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Escutar o povo negro é fortalecer a democracia 

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Ministra Anielle Franco

Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

É uma honra escrever no para o jornal Maré de Notícias, esse espaço de democracia, resiliência e potência transformadora. Mais ainda em novembro, mês da Consciência Negra, em homenagem ao grande líder negro Zumbi do Palmares e Dandara, vozes que seguem ecoando para garantir a todas as pessoas o direito de buscar o próprio sonho. 

Ninguém avança sem valorizar o chão que pisa, é assim que caminho e resisto. Essa é minha linguagem, meu método de fazer política. É preciso falar sobre o poder. Ele tem muitas camadas, artimanhas e armadilhas, mas é essencial ocuparmos todos os espaços para avançar na transformação social pela qual nos empenhamos em conquistar. 

A representatividade irradia transformação, teoria e prática num único movimento. São muitas as reflexões sobre a sabedoria ancestral de usar o poder em favor da luta por justiça social e por cidadania para as pessoas pretas do nosso país. A autoridade a mim conferida como Ministra de Estado da Igualdade Racial, a visibilidade e a audiência ao meu discurso como representante do estado, revestem de holofote tudo o que eu sempre disse antes de chegar aqui. 

Estar no poder – com poder – viabiliza que eu fale sobre as meninas faveladas como a que fui; que reforce os direitos da população migrante, como as que conheci tão de perto no meu trabalho como tradutora daquelas pessoas sofridas nos EUA; que traga ao centro dos debates a realidade da vida cotidiana das pessoas negras, especialmente das mulheres e famílias matriarcais. 

Que denuncie o racismo como uma urgência a ser enfrentada coletivamente, mirando a perspectiva positiva da igualdade e da dignidade, que só será viável a partir de políticas públicas consistentes e duradouras. O poder faz reverberar, situação oposta à invisibilidade que o povo negro vivencia, com a negação do acesso ao direito básico da escuta atenta, da narrativa de suas próprias vidas. 

Há 15 anos eu era moradora da favela da Maré, com muito orgulho. Não havia caminhos para tratar dos direitos violados, não existia escuta para fora. Minha irmã lutou para ser vereadora justamente para dar voz a todas nós, mulheres pretas, muitas vezes cidadãs sem cidadania. Foi preciso chegar neste espaço, que muitos consideram o topo, para poder trazer o que sempre trouxe como pessoa que está na base. 

É como ministra Anielle Franco que me dirijo ao povo negro do Conjunto de Favels da Maré e do Brasil como absolutamente uma igual. Fortalecer a democracia é fortalecer todo e qualquer espaço político. Nós fazemos política a partir do momento em que estamos vivas. Pessoas negras, quando vestem turbantes, usam guias e fios religiosos ou saem com suas vestimentas, quando se expressam com o próprio jeito de falar, de agir, de sorrir, elas fazem política. 

Da mesma forma, política se faz na ação de luta, negociação, planejamento e construção da mudança, nas universidades, dentro das favelas, nas penitenciárias, na quadra de vôlei, no mercado, nas bancas científicas, ao sair de casa para o mundo. Essas lutas cotidianas precisam ser visibilizadas e reconhecidas como relevantes para o desenvolvimento do país. Não é apenas num ministério ou no parlamento que se faz política. 

A representatividade opera este poderoso estado de mudança, simbólico, que ressignifica as referências, a autoestima, a postura frente ao mundo. Altera a voz de quem fala e a atenção de quem ouve. Por isso, é tão importante termos mais pessoas negras na tomada de decisão das empresas públicas, privadas, parlamentos. 

Nestes 20 meses de ministério, vivemos desafios e muitas conquistas, sempre abrindo diálogo com a população, com os movimentos. Conseguimos atingir o maior número de titulação de terras quilombolas numa gestão. Trabalhando junto com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), fizemos 65 titulações no Brasil, em menos de dois anos. 

Lançamos a primeira política para povos ciganos do Brasil, a segunda no mundo. Aprovamos a renovação da Lei de Cotas na universidades, estamos trabalhando para aprovar o aprimoramento das lei de cotas no serviço público, lançamos o Plano Juventude Negra Viva, vamos lançar o Plano de Comunicação Antirracista, fizemos incidência por emprego e renda para pessoas negras, avançamos Pacto de Equidade nas Empresas Estatais, atuamos por candidaturas femininas e negras, no enfrentamento à violência política e ao assédio na administração pública. 

