas, Ordem dos Advogados do Brasil, e a pressão dos movimentos sociais, das ONGs e até de entidades internacionais.

A Maré já conhece o mandado de busca e apreensão coletivo. Em 2014, por iniciativa do então Governador Sérgio Cabral, a Justiça do Rio de Janeiro autorizou a Polícia Civil a fazer revista nas casas dos moradores das favelas Nova Holanda e Parque União. O Decreto de Garantia da Lei e da Ordem, GLO, foi solicitado pelo Governador à Presidenta Dilma Rousseff, que o concedeu. Pouco depois, as Forças Armadas ocuparam a Maré, lá permanecendo 14 meses. A ocupação custou aos cofres públicos mais de 520 milhões de reais e os fatos comprovam que o resultado foi nenhum.

O uso dos mandados coletivos não é inédito e já ocorreu em outras situações no Rio de Janeiro. Em agosto de 2017, a Justiça autorizou que a polícia entrasse em qualquer casa na comunidade do Jacarezinho e em quatro favelas vizinhas. A medida foi suspensa por um desembargador.

O que diz a lei

A legislação brasileira não prevê a figura do mandado coletivo, mas de diferentes tipos de mandados. O Código de Processo Penal prevê, em seu Artigo 243, que o mandado deve “indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador” e “mencionar o motivo e os fins da diligência”. Já a Constituição Federal, em seu Artigo 5º, afirma que a casa “é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro ou, durante o dia, por determinação judicial”.   Outra questão preocupante: está em vigor a Lei 13.491/2017, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Presidente Michel Temer, que transfere à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões, como por exemplo, a ações ligadas à intervenção. Se um militar matar um civil durante uma operação será julgado pela Justiça Militar e, não, pela Justiça Comum, como era anteriormente. Quem já sofreu uma ocupação militar como o Conjunto de Favelas da Maré tem razões de sobra para temer.

O interventor, General Walter Braga Neto, presta contas apenas ao Presidente da República. Ele é agora o responsável pelas polícias militar e civil. E tem poder para investigar e prender integrantes dessas polícias. Essa medida extrema teve a concordância do Governador Luiz Fernando Pezão. E a primeira decisão tomada depois de decretada a intervenção foi o afastamento do Secretário de Segurança, Roberto Sá.   A Redes da Maré está vigilante e pronta para prestar atendimento aos cidadãos que tiverem seus direitos violados pelo WhastApp (21) 99924 6462.

 

Literatura feminina com as marcas da Maré

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A história por trás de Andreza Jorge e Sara Alves, no “Seis temas à procura de um poema”, da FLUP

Maria Morganti

A Maré literária e feminina marca presença nas páginas do livro Seis temas à procura de um poema” com escritos de duas moradoras: Andreza Jorge e Sara Alves. A publicação foi o resultado do processo de formação da FLUP Pensa 2017, que realizou seminário sobre temas como machismo, privilégios e racismo.  Este processo precede a Feira Literária das Periferias, que existe desde 2012. As poesias de Andreza e Sara foram selecionadas após um ciclo de formação e reuniões com uma banca. Dos 100 inscritos, além de Andreza e Sara, outros 48 escritores também tiveram suas obras publicadas. Jedai da Marcílio Dias e Matheus de Araújo, do Parque União, também estavam entre os selecionados.

“São duas poetas absolutamente diferentes. Sara tem um trabalho memorialístico, vive em uma Maré idílica, com vida comunitária. A poesia da Andreza tem sensualidade, feminilidade, fala de um corpo que é dela”, analisa Julio Ludemir, um dos fundadores da FLUP.

Em comum, as duas têm a paixão pela escrita, desde sempre; ler muito e serem crias da Maré. Tanto Andreza quanto Sara nasceram na Favela Nova Holanda e viveram ali grande parte da sua vida.

O meu lugar

Com 50 anos, a autora Sara Alves, sem perder o ritmo, que talvez tenha herdado da mãe baiana, Marina Alves, enaltece a rotina dos trabalhadores, relembra o crescimento da Maré, as festas na favela e finaliza com aquilo que afirma com força e olhos arredondados e expressivos: “por que eu não posso gostar do lugar onde eu moro? Por que as pessoas que não conhecem onde eu moro falam do lugar se elas não sabem? Tem violência? Tem. Mas onde não tem? Você tem quase que brigar pra dizer que aqui tem artistas, professores, gente honesta”.

