Da intervenção federal na Segurança do Rio até a crise da pandemia: a presença dos militares no Brasil

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Uma panorama que remonta os últimos anos no Brasil e onde os militares estiveram em cada parte da História

Por Edu Carvalho, em 25/07/2021 às 00h. Editado por Tamyres Matos 

“Temos a convicção de que trilhamos um caminho difícil e incerto, mas cumprimos a missão”, afirmava com ênfase o general Walter Braga Netto, em uma cerimônia simbólica no dia 27 de dezembro de 2018, quatro dias antes da posse de Jair Messias Bolsonaro como presidente da República. Foi Braga Netto o escolhido para ser o interventor que responderia pela ocupação militar na gerência da Segurança do estado do Rio de Janeiro. 

A decisão tinha sido assinada 11 meses antes, após Michel Temer, então presidente, retirar das mãos do governador Luiz Fernando Pezão o comando sobre as polícias no Rio. A publicação no Diário Oficial foi feita na manhã do dia 16 de fevereiro, dois dias depois do fim do Carnaval, com registros de tensões que terminaram em arrastões e ataques nos blocos, em sua maioria, na Zona Sul do Rio. Parte da classe média residente dos bairros mais abastecidos cobrava, com urgência, uma posição enérgica que trouxesse paz. 

“Houve uma falha nos dois primeiros dias, e depois a gente reforçou aquele policiamento. Mas eu acho que houve um erro nosso”, disse o então governador Pezão sobre o período. Combalido por um câncer desde 2016, Pezão personificava o estado abatido do Rio, sob crise financeira e um regime de recuperação fiscal. 

Operações na Maré: a presença dos militares durante a intervenção | Foto: Douglas Lopes

Mas a presença dos militares na gestão na terra do Redentor não foi a primeira. Sob a narrativa de trazer tranquilidade e controlar a criminalidade, as Forças Armadas começaram atuar no Rio em 2014. O local? O Conjunto de Favelas da Maré, que abarca cerca de 16 favelas. Ao todo, são mais de 140 mil habitantes. 

A estadia foi feita conforme pedido do governador Sérgio Cabral, hoje preso por corrupção e lavagem de dinheiro. O período militar na ocupação militar na Maré durou de 5 de abril de 2014 e durou até 30 de junho de 2015, com custo de R$ 1,7 milhão por dia aos cofres públicos.

Uma pesquisa coordenada pela Redes da Maré, com parceria das instituições britânicas Queen Mary University of  London e a Newton Fundation, revelou a opinião dos moradores a respeito da ação. “A ideia é chamar a atenção, pois a ocupação que houve aqui foi  extremamente controversa, pois era algo que respondia a uma demanda de combater a violência e trazer segurança pública, mas o que se viu com a pesquisa foi justamente o contrário”, disse a coordenadora geral da pesquisa naquele ano, Eliana Sousa e Silva

De acordo com Lidiane Malanquini, integrante da pesquisa, os moradores consideravam as perguntas da pesquisa um lugar para falar sobre o que via. “Ao mesmo tempo em que estava dando uma entrevista, também considerava a pesquisa um espaço de desabafo, de como ele percebia isso e talvez não encontrasse esse espaço de fala em outros lugares”, afirma. 

“A presença dos militares no governo sempre ocorreu num grau moderado. Mas, por outro lado, temos uma tradição no Brasil de intervencionismo militar, em que em diversos episódios eles intervieram na política, se considerando tutores da sociedade. Mais grave do que a presença dos militares em governos, é essa tradição de intervencionismo por meio da força e contra a Constituição”, pontua o historiador Carlos Fico, historiador brasileiro e especialista em História do Brasil República, com ênfase em temas como ditadura militar. 

Rio: a mesma praça, o mesmo banco

Com cenário de terra arrasada, as Forças Armadas retornavam ao Rio, mesmo sem nunca ter saído, vistas com bons olhos.  Em pesquisa coordenada pelo DataFolha, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Observatório da Intervenção, em março de 2018, um mês depois do início dos trabalhos, foi aferido que 76% da população se mostrava favorável à medida. É curioso observar que 69% das pessoas que apoiavam a intervenção não tinham notado diferença alguma na segurança da cidade desde a instalação dos militares. No panorama geral, 92% da sociedade dizia sentir medo em ser ferida ou morta por uma bala perdida, ou de ficar no meio do fogo cruzado entre criminosos e polícia. 

‘’Dá pra governar com o auxílio das Forças Armadas tal como determina a Constituição e quando convocada pelo presidente da República’’, opina o ex-presidente Michel Temer, em entrevista ao Maré de Notícias.

Uma das que temia o aumento da violência, sobretudo nas favelas e periferias, era a vereadora do PSOL Marielle Franco. Cria da Maré e ativista pelos direitos humanos, Marielle havia sido nomeada como relatora da comissão na Câmara dos Vereadores do Rio para acompanhar o período militar naquele ano. Mas a vida da filha de Marinete Francisco e Antonio da Silva Neto, irmã de Anielle e mãe de Luyara, foi interrompida no dia 14 de março, a dois dias de completar o primeiro mês da intervenção, junto de seu motorista, Anderson Gomes. 

O episódio caiu como uma bomba no colo dos militares, marcando o período de ações. Apenas um ano depois, policiais da Divisão de Homicídios da Polícia Civil e promotores do Ministério Público do Rio de Janeiro conseguiram prender o policial militar reformado Ronnie Lessa, e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz, acusados pelo crime. Mas até hoje a principal pergunta do caso não foi respondida: quem matou matar Marielle?