Temos um sonho muito poderoso para o Brasil e sabemos que este governo sonha conosco ao recriar o ministério e trazer a agenda da equidade étinico-racial para o centro do debate público. E ainda que o desafio seja gigantesco, ouso dizer que sabemos como fazer o extraordinário: olhar para a trivial realidade da vida. Ouvir o que pensa nossa população nos permite buscar conjuntamente um futuro melhor para todas as pessoas, que garanta não o básico, mas a plenitude. Escutar o povo negro é fortalecer a democracia.

Redução da escala 6×1: um impacto social urgente nas Favelas

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*Flavinha Cândido

O debate sobre a escala 6×1 ganhou força nas redes sociais nas últimas semanas, impulsionado pela apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que propõe a eliminação desse regime de trabalho. A proposta sugere a adoção de uma jornada de 36 horas semanais, divididas em quatro dias, o que seria uma mudança significativa em relação ao modelo atual, que prevê seis dias de trabalho consecutivos para apenas um dia de folga. A PEC já conta com 134 assinaturas e tem gerado discussões importantes sobre os direitos dos trabalhadores, especialmente aqueles que vivem em favelas e periferias.

A escala 6×1 é um modelo de jornada de trabalho regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que permite ao empregado trabalhar seis dias seguidos e descansar apenas um. Na prática, a jornada diária é de 7h20, totalizando 44 horas semanais. Este regime é comum em setores como comércio, hotelaria, bares e restaurantes, que demandam funcionamento contínuo e atendimento ao público todos os dias da semana. No entanto, para trabalhadores que residem em favelas, esse modelo representa um desafio ainda maior, uma vez que as condições de vida e de deslocamento impactam diretamente sua saúde e bem-estar.

De acordo com o IBGE, o Brasil tem atualmente 11.403 favelas, abrigando aproximadamente 16 milhões de pessoas. Nessas localidades, a maioria dos trabalhadores atua em setores informais ou em ocupações que frequentemente adotam a escala 6×1, como comércio e serviços gerais. Além disso, muitos desses trabalhadores enfrentam jornadas exaustivas e vivem longe de seus locais de trabalho, o que aumenta ainda mais o tempo gasto em deslocamentos diários. Para quem mora em favelas, o trajeto pode levar até três horas por dia, devido à precariedade do transporte público e à distância até o centro das cidades. Assim, o único dia de folga muitas vezes se torna insuficiente para descanso, atividades de lazer ou cuidados pessoais.

A advogada trabalhista Maria Lucia Benhame, especialista em Direito Sindical, destaca que a escala 6×1 é especialmente prejudicial para quem vive em regiões periféricas. “Os trabalhadores dessas áreas já enfrentam uma série de desafios, desde a violência urbana até a falta de infraestrutura e serviços básicos. A escala 6×1 agrava essa realidade, pois consome grande parte do tempo e da energia dessas pessoas, deixando pouco espaço para o descanso necessário e para a vida familiar,” explica Benhame. Ela ressalta ainda que o modelo atual desconsidera a realidade dos trabalhadores que vivem em contextos de vulnerabilidade, onde as dificuldades cotidianas são amplificadas.

A proposta de Erika Hilton para abolir a escala 6×1 e implementar uma jornada semanal de 36 horas é vista como um avanço na modernização das leis trabalhistas e uma medida de justiça social. Países como Islândia, Japão, França e Nova Zelândia têm experimentado jornadas de trabalho reduzidas e observaram resultados positivos, como aumento da produtividade, maior satisfação dos empregados e redução do absenteísmo. No Brasil, a adoção de uma jornada mais curta poderia beneficiar especialmente os trabalhadores das favelas, que teriam mais tempo para o descanso, para cuidar da saúde e para buscar novas oportunidades de qualificação e lazer.

Nas favelas, a questão da jornada de trabalho não é apenas uma discussão sobre carga horária, mas também sobre qualidade de vida. Muitos desses trabalhadores são mulheres negras, chefes de família, que além da jornada formal de trabalho, ainda desempenham funções de cuidado em suas casas, cuidando de filhos, parentes idosos ou doentes. A sobrecarga de trabalho, aliada à escala 6×1, contribui para o aumento de problemas de saúde física e mental, como estresse, ansiedade e fadiga crônica. A redução da jornada poderia trazer alívio significativo e permitir uma reorganização do tempo, contribuindo para um equilíbrio maior entre vida profissional e pessoal.