Sara conta que Ê Vila de Gente é o seu poema favorito, mesmo já tendo publicado, em 2013, Movimentos, pela Editora Multifoco, graças ao incentivo de uma amiga, Cláudia Santos. Sara conta que vive sendo abordada por gente que diz que já recebeu bilhetinhos dela, sempre escritos à mão: “Não gosto de escrever no computador. Mas também não posso ver uma folha em branco que eu adoro”.

Uma estreia promissora

Na poesia de Andreza o mais marcante é o “lugar de fala da mulher” que, segundo ela, “também é territorial, mas ultrapassa”. Com 29 anos e mãe de uma menina de 3, a jovem é uma das recordistas em poesias no livro da FLUP, que foi sua primeira experiência com a publicação. “Sempre trabalhei com projeto social, escrevi um monte de coisas, mas nunca, nada dentro desse lugar mais artístico. Então foi muito lindo assim pra mim”.

Com o trabalho comparado à poesia da mineira Adélia Prado, importante referência literária no Brasil, Andreza diz que sempre escreveu muito para falar sobre sentimentos que a atravessam, mas que de uns tempos pra cá a narrativa foi se politizando. “De maneira geral, minha escrita sempre foi sobre sentimentos, sensações, relações cotidianas. Mas de um tempo pra cá, fui crescendo, fui politizando de alguma forma essa minha escrita, então ela é muito feminista e tem um recorte racial bem específico”.

Sobre a vontade de publicar um livro só dela –  já tem até um acervo –  Andreza conta que não vai em frente por um sentimento que é mencionado várias vezes em uma das poesias do livro, LAROIÊ, o medo. “Eu fico trabalhando, fazendo outras coisas, sempre brinquei, dizendo que quando crescesse seria escritora, mas nunca tinha levado a sério. Talvez por medo de dar errado, pode ser. Porque é uma coisa que eu gosto muito de fazer” – confessa

A boa notícia é que os leitores que quiserem ler a poesia de Andreza têm a chance de conseguir um exemplar autografado. A Redes de Desenvolvimento da Maré recebeu 150 exemplares, e realizará no próximo dia 22 de março, quinta-feira, a partir das 16h30, na Biblioteca Popular Lima Barreto, na Nova Holanda, um evento de lançamento com a presença das autoras. É só chegar!

Lançamento na Maré: livro “Seis temas a procura de um poema” 2017, FLUP

Local: Biblioteca Popular Lima Barreto – Rua Sargento Silva Nunes, 1012 – Nova Holanda.

Horário: 16h30

O 8 de Março ainda é um Dia de Luta

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Num País extremamente desigual, as mulheres ainda sofrem com a violência

Ana Paula Lisboa

Criamos o calendário não só para agrupar e dividir os dias, os meses e os anos, mas também para ter marcos civis e religiosos das culturas. Assim, a gente pode comemorar ou chorar: aniversários, festas, mortes. Somos seres que precisam ser lembrados para a celebração e também continuar na luta.

O 8 de março, por exemplo, Dia Internacional da Mulher, é uma data que surgiu em homenagem a mulheres trabalhadoras operárias do Século XIX. Cada vez mais, a data tem deixado de ser um dia para receber rosas dos homens, mas para conquistar mais respeito na luta por  direitos. Em nosso contexto, o direito mais importante é  o direito à vida e à segurança. O Brasil ocupa 5o lugar no ranking mundial de violência contra a mulher.

Em 25 de novembro celebra-se (e marcha-se) o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 35% das mulheres do mundo já sofreram violência física ou sexual, praticada por um parceiro íntimo. No Brasil, o número sobe para 70%.

Em 7 de agosto de 2006 entrou em vigor a Lei Maria da Penha. O nome é uma homenagem à mulher que, durante 23 anos, sofreu violência doméstica praticada pelo marido, que tentou assassiná-la duas vezes e a deixou paraplégica.

A Lei Maria da Penha

O caso de violência e falta de justiça de Maria da Penha foi tão o assustador que o Governo brasileiro se viu obrigado a criar um novo dispositivo legal que trouxesse maior eficácia na prevenção e punição da violência doméstica e familiar. Isso aconteceu depois que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou a finalização do processo penal do então ex-marido de Maria da Penha, a realização de investigações sobre as irregularidades e os atrasos no processo e a reparação simbólica e material à vítima.

