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Como o passado escravocrata ainda afeta a saúde dos homens negros?

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Mortes precoces de Mr. Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho, ídolos negros da música brasileira, chamam atenção para a forma como a população negra vem sendo cuidada no país.  

Samara Oliveira e Teresa Santos

Em 2022, o município do Rio de Janeiro registrou 1.648 óbitos entre pessoas com 45 a 49 anos de idade, segundo dados do Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio). A liderança ficou com os homens, que responderam por 57,2% dessas mortes. E os homens negros aparecem à frente. Dos 943 óbitos registrados entre pessoas do sexo masculino nesta faixa etária, 576 eram pretas ou pardas. 

Quando olhamos para a Área de Planejamento 3.1, na qual a Maré está inserida, um dado chama atenção: todos os 114 óbitos registrados ocorreram em homens. Desse total, 66,6% eram homens negros. 

As informações revelam que o que mais vitimou esses homens negros do território mareense e adjacências foram causas externas (27,6%), o que inclui agressões, acidentes, entre outros eventos. Em segundo lugar, aparecem as “doenças do aparelho circulatório” (19,7%). 

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A hipertensão arterial é uma das “doenças do aparelho circulatório”. Segundo o historiador Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Ela é reconhecidamente um dos agravos que mais acomete a população negra. Anemia falciforme, diabetes mellitus tipo 2 e deficiência de G6PD, um distúrbio genético hereditário que pode levar à destruição dos glóbulos vermelhos após uma doença ou o uso de alguns medicamentos, são outros exemplos de condições mais frequentes na população negra brasileira.

Ele explicou ao Maré de Notícias que quadros como doença renal crônica e asma também são apontados em pesquisas como sendo de alta incidência na população negra. E, especificamente nos homens negros, os estudos mostram ainda a relevância do câncer de próstata e do glaucoma.

Por que essas doenças?

Segundo o pesquisador da Fiocruz, vários fatores atuam nesse cenário de forma inter-relacionada. A genética, por exemplo, tem um peso importante no caso de algumas doenças, tais como a anemia falciforme, a hipertensão, o diabetes e a deficiência de G6PD.

Mas as condições de moradia, renda, escolarização, entre outros, também são relevantes. Isso significa, por exemplo, que ter ou não acesso à água potável, a saneamento, mobilidade, segurança, lazer também contribuem para o desenvolvimento de algumas dessas doenças.

A alimentação é outro fator importante. “O consumo de produtos industrializados ultraprocessados, bebidas açucaradas, entre outros, em lugar de alimentos saudáveis, ou seja, os hábitos alimentares inadequados exercem forte influência no desenvolvimento ou no agravamento de algumas das doenças citadas”, destaca o professor Paulo.

Outro ponto de destaque é o racismo. O pesquisador ressaltou que estudos publicados no jornal da Associação Americana do Coração e da Associação Americana de Saúde Pública apontam que “o racismo está diretamente relacionado ao estresse, visto que os hormônios liberados nesse estado podem levar ao aumento da pressão arterial, o que, por sua vez, se relaciona com a falência renal”.

Barreiras à saúde 

Em uma sociedade onde as funções de liderança ainda são predominantemente exercidas pelo sexo masculino (patriarcal), os homens podem ter maior dificuldade em buscar cuidados em saúde devido à rejeição a um papel de fragilidade. Porém, para Paulo Bruno, essa questão é mais relevante para os sujeitos de renda mais elevada. “Com relação ao homem negro, considero que as barreiras sejam muito mais difíceis de serem ultrapassadas”, ressalta.

E, para exemplificar essa dificuldade, questiona: “Como deve pensar um homem negro, cujos antepassados foram mortos e torturados por homens brancos e/ou foram obrigados a servirem até a última força a senhoras brancas, quando se vê diante da necessidade de buscar um atendimento médico que, na maioria das vezes, é feito por pessoas não-negras?”.

A falta de acolhimento dos negros nos serviços de saúde é outro problema, bem como a restrição de tempo. “Parte considerável da população negra em geral e os homens que trabalham para manter suas famílias, em específico, sabem que os seus vínculos de trabalho são por demais precários, de modo que o afastamento rotineiro para a manutenção dos cuidados com a saúde é algo impensável”, destaca. 