A discussão sobre a PEC proposta também levanta questões sobre a necessidade de adaptação das empresas e sobre os possíveis impactos econômicos. No entanto, especialistas apontam que, em longo prazo, a mudança pode ser benéfica para empregadores e empregados. Estudos mostram que trabalhadores mais descansados tendem a ser mais produtivos, menos propensos a acidentes de trabalho e menos ausentes devido a problemas de saúde. Além disso, uma jornada de trabalho mais curta pode incentivar a contratação de novos empregados, contribuindo para a redução do desemprego.

Para a população das favelas, a aprovação da PEC seria uma forma de reconhecer a desigualdade existente nas condições de trabalho e vida. A mudança na legislação trabalhista representaria um avanço na luta por direitos e dignidade, especialmente para aqueles que mais sofrem com a precariedade do trabalho. É essencial que o debate sobre a redução da jornada de trabalho inclua a realidade dos moradores de favelas, considerando suas especificidades e demandas. Afinal, garantir um dia a mais de descanso pode significar mais tempo para a família, para o autocuidado e para a luta por um futuro melhor.

A proposta de redução da escala 6×1 surge como uma esperança para milhões de trabalhadores que enfrentam uma rotina extenuante e injusta. Ao repensar o modelo de jornada de trabalho, o Brasil tem a oportunidade de avançar em direção a um país mais justo e igualitário, onde todos possam usufruir de uma vida digna, com tempo para descansar, cuidar da saúde e buscar novos horizontes. A expectativa é que o Congresso Nacional leve em conta a realidade dos trabalhadores de favelas e aprove uma medida que poderá transformar para melhor a vida de milhares de famílias brasileiras.

*Mãe, moradora da Maré. Foi assessora de Marielle Franco, ativista no Coletivo Maré 0800 e Maré de Resistência, professora de Letras e Pós-Graduada em Letramento Racial, idealizadora do Racial Favelado (Instagram) e colaboradora em projetos como Dicionário de Favelas Marielle Franco e Plano Fiofavela.

Ondas de calor como tema no G20 o que são e como enfrentá-las?

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André Magno Neves, Carolina H. Galeazzi e Winnie Pereira*

No ano de 2023 vivemos o ano mais quente em 125 mil anos, segundo cientistas do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (2023). As alterações climáticas estão alimentando extremos cada vez mais destrutivos, incluindo inundações que mataram milhares de pessoas na Líbia, fortes ondas de calor na América do Sul e a pior temporada de incêndios florestais já registrada no Canadá.

Este ano, todos os olhares estão voltados para o G20, evento que reúne os países com as maiores economias do mundo anualmente para discutir iniciativas econômicas, políticas e sociais. Tratado no G20 desde 2017, o Grupo de Trabalho (GT) de sustentabilidade ambiental e climática tem ganhado cada vez mais força. São discutidos a adaptação preventiva e emergencial frente a eventos climáticos extremos; pagamentos por serviços ecossistêmicos; oceanos; além de resíduos e economia circular. Além dele o GT de Redução do Risco de Desastres aborda questões críticas relacionadas à gestão de crises e catástrofes em escala global. Desempenha papel crucial na promoção da resiliência, prevenção e mitigação de riscos nos países membros. Durante nosso cotidiano sentimos e vemos o quanto é urgente agir de maneira eficiente para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Se recuarmos do global para o local, em 2023 vivemos períodos de calor intenso no Rio de Janeiro, e vimos muitas notícias sobre a seca na Amazônia e as inundações no Sul do país. O El Ninõ, agindo em conjunto com o aquecimento global, veio nos dar uma amostra de como será nosso futuro próximo. No Rio de Janeiro, vivemos ondas de calor (que acontecem quando a temperatura está acima do normal por vários dias seguidos) cada vez mais frequentes e de maior intensidade. O “Rio 40 graus” está virando “Rio 60 graus”.  Além dos riscos diretos para saúde, com problemas cardíacos e respiratórios, e indiretos, como incêndios, problemas no sistema elétrico por excesso de demanda, quedas de luz, falta de água, aumento dos preços dos alimentos e da água, falta de alimento e de água, entre outros. 