A Lei descreve como violência doméstica qualquer tipo de ação ou omissão que cause dano físico, psicológico, moral, patrimonial ou sexual à mulher dentro do ambiente doméstico, familiar ou em uma relação íntima de afeto.

A Lei fez mudanças na Constituição e penaliza agressões feitas por qualquer pessoa que more com a agredida, da família ou tenha uma relação próxima. Não precisa ser o marido, a Lei enquadra outra mulher (se for uma relação homoafetiva) pai, mãe, filha, filho, irmãos, namorado, amigo, colega.

As agressões não precisam ser físicas, considerando também ameaças, constrangimento, humilhação, vigilância, perseguição, chantagem ou qualquer outro tipo de atitude que cause dano emocional e diminuição de autoestima ou que queira controlar suas ações. Além disso, qualquer conduta que obrigue a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual sem sua vontade, que a impeça de usar método contraceptivo, que force gravidez, aborto ou prostituição. E vai ainda mais longe, criminalizando a retenção ou destruição de qualquer bem ou dinheiro da mulher. Calúnia, difamação ou injúria. Apesar dos índices ainda altos de violência, um legado desses abusos foi, quase 12 anos depois,  o aumento das denúncias.

 

As Delegacias da Mulher abriram novos horizontes

Desde 6 de agosto de 1985, data da abertura da primeira Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), em São Paulo, as mulheres têm uma instância de Segurança Pública especializada na investigação de crimes de violência doméstica e sexual. A inauguração foi, não por acaso, cinco anos após as primeiras pesquisas que trataram desse tipo de violência.

A partir da Lei Maria da Penha, o papel das DEAMs foi ampliado e elas passam a agir não só na punição, mas também em ações de prevenção e proteção às vítimas. Deixou de valer o ditado que em briga de marido e mulher nem a polícia deveria meter a colher.

Na teoria, tanto a Lei quanto as DEAMs são o mundo ideal, mas em todo o Estado do Rio de Janeiro são somente 15 delegacias.

Isso explica os dados do Atlas da Violência, divulgado em 5 de agosto de 2017: entre os anos de 2005 e 2015 houve um aumento de 7,5% na taxa de homicídio de mulheres no Brasil.

Em 9 de março de 2015, entra em vigor a Lei que coloca o assassinato de mulheres como crime hediondo: a Lei do Feminicídio. O feminicídio é caracterizado quando a mulher é assassinada justamente pelo fato de ser mulher. Nessa análise entram crimes cometidos com requintes de crueldade, como mutilação dos seios ou outras partes do corpo, que caracterizam o gênero feminino.  Assassinatos cometidos pelos parceiros ou familiares, dentro de casa. Também casos em que o assassino mata por entender que a mulher está ocupando um lugar exclusivo do homem, geralmente na profissão.

Mais assustador ainda é quando se lança a lupa racial nos dados: enquanto a taxa de violência sofrida por mulheres não negras caiu 7,4% , o número para mulheres negras aumentou 22% no mesmo período.

Será então que na favela é diferente?

A pesquisa “Cidades Saudáveis, Seguras e com Equidade de Gêneros: Perspectivas Transnacionais sobre Violência Urbana contra Mulheres”, realizada entre novembro 2016 e dezembro de 2017, analisou as dinâmicas e percepções da violência contra a mulher nas comunidades do Complexo da Maré. Entrevistou, em suas casas, 801 moradoras, de quinze das dezesseis comunidades,  e partiu da premissa:  “generalização da violência machista e sexista contribui para que algumas mulheres culpem as vítimas, reproduzindo a violência que as oprime”. Além disso, que “as características da vida urbana no Brasil (violência dos grupos armados) contribuem para a perpetração de violência baseada no gênero.”

Ainda segundo a pesquisa, a “agressão física, associada à violência psicológica,  foi a forma mais recorrente em 34% das respostas; 15% das mulheres indicaram a palavra agressão de modo não específico; 14% definiram violência como a composição de múltiplas formas de agressão, violação e maus-tratos; 10% não responderam. Essa incidência expressiva de não resposta chama a atenção, considerando que a violência é um evento com o qual, necessariamente, entramos em contato, seja como autor, vítima ou espectador.”

Em contraponto, inaugura-se, em novembro de 2016, a Casa das Mulheres da Maré, decorrente do projeto “Maré Sabores”, conduzido, há oito anos, pela Redes de Desenvolvimento e que oferece oficinas de qualificação profissional em Gastronomia para mulheres.