Mr Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho, ídolos negros do funk que morreram antes mesmo de completarem seus 50 anos, são os dados mostrados de maneira personificada quem são esses corpos vítimas – ainda – de heranças coloniais no Brasil. Acometidos por câncer gástrico, pneumonia e cardiopatia/doença renal crônica, respectivamente, os cantores apesar de terem vidas diferentes, carregavam o mesmo passado que toda população negra no país. Fato esse que para o pesquisador Paulo Bruno afeta o cotidiano e a longevidade da vida dos homens negros. 

“O passado escravista afeta sobremaneira o presente da população negra brasileira, sobretudo, se considerarmos que ao fim do escravismo colonial não houve uma reforma agrária no país, um processo que possibilitasse à imensa massa de libertos as condições necessárias para que se estabelecessem com um mínimo de dignidade”, afirma. 

Há outros como Mr. Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho nas ruas do Brasil, do Rio de Janeiro, da Maré, que no lugar do cuidado com a saúde fica o trabalho. É o que também ressalta o pesquisador. “Nos transportes públicos na cidade do Rio de Janeiro ou nos de outras grandes metrópoles brasileiras podemos conhecer de perto como trabalham, por exemplo, os vendedores ambulantes, negros na maioria, das primeiras horas do dia até o seu término. Se tivermos tempo e atenção para ouvi-los, então, saberemos que muitos se encontram adoecidos, dormem pouco, trabalham muito, não dispõem de tempo para manterem uma rotina de consultas e exames médicos, tampouco, contam com a seguridade social para pensarem em fazer isso depois de uma aposentadoria”. 

Há como reverter o cenário?

“Como reverter esse cenário no campo da saúde sem reverter as condições gerais da sociedade brasileira?”, questiona o pesquisador. Complementando que para que mudanças pontuais ocorram, são necessárias as mudanças mais profundas e gerais. No entanto, reconhece que as ações precisam partir de algum lugar. Na área da educação, as cotas raciais nas universidades figuram como um dos possíveis pontos de partida. Já, na saúde,  a ampliação da formação crítica de profissionais negros também pode alavancar este processo. 

“Também é preciso pensar na transformação do sistema de saúde como um todo, de modo que as pessoas em situação de maior precariedade tenham a garantia de acesso e continuidade nos seus tratamentos e cuidados com a saúde.”, ressalta.

‘Vacina Maré’ celebra incidência, conquistas e planeja o futuro

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Evento sobre a ação inédita aconteceu no Centro de Artes da Maré (CAM) e reuniu pesquisadores, moradores e representantes de instituições de saúde

Foto: Gabi Lino

Nesta terça-feira (26), a Redes da Maré promoveu o “Encontro Pesquisa Vacina Maré – Celebrando conquistas com o olhar no futuro” no Centro de Artes da Maré (CAM). O evento celebra as conquistas e incidências da produção de dados a partir do estudo desenvolvido pela Fiocruz com a Redes da Maré e a Secretaria Municipal de Saúde. Agora o novo momento do estudo acompanha os moradores por meio de entrevistas sobre as possíveis consequências físicas e mentais – da Covid-19, a chamada Covid Longa. 

O objetivo da continuidade da pesquisa também é saber sobre o acesso dos moradores às unidades básicas de saúde, a prevenção e tratamento de doenças crônicas e o índice geral de vacinação dos moradores, entre outros itens que ajudem a entender quais são as demandas de saúde do território. 

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Setembro Amarelo: cuidar da saúde mental é para todos e salva vidas

O que contam os nomes das Clínicas da Família da Maré 

As mesas da parte da manhã do encontro trouxeram debates sobre o panorama da Pesquisa Vacina Maré e como ela acontece no território; roda de depoimentos com quem faz parte da pesquisa e o impacto da pesquisa dentro e fora da Maré. 

Na segunda parte da programação, a roda de depoimentos com parceiros e realizadores da Pesquisa Vacina Maré, trouxe Thiago Wendel, coordenador da Área de Planejamento 3.1 (área que a Maré está inserida), que falou sobre os legados deixados pela campanha de mobilização Vacina Maré

“É importante lembrar que o Vacina Maré salvou vidas, é importante lembrar que o Vacina Maré imunizou as pessoas de dentro e fora do território, mas também é importante lembrar que tem a ciência por trás disso tudo. O vacina [Maré] foi essencial para mostrar a importância da ciência para as pessoas.”, relembra. Ainda falando sobre legado, Thiago recordou as reformas de todas as Clínicas da Família, a contratação de mais profissionais, a Maré ser o bairro mais procurado para vacina do município do Rio e por fim, falou sobre a reconquista do orgulho dos profissionais que trabalham na área da saúde. 