Neste contexto, a Maré também precisa se preparar para atravessar as ondas de calor, intensificadas pelo aquecimento global. As temperaturas crescentes se tornam uma ameaça, expondo a comunidade a riscos consideráveis. É preciso adaptação. Diante desses desafios, existem algumas soluções para suavizar o calor dentro de casa e tornar o ambiente mais suportável. 

Ilhas de calor e estratégias para enfrentá-las no dia a dia

Para compreender os desafios das mudanças climáticas é importante abordar o conceito de “ilhas de calor”. Esse fenômeno é a formação de áreas urbanas onde as temperaturas são significativamente mais elevadas do que nas áreas circundantes. Ou seja, a sensação térmica pode ser ainda maior do que aquelas anunciadas pelo Alerta Rio.

Conforme relatório recente divulgado pela Redes da Maré, o Respira Maré, as temperaturas podem variar em até 2°C dentro do território. Isso diz respeito ao armazenamento de calor pela forma e materialidade da cidade e à dificuldade de dissipar esse calor, geralmente realizada a partir da ventilação natural. Um morro que barra os ventos dominantes, ou mesmo prédios que impedem a passagem do vento, fazem com que um local possua maiores dificuldades de se resfriar. O fator de visão de céu (o tamanho de céu que enxergamos a partir da rua e da configuração de seus prédios) indica o quanto esse calor pode ser dissipado. Em uma praça, por exemplo, o vento tem maior acesso que em uma rua estreita. O lado positivo é que na rua estreita há o autosombreamento dos prédios, evitando que a radiação direta acesse os apartamentos. A materialidade urbana é outro fator importante. Cada material possui características que absorvem e que tem capacidade de armazenar mais ou menos calor. Quanto mais um material absorve e armazena, mais ele libera calor para o interior da residência, mas também para a própria rua, mantendo uma temperatura média mais alta que em outras regiões, com outras materialidades que refletem o calor.

A medida mais eficaz para diminuir as temperaturas urbanas é a arborização, devido à capacidade das plantas de realizar a evapotranspiração (o processo pelo qual a água é perdida pelas folhas das plantas em forma de vapor), e também impedir que os raios solares acessem certos lugares, através do sombreamento. Quanto mais as plantas sombrearem paredes, lajes e pisos, menos essas superfícies aquecem. Identificar e promover áreas com vegetação proporciona não só sombra refrescante, mas também melhora a qualidade do ar. Incentivar espaços verdes nas proximidades, como praças e parques, quando possível, criar ambientes agradáveis para a comunidade curtir durante os dias mais quentes.

As plantas e árvores têm a capacidade de absorver a água da chuva, permitindo que ela seja gradualmente liberada no solo permeável, em vez de escoar rapidamente sobre o concreto das vias pavimentadas. Isso ajuda a prevenir o acúmulo de água em ruas e terrenos, protegendo a comunidade de inundações e minimizando os impactos negativos das chuvas intensas. Inclusive, essa recomendação não apenas se traduz em benefícios para a saúde, mas também contribui para a beleza estética e a qualidade de vida das comunidades. 

Pode-se também modificar os materiais para diminuir o calor absorvido. Por exemplo, pintar telhados e paredes externas com cores claras para refletir os raios solares pode reduzir de maneira significativa a absorção de calor nas habitações. Uma jogada simples, mas eficiente, contribuindo para ambientes internos mais frescos, aliviando o desconforto térmico. A cor branca, por exemplo, absorve apenas 20% da radiação solar, enquanto o preto absorve quase 100%. O asfalto também pode ser pintado, e, dessa forma, atuar na diminuição das ilhas de calor.

Figuras 1 e 2: Material divulgado pela extensão multidisciplinar Local-Global: ações urbanas pelo clima (@local-global.ufrj), ligada ao Laboratório de Conforto Ambiental e Eficiência Energética da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ).

Conforme indicações da UNICEF Brasil, sugere-se também não caminhar longos percursos sob o sol em horários mais quentes ( entre 9hs e 16hs), sempre procurar caminhar pela sombra, fazer pausas, se possível, e se hidratar regularmente e mais do que a sede pede. Cuidar da população mais vulnerável como idosos, grávidas e crianças. Em casa, sempre que possível, fechar as venezianas ou cortinas durante os períodos mais quentes do dia e abrir as janelas durante a noite para refrescar a casa. Usar ventiladores e aparelhos de ar-condicionado, se disponíveis. 