A Redes da Maré atendeu e identificou em seus anos de atuação no território números alarmantes de mulheres vítimas de diferentes tipos de violência e concluiu que umas das soluções era a geração de renda e aumento de escolaridade, assim como apoio jurídico e psicológico.

A Central de Atendimento à Mulher [Disque 180] atendeu a mais de 1 milhão de denúncias em 2016 e, assim, percebe-se que a criação de leis para a punição dos agressores foi importante, mas é preciso que  sejam ampliadas as redes de apoio e atendimento às mulheres que denunciam. Também campanhas de educação altamente difundidas na TV e Internet,  ações de prevenção que envolvam crianças e adolescentes, meninos e meninas, para que as próximas gerações não difundam os mesmos pensamentos e ações.

Se não for assim, continuaremos a ter dias como o 14 de janeiro de 2017, em que o corpo de Silmânia Maria de Lima, a Simone, cabeleireira na Nova Holanda, foi encontrado dentro de um valão e a família segue até hoje sem respostas.

Quem casa quer casa. Mas quem cuida?

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A luta pela igualdade nos afazeres domésticos

Jorge Melo

As pesquisas são variadas, mas a conclusão é uma só: as mulheres conquistaram o direito de trabalhar fora, de construir uma carreira, chegar a postos de direção, ganhar dinheiro, mas isso não significa contar com o apoio efetivo dos companheiros nas tarefas domésticas, com raras exceções.  As mulheres brasileiras trabalham, em média, mais de 7 horas por semana a mais que os homens, devido à dupla jornada, que inclui tarefas domésticas e trabalho remunerado. Apesar de a taxa de escolaridade das mulheres ser mais alta, a jornada de trabalho também é.

Esses dados constam no Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, do Ipea, divulgado em junho de 2017. O estudo tem como base a PNAD, Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, do IBGE, feita com base em séries históricas de 1995 a 2015.

A opinião dos homens

Fábio Monteiro tem 36 anos e não acha que exista tanta diferença assim. Ele é solteiro, motoboy, formado em História, mora na Vila do Pinheiro, na Maré, e entende que existem situações diferentes: “se as mulheres trabalham mais em casa, os homens trabalham mais na rua; o que determina a divisão das tarefas é a necessidade”. No caso de motoqueiros como ele, “a grande maioria, para completar a renda, enfrenta dois turnos de trabalho, um durante o dia e outro à noite e não pode dividir as tarefas da casa com a mulher, mal têm tempo de dormir”. Fabio diz também que as tarefas de manutenção da casa são sempre desempenhadas pelos homens, como consertar o encanamento, a rede elétrica, retocar a alvenaria: “outro dia fui convidado para bater uma laje e não tinha mulheres pegando no concreto; infelizmente esse tipo de trabalho não é visto como trabalho doméstico”.

Segundo a terapeuta familiar, Malu Palma, com mais de 20 anos de experiência atendendo casais, a questão da divisão das tarefas domésticas, algumas vezes injusta com as mulheres, pode afetar a relação. Brigas sobre este tema são bastante comuns e só costumam deixar de ser quando se aprofunda a escuta e melhora a comunicação entre o casal”.

O exemplo vem de casa

Bruno Silva, motorista, de 35 anos, é uma exceção. Morador da favela Nova Holanda, na Maré, é casado com Renata, de 34, e tem dois filhos adolescentes. “Começamos cedo”, diz ele sorrindo, ao lado de Renan, de 18 anos, e Breno, de 14 anos. Bruno lava, passa, limpa a casa e ganha elogios da mulher, “ele cozinha melhor que eu”.  Ele conta que a mãe tinha uma deficiência num dos braços e ele sempre ajudou. Com o tempo, foi tomando gosto pela cozinha e nunca viu problema em realizar tarefas “consideradas femininas”. E garante que cria os filhos nesse mesmo padrão, “eles resistem um pouco, são adolescentes, mas fazem de tudo; aqui cada um tem a sua tarefa”. Renata confirma: “não me sinto sobrecarregada, muito pelo contrário”. Renata é dona de um salão de cabelereiro, também na Nova Holanda, e passa muitas horas no trabalho. Ela afirma que nunca teve esse problema: “desde que ficamos juntos, dividimos todo o trabalho da casa, nunca discutimos por isso. O que acontece é que tem dias em que eu não quero cozinhar ou ele não quer limpar a casa e aí trocamos, sempre dá certo”.