Thiago Wendel, coordenador da Coordenadoria Geral da Atenção Primária (CAP) 3.1 falou sobre os legados da campanha de mobilização Vacina Maré | Foto: Gabi Lino

Além de Thiago, Valcler Rangel representante do Ministério da Saúde e Everton Pereira, coordenador do eixo de Direito à Saúde da Redes da Maré também compuseram a mesa.

De olho no futuro  

Pesquisador da Fiocruz e Coordenador da Pesquisa Vacina Maré, Fernando Bozza foi quem fechou a programação com a mesa sobre próximos passos e desdobramentos da Pesquisa. 

Médico especialista em epidemia e pesquisador com uma densa e longa experiência, Bozza garante que a vivência com a campanha e pesquisa Vacina Maré mudou sua visão sobre pesquisa e também sobre inovação em saúde. 

“A gente tem uma maneira tradicional de fazer ciência: observação do problema, questionamento, construção de hipóteses, experimentação, análise das hipóteses, desenvolvemos uma metodologia que gera resultados e divulgamos esse resultado. Começamos a pensar em outra maneira de fazer ciência. Essa maneira linear e tradicional já não cabe mais porque temos urgências”, afirmou. 

Ao falar das urgências, Bozza citou urgências climáticas e de saúde enfatizando que hoje essas questões demandam “um outro ritmo que hoje não é mais essa zona de conforto do cientista.” E conclui: “A maneira de fazer junto do morador do território é uma nova construção, uma agenda que vai ser decidida coletivamente. Lógico, usando metodologias, mas novas metodologias.”

Mais que pensar em novas maneiras de fazer ciência, o pesquisador levou para o evento o projeto do sonho futuro da construção de um laboratório dentro da Maré em parceria com a Fiocruz. O espaço seria um centro de inovação tecnológica em saúde com núcleo de formação continuada e formação profissional tendo como ponto de partida as experiências no Vacina Maré. 

Maré no Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto

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Maré recebe campanha pela descriminalização do aborto no Brasil

Na última segunda-feira, 25 de setembro, a Casa das Mulheres da Maré promoveu um encontro sobre direitos sexuais e justiça reprodutiva para mulheres de favela. O evento marcou o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto 28 de setembro, quando diversas atividades estão sendo organizadas por movimentos de toda América Latina e reuniu mais de quarenta mulheres na casa, na Rua da Paz, no Parque União.

Marcaram presença representantes da campanha Nem Presa, Nem Morta, que luta, por meio de mobilizações, incidência e comunicação, pela descriminalização do aborto no Brasil, além de pesquisadoras do Projeto Diálogos sobre Justiça Reprodutiva (DIJURE/UniRio) e moradoras das favelas da Maré. 

Durante o dia foram estendidas bandeiras verdes, um dos símbolos da campanha em alguns pontos da Maré. A Redes da Maré também publicou uma nota sobre a descriminalização do aborto ser uma questão de justiça social para mulheres negras e faveladas.

Conversa reuniu cerca de 40 mulheres na Casa das Mulheres da Maré. Foto: Gabi Lino

ADPF 442:

Desde 2017, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) – uma ação proposta ao Supremo Tribunal Federal com o objetivo de sanar lesão ou violação direta à constituição federal – sobre a discriminalização do aborto.

A ação foi elabora pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, em 08 de março de 2017, motivada pelo caso de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, que desapareceu em 26 de agosto de 2014 após realizar um procedimento de aborto ilegal da gestação no quarto mês, em uma clínica clandestina do Rio de Janeiro. Ela morreu após passar pela cirurgia na clínica e seu corpo foi encontrado no dia seguinte, mutilado e carbonizado, dentro de um carro, sendo feito DNA para comprovação da identidade. Neste caso, 10 pessoas foram indiciadas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, inclusive o ex-marido de Jandira, Leandro Brito Reis, pelos crimes de homicídio duplamente qualificado, fraude processual, destruição e ocultação de cadáver, formação de quadrilha e aborto; foram presos Rosemere Aparecida Ferreira, apontada pela polícia como a chefe do grupo, o falso médico responsável pelo aborto, Carlos Augusto Graça de Oliveira, e Luciano Luis Gouvêa Pacheco, suspeito de coordenar o plano para ocultar o corpo de Jandira. 