Seria importante pensar, a longo prazo, em possíveis espaços de refúgio, sombreados e com disponibilidade de água potável, nas ocorrências de calor extremo ou de colapso de energia. A colaboração entre a comunidade local, autoridades e organizações é crucial para implementar e aprimorar algumas soluções. Juntos, podem criar iniciativas que não só encarem os desafios do calor extremo, mas também promovam uma Maré mais fresca, saudável e resiliente. O problema das mudanças climáticas já está aqui e está nos afetando agora. E assim, a mudança também começa agora, e é hora de agir coletivamente para construir uma Maré mais resiliente para todos. 

*Grupo de pesquisa e extensão Local-global: ações urbanas pelo clima.

Conheça os impactos positivos da ADPF das Favelas na Maré

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Por projeto De Olho na Maré

Na última quarta-feira (13), integrantes da Redes da Maré estiveram no Supremo Tribunal Federal para o início do julgamento da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, que tem o objetivo de reduzir a letalidade policial. 

A instituição, junto de outras organizações da sociedade civil, é amicus curiae (amiga da Corte) da ação e, portanto, faz parte do corpo de defesa da ADPF. Na ocasião, a advogada do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça Marcela Cardoso apresentou a sustentação oral. Em sua fala, Marcela assinalou a importância desse instrumento jurídico na defesa do direito mais básico de todo o ser humano que é o direito à vida e destacou como as populações já vulnerabilizadas por outros marcadores são as mais prejudicadas pela atuação belicosa do Estado. 

O impacto da ADPF 635 na Maré

A Maré é um território que, historicamente, tem sido alvo de políticas de segurança pública marcadas por arbitrariedades, com centenas de operações policiais realizadas ao longo dos anos. Somente em 2024, o território já enfrentou 39 ações com essa característica. O Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça (DSPAJ) da Redes da Maré, por meio do projeto De Olho na Maré, desempenha um papel fundamental na coleta de dados sobre a violência armada no Conjunto de Favelas da Maré. Desde 2016, por meio do Eixo, a Redes vem monitorando a dinâmica da violência no território com a realização dos Plantões de Operação, onde é feito o acolhimento de vítimas de violência, mediação de conflitos e facilitação no acesso a direitos com profissionais do direito, da psicologia e do serviço social trabalhando in loco durante as ações policiais. Essa forma de atuação tem como objetivo garantir a presença ativa e comprometida da sociedade civil organizada com a segurança e os direitos das comunidades afetadas.

Dada a frequência e o impacto dessas ações, torna-se cada vez mais imperioso que as intervenções policiais sejam conduzidas sob regulamentações rigorosas e eficazes, que assegurem a proteção da vida e dos direitos dos moradores e moradoras, não apenas da Maré, mas de todas as favelas do Rio de Janeiro. É precisamente essa a proposta da ADPF 635. Mas, afinal, qual tem sido a real influência da ADPF sobre as 15 favelas da Maré?

De acordo com os dados produzidos pelo De Olho da Maré, os índices de operações e mortes variam e não seguem de forma constante. Isso porque não podem ser analisados como fatos isolados e estão sujeitos à influência da conjuntura política e fatores internos e externos. A ADPF é um dos fatores de relevância que impactam na redução da letalidade durante as operações.

Os anos de 2018 e 2019 apresentaram um número de mortes superior ao de operações, e especialmente 2019, foi um ano de grande crescimento da letalidade policial na Maré. Isso se explica pela conjuntura do governo Wilson Witzel, que se pautou no discurso de militarização, incluindo a famigerada frase “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo!”. No mesmo ano, o índice de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) no estado também cresceu, chegando à maior taxa nos últimos 10 anos, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A isso, soma-se o fato de a Ação Civil Pública da Maré (ACP-Maré), uma iniciativa judicial coletiva que versa sobre segurança e redução de letalidade policial na Maré, ter perdido a sua validade.