 Marcos Diniz da Silva, conhecido na favela Nova Holanda como Ratão, é outro exemplo de homem que divide as tarefas com a mulher. Fotógrafo, tem 34 anos e é casado com Aline Souza, de 27, que também é fotógrafa. Os dois têm uma filha, Maya, de um ano e meio. Marcos começou a ajudar a mãe nas tarefas domésticas a partir dos sete anos de idade. “Ela trabalhava, eu tinha de ajudar. O mesmo aconteceu com os meus três irmãos, as tarefas eram divididas”. Na casa de Marcos e Aline, ele é o cozinheiro e responsável pela organização. “Ele é todo certinho, arrumado, não gosta de bagunça e coisas fora do lugar”, diz Aline. Marcos faz questão de dizer que “não faço nada demais, é o justo, eu não ajudo, divido as tarefas, é assim que tem de ser”. Aline diz que tem sorte, e que a irmã dela, Amanda, que mora em Sergipe, não conta com o mesmo apoio, “ela trabalha fora e faz tudo dentro de casa, o marido não ajuda, mas ela acha isso normal. É uma cultura que existe, principalmente no Nordeste, como se o trabalho da casa fosse responsabilidade única da mulher”.

 

Mulher também cansa

 “A expectativa moderna é que haja igualdade em tudo dentro do casamento. Todos precisamos dar conta de nossas vidas profissionais, pessoais e familiares. As rotinas individuais são duras e os serviços domésticos não têm prestígio. A falta de interesse por eles não é só masculina”, afirma a terapeuta Malu Palma. O maior envolvimento com a casa e com as tarefas domésticas acaba por afetar o desempenho das mulheres nas atividades profissionais e a imagem delas – o que se reflete na remuneração. Mesmo na Europa, onde a desigualdade salarial é menor, as mulheres ganham, em média, na mesma função, 16% menos que os homens.

No Brasil, as mulheres que têm níveis de escolaridade mais alto fazem mais tarefas domésticas desde pequenas e estão chefiando cada vez mais as famílias. Mesmo assim, elas continuam sendo desvalorizadas no ambiente de trabalho e ganhando menos que eles. É o que mostram os dados do IBGE.  Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD, de 2015, o rendimento médio dos brasileiros era de R$ 1.808, mas a média masculina era mais alta (R$ 2.012) e a feminina, mais baixa (R$ 1.522).

A história é antiga, mas pode mudar

A distinção entre meninos e meninos em relação às tarefas domésticas tem origem na família e começa cedo. Segundo a mesma pesquisa do IBGE, de cada 10 meninas de 10 a 14 anos, 7 cuidam de tarefas domésticas. Já entre os meninos, são apenas 4. Ou seja, desde crianças, vai sendo incutido na cabeças de meninos e meninas que cuidar da casa é atribuição das mulheres. Valmir Alves do Nascimento é barbeiro, tem 44 anos e há 18 anos é casado com a assistente social Cleonice. O casal tem dois filhos de 17 e 3 anos. Valmir divide todas as tarefas com a mulher, só não lava roupa, “mas nós temos uma máquina de lavar”, se apressa em dizer. O filho mais velho também executa tarefas na casa como lavar a louça e cozinhar. “Tenho visto mudanças importantes na forma de encarar estas tarefas, mas ainda há um grande número de pessoas, homens e mulheres, que consideram que as tarefas que geram dinheiro possuem maior valor, e devem geram mais regalias a quem as exerce do que qualquer outro”, afirma ainda a terapeuta Malu Palma.

Valmir lembra que na casa dos pais não fazia nada. As tarefas domésticas eram divididas entre a mãe e a única irmã. Ele e os outros dois irmãos estavam liberados do trabalho doméstico. Com o casamento, não houve escolha, a mulher trabalha muito e ele tem um horário de trabalho flexível, “o trabalho doméstico é uma coisa que não tem fim, não acaba nunca, não é justo que uma pessoa só seja a responsável por ele, além de tudo se tiver outras atividades como a minha mulher tem”.