Na última sexta-feira, dia 22, a presidente e ministra do STF, Rosa Weber, votou a favor da descriminalização do aborto durante as 12 primeiras semanas de gestação. “A justiça social reprodutiva, fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada, revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida da mulher, comparativamente à criminalização”, chamou atenção a ministra em seu voto.

Depois do voto da Rosa Weber, o ministro Barroso pediu destaque ao julgamento, o que quer dizer que ele passa a ser votado presencialmente. 

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mareonline.com.br/e-preciso-legitimar-as-decisoes-sobre-o-corpo-feminino/

Descriminação e vulnerabilidade:

De acordo com dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021, divulgados no fim de março, as meninas e mulheres negras brasileiras têm 46% mais de chances de recorrer ao aborto do que as mulheres brancas. Ao chegar aos 40 anos de idade, 1 em cada 5 mulheres desse grupo já interrompeu a gravidez uma ou duas vezes, enquanto essa proporção entre brancas é de 1 para cada 7 (15,35%).

Atualmente, o aborto é legal no Brasil em apenas três casos: quando a gravidez é resultado de um estupro, a vida da gestante está em risco ou o feto tem diagnóstico de anencefalia. O fato de o aborto ser ilegal na maioria das situações, no entanto, não impede a sua prática. E mesmo para as situações em que há legalidade para a interrupção da gestação, a criminalização torna o processo muito desafiador para mulheres, incluindo jovens e até mesmo crianças, vítimas de abuso. O código penal criminaliza as mulheres – uma mulher que tenha realizado um aborto pode ser presa por até 3 anos, e quem a ajuda pode ser criminalizado por 4 anos. 

Educação, informação e saúde:

O encontro realizado na última segunda integra um projeto de fortalecimento da justiça reprodutiva na Maré, da Casa das Mulheres da Maré. O projeto busca fortalecer as condições de acesso e efetividade de direitos reprodutivos e o direito ao aborto previsto em lei na Maré por meio de atividades de mobilização territorial, serviços de acolhimento, pesquisa e incidência política.

Uma das ações concretas da iniciativa é uma pesquisa que está sendo iniciada também na semana que marca a luta latino americana pela descriminalização, sobre o fenômeno do aborto entre mulheres de 18 a 39 anos moradoras das 16 favelas da Maré. O objetivo é traçar a magnitude do aborto entre as mulheres, com uso das técnicas de urna secreta e de entrevistas estruturadas face-a-face, conforme metodologia utilizada na Pesquisa Nacional do Aborto (PNA).

Casa das Mulheres mobiliza ações de fortalecimento à justiça reprodutiva de mulheres da Maré. Foto: Gabi Lino

Maré terá debate com candidatos ao conselho tutelar nesta quinta-feira

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Debate com candidatos ao conselho tutelar será promovido pela Redes da Maré

Andrezza Paulo e Teresa Santos

Maré de Notícias #152 – setembro de 2023

Quem acha que em 2023 não haverá eleição precisa saber que, no dia 1º de outubro, ocorrerá um pleito importantíssimo: a escolha dos conselheiros tutelares. A participação da população da Maré é fundamental para eleger representantes das 16 favelas no Conselho Tutelar de Bonsucesso, que abrange Bonsucesso, Cidade Universitária, Complexo da Maré e Manguinhos (Leopoldo Bulhões). A última eleição teve apenas 1.628 votantes.

O Conselho Tutelar foi criado em 1990, junto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é definido no documento como uma entidade autônoma, vinculada ao município. O desconhecimento do papel do órgão gera equívocos em relação à sua função. Um dos mais comuns é de que o Conselho Tutelar só atua em casos de violência e negligência de crianças e adolescentes. Na verdade, a atuação dos conselheiros é ampla e visa garantir também direitos básicos, como educação e saúde.

Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), são mais de 30 mil conselheiros atuando em todo o país, eles são eleitos pela comunidade de cada região, a cada quatro anos.

Debate:

A Redes da Maré, por meio de sua área de Incidência Política, irá apoiar um debate com as candidatas e candidatos para conselheira e conselheiro do território. O encontro acontece hoje, 28 de setembro, às 18h30, no Galpão do Espaço Normal (Rua 17 de Fevereiro, 237).