Entre 2020 e 2021, em decorrência da ADPF 635 e do fator pandemia do COVID-19, houve redução no número de operações e no índice de mortes na Maré. O ano de 2022 trouxe um novo aumento relacionado à agenda eleitoral do governador Cláudio Castro, baseada em uma política de segurança pública de policiamento ostensivo, operações policiais e maior letalidade. Entre as cinco maiores chacinas policiais na história do Rio de Janeiro, duas ocorreram em 2022. Além disso, no dia 25 de novembro do mesmo ano, uma operação na Maré deixou oito mortos. Uma análise das taxas de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) em 2022 evidencia essa disparidade: na Maré, a taxa alcançou 20,3 por 100 mil habitantes, um número significativamente superior aos 8,3 registrados no Rio de Janeiro e aos 3,2 da média nacional.

Não há uma tendência histórica constante e, sim, contextos e tensionamentos que se expressam nos dados apresentados, e que podem apontar para as oscilações e uma não observância de padrão.

Nos últimos anos, a Maré tem sido marcada por uma escalada preocupante de operações policiais, com destaque para 2023 e 2024. Embora este ano ainda não tenha terminado, já se registaram 17 mortes em 39 operações policiais, incluindo duas de policiais, mais que o dobro de fatalidades do ano passado. Esses números, porém, revelam apenas uma parte da realidade vivida pelos moradores e moradoras da Maré e de outras favelas do Rio de Janeiro. A violência vai muito além dos dados de óbitos: envolve o cotidiano de quem convive com o medo, com a presença constante de forças de segurança e com os efeitos profundos que essas intervenções têm sobre a comunidade.

Outra questão fundamental diz respeito à realização de perícias. Historicamente, o número de investigações forenses em casos de mortes decorrentes de intervenções policiais tem sido extremamente baixo. Para enfrentar essa lacuna, a ADPF 635 estabelece diretrizes legais que visam assegurar a realização de investigações forenses em casos de violência estatal nas favelas. A medida sobre as perícias busca garantir a imparcialidade, a transparência e a eficácia das investigações, salvaguardando os direitos das vítimas e promovendo a responsabilização dos perpetradores. De acordo com os dados do De Olho na Maré, desde 2016, foram registrados 145 homicídios provocados por agentes de segurança pública durante operações policiais nas favelas da Maré. Em apenas 9 dessas mortes houve a realização de perícia criminal.

Em 2024, houve apenas duas perícias para 17 mortes. A primeira ocorreu no caso da morte de Jefferson Araújo Costa em 8 de fevereiro, em um dos acessos ao Parque Maré. A segunda investigou a morte de dois policiais do BOPE no Morro do Timbau, no dia 13 de junho. Importante salientar que nesse mesmo dia, outras duas pessoas foram mortas e não houve realização de perícia para esses homicídios. As duas perícias evidenciam uma série de desafios nesta agenda, uma vez que somente os policiais tiveram direito à investigação e o caso de Jefferson foi de grande repercussão e sua morte ocorreu na Avenida Brasil e não no interior do território. Segundo Luiz Carlos Junior, coordenador do De Olho na Maré,  “a Segurança Pública, assim como todas as outras políticas públicas, está sujeita a constantes disputas entre o cenário político e a influência da sociedade civil organizada.” A sociedade civil exerce o controle social para garantia de direitos aos cidadãos, impactando significativamente nos efeitos das estratégias adotadas pelo Poder Público. Por controle social, a equipe de pesquisa do De Olho na Maré entende a participação popular na construção e monitoramento de políticas públicas, de forma democrática e transparente. Na Maré, uma série de fatores vêm influenciando os resultados das dinâmicas no campo da segurança pública nos últimos anos, como mostram dados produzidos pelo grupo de pesquisa De Olho na Maré.

Familiares dão continuidade ao Memorial das Vítimas da Violência Armada na Maré

Parentes das vítimas imortalizaram suas emoções em azulejos que serão implantados na ampliação do Memorial em 2025

No coração de Berlim, na Alemanha, encontra-se o Memorial do Holocausto, dedicado aos seis milhões de judeus mortos durante o regime nazista. Já no Centro de Medellín, na Colômbia, é instalado o Museu Casa da Memória, que lembra os mais de 200 mil mortos provocados por conflito armado. Na Maré, tem o Memorial das Vítimas da Violência Armada, uma homenagem às vítimas letais da violência de Estado no território. Na tarde da última sexta-feira (8/11) familiares das vítimas estiveram presentes na Areninha Cultural Herbert Vianna para dar continuidade ao memorial para 2025. 