Apesar das mudanças socioeconômicas, na visão dos homens as tarefas domésticas ainda são femininas. O Instituto Promundo reuniu resultados de pesquisas que buscaram mensurar a percepção dos homens sobre os trabalhos domésticos. Entre esses resultados, 54% dos homens concordam totalmente com a afirmação de que o papel mais importante da mulher é cuidar da casa e cozinhar para a sua família.  89% consideram “inaceitável” que a mulher não mantenha a casa em ordem. E 53% acreditam que a mulher é a principal responsável por manter um bom casamento. Portanto, há muito o que aprender com Valmir, Marcos e Bruno. Quem sabe, em pouco tempo, eles não serão mais uma exceção.

 

Bruno lava, passa, limpa a casa e ganha elogios da mulher, Renata: “ele cozinha melhor que eu” | Foto: Elisângela Leite

“Quem pintou o mundo?”

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Mais uma vítima da violência na cidade. Jeremias tinha apenas 13 anos

Maria Morganti

Jeremias Moraes, de 13 anos, estava jogando bola, no campo da Nova Holanda, na Maré, quando um Caveirão da Polícia Militar apareceu na esquina atirando. Para proteger-se, Jeremias correu para a casa de um coleguinha, que mora ali perto. A mãe do amigo ouviu quando Jeremias tocou a maçaneta. Ao abrir o portão, o choque: viu o corpo da criança no chão. Jeremias havia sido atingido nas costas por um tiro.

 Naquele dia, 6 de fevereiro, terça-feira, favelas do Conjunto da Maré, como Vila do João e Vila do Pinheiro, Morro do Timbau, Conjunto Esperança, Marcilio Dias e Nova Holanda, amanheceram com a presença do BOPE, do Batalhão de Choque e do Batalhão Especial com Cães. Mas não acabou por aí. Uma outra incursão da Polícia Militar aconteceu. Tratava-se de uma denúncia sobre integrantes da corporação que teriam sido sequestrados por grupos civis armados. A “operação surpresa” não encontrou nenhum sequestro. Mas Jeremias estava ali, atingido.

Desesperada, pedindo socorro, a mãe do amiguinho de Jeremias gritou que era uma criança e só fechou o portão quando o blindado parou e recolheu o corpo. Jeremias foi levado para o 22º Batalhão, na Linha Vermelha, e colocado na ambulância do Corpo de Bombeiros para ser levado ao Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro. Quando chegou lá, já estava morto. E, infelizmente, ele não é o único. Segundo dados do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, 42 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos armados e 57 feridas por bala de fogo, no ano passado. Neste 2018, Jeremias foi a segunda vida perdida.

Um dos cinco filhos da auxiliar de serviços gerais, Vânia Moraes, 39, Jeremias cursava o Ensino Fundamental no CIEP Helio Smitd, no Parque Rubens Vaz, na Maré. Participou de inúmeros projetos da Redes de Desenvolvimento da Maré: “Programa Criança Petrobras”, “Nenhum a Menos”, “Mão na Lata”, além de ser frequentador da Biblioteca Lima Barreto.

Curioso, amante das Artes Plásticas e da Literatura, Jeremias era considerado bom de bola: “a alegria dele era o futebol, era craque, tinha habilidade” – contou Getúlio Cardoso, diácono da Igreja evangélica que ele frequentava com a família e que arcou com os custos do funeral.

Na Igreja, segundo Getúlio, ele dizia que queria ser um missionário na África, para evangelizar as pessoas. Na Nova Holanda todos concordam que ele era um menino calmo, doce e estudioso. Além da escola, já tinha feito capoeira, aula de música e oficina de fotografia. Entre os que conviveram com ele nessas atividades, educadores e crianças, a tristeza era generalizada. Mesmo com sol, a favela parecia cinza.

Luciene de Andrade, coordenadora da Biblioteca Lima Barreto, propôs que as crianças, abaladas, fizessem desenhos em homenagem ao amigo: “Jeremias, que você continue brincando aonde você estiver” e “Você é o maior pintor do mundo”. O primeiro desenho, com um campo de futebol, que era a grande paixão de Jeremias; e o segundo, em alusão a uma música evangélica que ele gostava de cantar: “Quem pintou o mundo? Quem escolheu a cor? Fez o sol amarelo, pôs o verde na floresta. E o vermelho em uma flor”.

O caso está sendo investigado pela Divisão de Homicídios. A perícia no local foi realizada no dia seguinte à morte de Jeremias, resultado de uma articulação da Associação de Moradores da Nova Holanda com a Redes de Desenvolvimento da Maré, que acompanhou a equipe ao longo do procedimento. A família e as testemunhas também já foram intimadas a depor.