Equilíbrio

Liane Maria Braga da Silveira é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e uma das coordenadoras e organizadoras do livro Teoria e Prática dos Conselhos Tutelares e Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (Editora Fiocruz e EAD/ENSP).

Segundo ela, “o conselheiro situa-se num lugar mais próximo à sociedade, mas, ao mesmo tempo, dialoga com a justiça. É neste equilíbrio que mora a importância fundamental da participação da sociedade na escolha dos conselheiros tutelares”.

Na prática, é função do conselheiro tutelar assegurar-se de que as crianças e adolescentes tenham seus direitos assegurados pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo poder público. Ele fiscaliza instituições que prestam atendimento a crianças e adolescentes e também pode fazer visitas domiciliares, quando recebe denúncias de violência física, psicológica e sexual, negligência, abandono etc.

Garantia de direitos

O órgão também pode e deve ser acionado em situações nas quais o cidadão precisa da intervenção para fazer valer seus direitos. Assistida pelo Conselho Tutelar de Bonsucesso, Natália Amanda é moradora da Nova Holanda e conta que os conselheiros a auxiliaram em momentos muito difíceis.

“Minha casa pegou fogo em 2018 e eles me ajudaram com tudo. Conseguiram vagas nas escolas, atendimento no posto de saúde, cesta básica, e ainda encaminharam a gente para tirar documentos e nos inscreveram no Bolsa Família”, conta.

Desafios

Lidiane Malanquini, assistente social e articuladora da área de Incidência Política da Redes da Maré, defende que deveria ser criado um Conselho Tutelar que abrangesse apenas a Maré, por conta da sua dimensão e seus mais de 140 mil moradores. Desta forma, os conselheiros conseguiriam fazer melhor o seu trabalho de acolhimento, atendimento, articulação e prevenção às violências e negligências.

Saiba onde votar neste domingo, acessando o link: https://eleicaoctca.pcrj.rio

Doces contra a intolerância: tradição de São Cosme e Damião é arma na luta contra o racismo

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A celebração da infância, da saúde e da vida aparece com frequência, provando que a data tem um sentido maior, que vai além da distribuição dos saquinhos. 

Foto: Patrick Marinho

Andrezza Paulo, Luana Domingos e Millena Ventura (Centro de Artes da Maré e Casa Preta da Maré)

Maré de Notícias #152 – setembro de 2023

“Tia, tá dando doce?” Essa é uma pergunta comum no dia 27 de setembro pelas ruas das 16 favelas da Maré. Crianças e adultos com mochilas nas costas seguem em peregrinação em busca de alguém que esteja “dando doce”. A oferta de saquinhos estampados com a imagem de São Cosme e São Damião e cheios de gostosuras no dia de comemoração dos santos gêmeos é uma prática tradicional carioca, especialmente das favelas e do subúrbio.

Na Maré, a tradição continua viva — mas, segundo relatos, sem a força que antes carregava, o que pode ser explicado pelo alto número de desempregados, o aumento do preço dos doces, os reflexos da pandemia e pela diminuição do número de espaços de religiosidade afro-brasileira na favela. 

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Alegria e fé

Entregar doces pode ter os mais variados motivos, uma vez que é uma data comemorativa em diversas religiões. Uma das razões mais comuns para a prática é o cumprimento de promessas para os santos. 

Os gêmeos (cujos nomes verdadeiros eram Acta e Passio) eram médicos sírios que atendiam gratuitamente , como sinal de fé em Jesus Cristo. Curavam os enfermos não só com o conhecimento médico como também com orações e milagres. 

Devido à perseguição aos cristãos na época, os médicos foram decapitados em 27 de setembro, provavelmente entre os anos 287 e 303. Tanto eles quanto seus três irmãos e sua mãe se tornaram mártires, reverenciados tanto pela Igreja Católica.

São Cosme e São Damião são os patronos dos médicos e farmacêuticos, e sua relação com a medicina fez com as orações daqueles que precisam de bênçãos na saúde sejam direcionadas a eles.