A homenagem começou com uma oficina livre de azulejaria, onde os parentes das vítimas imortalizaram suas emoções. “Um lado legal é ver participantes que estão retornando. Elas têm um desejo sobre-humano de deixar a homenagem ao seu ente, registrar a dor e também o amor. O memorial tem o objetivo de deixar vivo essas homenagens e fortalecer essa rede de amor”, lembra Laura Taves, coordenadora do Projeto Azulejaria, da Redes da Maré. Os azulejos confeccionados serão implantados na ampliação do Memorial, para 2025. 

O encontrou lembrou que as vítimas não são números, mas que tem diversas histórias impactadas pelo não direito à Segurança Pública que é vivenciado, historicamente, por moradores de favelas. “Não podemos naturalizar as mortes. A Constituição de 1988 afirma que todos somos iguais perante a lei e temos direitos. Essa ferramenta nos faz lutar por uma Maré que queremos e não aceitar as violações. O memorial 2025 mostra a luta diária dessas mães. Queremos pegar essa energia para lutar pela reparação coletiva. Hoje temos aqui o tom da esperança e que a mobilização é possível”, comenta Liliane Santos, analista de incidência política, da Redes da Maré.

“Hoje podemos nos expressar realmente sobre a nossa luta por meio do azulejo”

Maria da Conceição

No evento ocorreu uma roda de conversa sobre o direito à memória, ao luto e justiça, com um espaço de acolhimento para os familiares das vítimas. “O memorial é o local da saudade e de mostrar algo que não queríamos que tivesse acontecido. Esse encontro mostra afeto e luta de uma rede de energia. Cada um tem a sua história e merece atenção. Queremos escutar e propor uma contrapartida, de mostrar que essas pessoas não são apenas um CPF e que não estão só. As pessoas mortas são seres humanos, temos que potencializar e trazer isso à tona”, afirma Lucas Lima, psicólogo social do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré.

Um luto que se transforma em luta

Os trabalhos foram cercados por emoção, pelo encontro dos familiares das vítimas, que demonstraram amor a quem não se encontra fisicamente, mas está presente no coração. “Venho sempre participar deste memorial, essa já é a terceira vez. Sinto a dor, algo que mexe no meu emocional, a saudade do meu filho Marcos Paulo, que não está comigo há 14 anos. Se tivesse vivo estaria com 40 anos. O painel é um momento legal e algo emocionante”, diz Djanicy Conceição, moradora do Morro do Timbau. Já Maria da Conceição, membro do Coletivo Mães Enlutadas da Maré, estava construindo o memorial pela primeira vez. “É uma oportunidade de expressar a saudade do meu filho Taylor, que esse mês completa 6 anos de seu assassinato. Uma violência que não tem fim nas favelas. Hoje podemos nos expressar realmente sobre a nossa luta por meio do azulejo, colocando tudo para fora, o sofrimento de mães”, conclui. 

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O evento fez parte da programação do Novembro Negro, da Casa Preta da Maré, em conjunto com o Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça. A cerimônia, além da participação de moradores da Maré, contou com a presença de Fabiana Silva, pedagoga e ouvidora-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. 

O memorial fica localizado próximo a Areninha Cultural Herbert Vianna, na Rua Ivanildo Alves, s/nº, Nova Maré.

ADPF 635: deixando os números falarem

Em 20 anos, as polícias do Rio de Janeiro mataram, no mínimo, 2 pessoas por dia

Por Projeto De Olho na Maré

O Brasil frequentemente aparece nas manchetes internacionais como o país com os maiores índices de homicídios em números absolutos. No entanto, pouco se fala sobre a proporção significativa desses assassinatos cometidos por agentes do Estado. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve 46.328 mortes violentas intencionais no Brasil em 2023. Das 46.328 mortes violentas intencionais, as forças policiais brasileiras foram responsáveis pela morte de 6.393 pessoas em todo o país em 2023. O número de mortes resultantes da atuação policial no Brasil quase triplicou em uma década, de acordo com o Anuário de Segurança Pública do ano de 2023.

Qual é a situação no Rio de Janeiro? 