Sincretismo

No Brasil, o culto aos santos foi introduzido pelos portugueses. O sincretismo religioso os relacionou aos Erês na umbanda e ao orixá Ibeji no candomblé. Segundo historiadores, a devoção marcante principalmente no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife vem de dois fatos: um grande número de irmandades católicas e a presença forte de religiões de matrizes africanas nessas cidades.

No candomblé, o mês de setembro é de celebração aos Ibeji, orixás gêmeos que simbolizam o nascimento e a vida. A comemoração se dá por meio de festas com a oferta do tradicional caruru, um prato que tem como ingredientes principais quiabo, camarão seco e azeite de dendê.

Na umbanda, a data tem sentido parecido, pois é o momento da Ibejada, a legião de êres (crianças) que trazem alegria. O Doum é a criança no meio dos santos que aparece em algumas imagens. 

Fotos: Affonso DaLua | Editorial São Cosme e São Damião com os meninos João Pedro e Peterson, moradores da Nova Holanda

Sorriso infantil

Há também aqueles que oferecem doces para manter tradições familiares ou apenas ter o prazer de ver uma criança sorrindo. A celebração da infância, da saúde e da vida aparece com frequência, provando que a data tem um sentido maior, que vai além da distribuição dos saquinhos. 

Um dos pontos de entrega de doces na Maré é o do coletivo Papo de Laje. Ricardo Xavier, de 28 anos, é um dos criadores do coletivo e morador da Vila dos Pinheiros. “Todo ano eu entrego doces no Ilê Asé Oyá Inã, onde sou filho de santo, e na porta da minha casa. Com o Coletivo Papo de Laje, distribuímos saquinhos em parceria com projetos que atendem crianças na Maré.”

Cristina Martins, de 51 anos, moradora da Nova Holanda, conta que no passado a data era muito importante para as crianças da favela. “Minha avó distribuía saquinhos todo dia 27 de setembro, e depois essa tradição continuou com a minha mãe.

Ela se lembra da “Praça do Valão com filas quilométricas de crianças para receber o seu doce, que era dado com muito carinho e devoção a Cosme e Damião”.

Ricardo também entende a importância da entrega dos saquinhos para as crianças: “Isso resgata a alegria que diariamente é tirada das nossas crianças. Elas são diretamente impactadas por toda questão política que existe dentro do nosso território. Levar doces para elas é fazer com que elas lembrem que onde moramos é também lugar de alegria e paz.” 

Resistência 

Ricardo e Cristina são enfáticos ao descrever o preconceito existente quanto à oferta de doces, muitas vezes associada pelos intolerantes como sendo “práticas malignas”. Esse tipo de postura não é pontual: ele vem crescendo em todo o Brasil. 

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, nos últimos dois anos houve um aumento de 45% de crimes em razão da religião, sendo praticantes daquelas de matriz africana as maiores vítimas. 

Em 2020, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) contabilizou mais de 1.300 casos notificados de intolerância religiosa. Esse cenário contraria a Constituição Federal, que assegura o direito à fé e ao exercício pleno da religião por todos os brasileiros. 

Mesmo que a Lei n° 11.635/2007 tenha instituído nacionalmente o 21 de janeiro como o Dia de Combate à Intolerância Religiosa, poucos avanços aconteceram na prática. Apenas em 2023, o crime de intolerância religiosa foi equiparado ao crime de racismo. 

A data presta uma homenagem à memória da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, na Bahia. Seus problemas de saúde se agravaram depois de ser física e verbalmente agredida por seguidores da Assembleia de Deus dentro de seu próprio terreiro. Mãe Gilda de Ogum morreu  aos 65 anos, vítima de um infarto fulminante . 

Racismo religioso

É importante ressaltar que o preconceito contra religiões de matrizes africanas nasce de um lugar diferente daquele onde surgem os que atingem outras religiões. O racismo religioso é aquele contra as religiões que tem raízes africanas e, consequentemente negras, e é caracterizado pela extrema violência.

Ele se manifesta de diferentes formas: agressões a adeptos dessas religiões, depredação de espaços religiosos, negação de direitos, impedimento de regularização de espaços de manifestação de fé e até mesmo prevaricação (quando funcionários do Estado se negam a registrar e investigar denúncias de intolerância religiosa).

A entrega de saquinhos de doces no dia de São Cosme e São Damião se torna, assim, uma prática de resistência cultural e religiosa. O eixo Arte, Cultura, Memórias e Identidades da Redes da Maré vem, desde 2020, realizando atividades no dia 27 de setembro, buscando aumentar o diálogo sobre o tema e fortalecer práticas culturais faveladas. 