A polícia do estado do Rio de Janeiro se destaca pelo uso frequente e excessivo da força e isso se expressa nos números: entre 2003 e 2023, as polícias do Rio de Janeiro estiveram envolvidas na morte de 21.498 pessoas durante intervenções policiais, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto de Segurança Pública (ISP). Isso significa, pelo menos, duas mortes por dia. Em 2023, o estado é o terceiro em letalidade policial, com uma taxa de 5,4 mortes por 100 mil habitantes, ficando atrás apenas do Amapá e da Bahia, como aponta o Diagnóstico da Segurança Pública Fluminense Pós ADPF 635, publicado pelo FBSP. Esse índice é superior à média nacional, que permaneceu com uma taxa de 3,1 por 100 mil habitantes no mesmo período. Para se ter uma ideia, a taxa de letalidade policial na Maré é de 6,4 por 100 mil habitantes, segundo dados de 2023 do De Olho na Maré com base nos dados do Censo do IBGE (2022). A ADPF 635 incidiu exatamente nesse cenário.

Segundo o Diagnóstico da Segurança Pública Fluminense Pós ADPF 635, as mortes resultantes de intervenções policiais no Rio de Janeiro caíram 52% de 2019 para 2023. Apesar da diminuição, o mesmo estudo aponta que para se chegar a um cenário minimamente aceitável, a redução teria que ser de 66%.

Nesse cenário, o uso excessivo da força é ainda mais alarmante nas favelas e comunidades urbanas, onde as operações policiais tendem a violar uma variedade de direitos e resultam em um número desproporcional de mortes. Podemos, assim, afirmar que o Brasil enfrenta uma situação de violência endêmica que, no caso do Rio de Janeiro, é intensificada pela atuação das forças policiais e pela intensidade da violência estatal. Esse cenário se torna especialmente brutal nos territórios periféricos e nas favelas, onde a ação do Estado é historicamente marcada por um uso desproporcional da força.

A análise dos dados revela dois períodos de queda nas mortes causadas por intervenções policiais no Rio de Janeiro: o primeiro entre 2008 e 2013, e o segundo, a partir de 2020, oscilando até uma nova queda em 2023. De acordo com o estudo mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a primeira queda nas mortes por intervenções policiais no Rio de Janeiro está relacionada à introdução de programas de policiamento voltados para a gestão de conflitos, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A segunda redução significativa, registrada em 2019, está relacionada à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, que tem como objetivo conter atos do poder público que violem ou ameacem direitos fundamentais. Esses direitos incluem o direito à vida, à dignidade, à segurança e à inviolabilidade do domicílio, além de garantir a igualdade e a prioridade na proteção de crianças e adolescentes como um dever do Estado.

O que é a ADPF 635?

A ADPF 635 desempenha um papel essencial ao reforçar a importância de mecanismos de controle, fiscalização e transparência na atuação policial. Trata-se de uma conquista significativa da mobilização de moradores e moradoras de favelas e de ativistas de direitos humanos, que há anos reivindicam políticas de segurança pública menos letais. Protocolada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e por organizações da sociedade civil, o instrumento foi utilizado pelo Supremo para restringir operações policiais durante a pandemia da COVID-19, permitindo-as apenas em casos “absolutamente excepcionais” e exigindo a preservação de registros visuais em todas as intervenções.

Diversos pedidos foram feitos na ação, sendo os principais: 

  • A formulação de um plano de redução da letalidade policial e de controle de violações de direitos humanos;
  • A vedação ao uso de helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror;
  • A obrigatoriedade de que os órgãos do Poder Judiciário, ao expedir ordem de busca e apreensão, indiquem, de forma mais precisa possível, o local, o motivo e o objetivo, sendo que o cumprimento dos mandados deve se dar durante o dia;
  • A determinação para que haja ambulâncias e equipes de saúde nas operações policiais;
  • O reconhecimento de que a realização de operações em perímetros nos quais estejam localizadas escolas e creches deve ser excepcional;
  • A publicização de todos os protocolos de atuação policial;
  • A instalação de equipamentos de GPS e de sistemas de gravação de áudio e vídeo nas fardas dos agentes;
  • A compatibilização das perícias com parâmetros normativos;
  • O aprimoramento das investigações de possíveis crimes cometidos por policiais.

Algumas destas medidas ainda serão votadas.

Hoje, no dia 13 de novembro, o STF inicia o julgamento de mérito da ADPF das Favelas. Na ocasião, o plenário iniciará a leitura do relatório do caso, que apresenta o histórico da ação, seguida das sustentações orais das partes envolvidas. A data para a votação final será definida posteriormente.