Em 2021, mais de 50 pessoas se reuniram na Lona Cultural Hebert Vianna, na Nova Maré, para um diálogo inter-religioso sobre racismo e possibilidades de superação, com um encerramento festivo com apresentação de Sabrina Sant’anna em um espetáculo de dança afro como um elemento de celebração da vida.

Como denunciar

Um dos desafios ao combate do racismo religioso é a subnotificação dos casos. Se você foi vítima ou testemunha de algum caso, saiba onde denunciar. 

Disque intolerância – OAB/RJ 

Telefone: 2272-6150.

email: [email protected]

Prefeitura do Rio 

WhatsApp: (21) 3460-1746

Central de Atendimento ao Cidadão: 1746 

Rua Afonso Cavalcanti, 455 — Cidade Nova 

Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) 

Telefones:   2333-3629 / 2333-3633 /  98596-7309

Rua do Lavradio, 155 — Centro

Maré de Direitos 

Telefone: 99924-6462

Direitos básicos para primeira infância na Maré são negados, revela pesquisa

Pesquisa Primeira Infância nas favelas da Maré será lançada hoje pela Redes da Maré

Foto: Douglas Lopes

Jéssica Pires

A Redes da Maré lança nesta quarta-feira, 27 de setembro, um diagnóstico inédito sobre como vivem as crianças de 0 a 6 anos nas favelas da Maré.

A pesquisa apresenta informações detalhadas sobre esta população, que representa 12,42% dos moradores da Maré (de acordo com o Censo Maré, de 2013, cerca de 15  mil crianças entre 0 e 6 anos vivem no território). Um diagnóstico que reafirma a necessidade da implementação de políticas públicas que considerem as especificidades, nuances, características e respostas do território para os diferentes desafios enfrentados cotidianamente.   

Ao todo, foram aplicados 2.144 questionários com responsáveis de crianças em visitas domiciliares durante a pandemia de Covid-19, além de entrevistas com  profissionais de redes de proteção e apoio à primeira infância (professores,  assistentes sociais e profissionais de saúde).  

“Estes dados demonstram uma demanda por uma rede sólida e permanente de  proteção social na Maré e reforçam a necessidade urgente do Poder Público garantir  direitos básicos para as crianças de favelas, direitos que não estão sendo efetivados  e são negados a esta população”, afirma Eliana Silva, diretora da Redes da Maré e  coordenadora da pesquisa. “Ter um diagnóstico com esta amplitude nos dá condições  de pleitear, de forma mais assertiva, ações concretas para enfrentar as muitas  dificuldades que perpassam a vida de uma criança na Maré”.  

Direitos básicos negados:

O nível de dificuldade de acesso às políticas públicas, como a saúde, a assistência social e a educação chegou a 61% em uma das favelas da Maré, de acordo com a pesquisa (61% dos entrevistados da favela Parque Maré revelaram ter dificuldade ao acesso a saúde – a média geral do nível de dificuldade para acesso à saúde, entre as favelas da Maré foi de 47%, de acordo com a pesquisa).

Ainda sobre a saúde, as principais causas de mortes de crianças na primeira infância informadas nas entrevistas incluem broncoaspiração, problemas cardiorrespiratórios, pneumonia, problemas no parto, desnutrição e erro médico, de acordo com a pesquisa.

O acesso à educação também segue desafiador. 25,6% das pessoas entrevistadas relataram dificuldades em termos de ingresso nas creches e na educação infantil.

Práticas de cuidado, violência e lazer:

Uma análise sobre as formas e circunstâncias das práticas de cuidado territoriais também são apresentadas na pesquisa. Mães e avós como principais cuidadoras, a questão das figuras paternas e convivência com o pai, além de adoção e abrigo. Dados sobre o acesso ao lazer, a exposição das crianças à violência e o acesso à justiça também são trabalhados na pesquisa. A pesquisa apresenta uma lista de recomendações que podem ser entendidas como demandas para investimento do poder público.

Lançamento:

O evento de lançamento da pesquisa acontecerá hoje, dia 27 de setembro, às 16h, no Galpão Ritma (Rua Teixeira Ribeiro, 521 – Parque Maré). A pesquisa está disponível também na versão digital no site da organização.