O legado 

Segundo dados do Observatório da Intervenção, criado à época pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, o CeSec, a atuação dos militares deixou como legado na área um crescimento de 57% nos tiroteios. Além disso, apenas 6% da verba destinada – cerca de R$ 72 milhões de reais – foi usada, sendo a maior parte, R$ 61 milhões, destinada às Forças Armadas.

Durante os 10 meses de intervenção, foram monitoradas 711 operações e 221 ações de patrulhamento, impactando 296 locais – na maioria, favelas. 6.041 pessoas morreram
de forma violenta no estado naquele ano, com redução de apenas 1,7% em relação aos
registros de 2017. O interior do estado teve uma escalada de mortes, terminando a intervenção com 1.648 óbitos, valor +15,8% maior do que o registrado no ano anterior. Das mortes violentas ocorridas no Rio durante a intervenção, 22,7% foram cometidas por policiais e militares.

Em entrevista ao Correio Braziliense no fim daquele ano, a cientista social e coordenadora do Observatório, Silvia Ramos, comentou que a marca dos 10 meses de intervenção foi uma continuidade do plano de segurança pública que aposta em táticas de guerra. ‘’O Rio já conhecia esse modelo bélico. Nós achamos que deveriam ser resolvidos com inteligência, investigação, operações que preservem a vida dos moradores e dos próprios policiais’’, disse.

Um dos símbolos da atuação foi a Vila Kennedy, uma das favelas mais populosas do Rio e escolhida como “laboratório”, segundo o próprio interventor Braga Netto. De acordo com o balanço final, durante o tempo em que os militares estiveram no território, foram presos 21 suspeitos, recuperados 840 motos e 790 carros roubados, e apreendida uma tonelada de droga. Moradores relataram à época que, bastavam os agentes de segurança virarem as costas, os traficantes botavam as barricadas de volta nas ruas. Para a ‘VK’, como é conhecida, cerca de 1,4 mil militares foram designados. O Cojunto de Favelas do Alemão e a Rocinha também receberam os militares em 2018 e em anos anteriores.

Tanque do Exército derruba barreiras colocadas por traficantes em rua da Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Forças Armadas realizaram mais uma operação no local, com 900 militares responsáveis pelo cerco, pela estabilização da área e pela desobstrução de vias — Foto: Jose Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo

Por seus trabalhos à frente da intervenção, Braga Netto e Richard Nunes, que atuou como secretário de Segurança, receberam nobres condecorações, como a Medalha Tiradentes, geralmente entregue a pessoas que prestaram relevantes serviços ao Estado.

A volta dos que nunca foram: militares e Bolsonaro

Não há como dissociar o governo de Jair Bolsonaro e a presença, em grande escala, de militares, sobretudo nos cargos de alto poder. Mas não é só na linha de frente que eles estão. De acordo com um levantamento recente feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a quantidade de militares da ativa e da reserva ocupando cargos civis no Governo Federal mais do que dobrou nos primeiros anos da gestão Bolsonaro. Em 2018, o número era de 2.765 militares em cargos civis no Executivo federal, já no ano seguinte, eram 3.515 cargos destinados a servidores oriundos da caserna. Em 2020, o total chegou a 6.157 no mês de julho, um aumento de 122%

Atuando como ministros diretos, somam-se nomes como tanto no passado como no presente de Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno, Fernando Azevedo e Silva, Tarcísio Gomes de Freitas, Wagner Rosário, Bento Albuquerque, Jorge Oliveira, Marcos Pontes Carlos Alberto dos Santos Cruz e um nome já conhecido no Rio: Walter Braga Netto.

Porém, a presença mais conturbada foi a do general Eduardo Pazuello, que, após responder interinamente pelo Ministério da Saúde por quatro meses, com a saída de Nelson Teich, foi chefe da pasta até março deste ano. Sob sua gestão, o agravamento da crise sanitária ocasionada pelo coronavírus, representada pelo colapso em Manaus, no início do ano. Como mais um ‘’laboratório’’ criado sob gestão de um militar, agora para imunidade de rebanho, a capital amazonense chegou a ficar sem oxigênio e insumos nos hospitais, com anuência do Ministério da Saúde. 

Manaus (Bruno Kelly/Reuters)

No lugar do general, hoje Secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, entrou o cardiologista Marcelo Queiroga.

CPI da Covid: fardados na mira

A ineficiência da gestão de Pazuello na Saúde ficou ainda mais perceptível com as investigações da CPI da Covid, que tramita no Senado Federal, deflagrando a omissão dos militares presentes na pasta. Um deles é Elcio Franco, que foi secretário-executivo do Ministério da Saúde durante sua gestão. Pesa sobre ele a importação da vacina indiana Covaxin, feita com contrato de R $1,6 bilhão de reais, suspenso somente depois de terem sido averiguadas suspeitas de ilegalidade. Mesmo com isso, Elcio ocupa o cargo de assessor especial da Casa Civil. 

A CPI, que neste momento está em recesso, também investiga a participação de pessoas oriundas do Exército em uma suposta negociação de 400 milhões de doses do imunizante produzido pelo laboratório britânico AstraZeneca e a empresa americana Davati, representada no Brasil pelo cabo da PM Luiz Paulo Dominghetti Pereira.

Democracia ameaçada: notas militares e a palavra ‘golpe’

“Fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo. Eu não tenho nem notícias disso na época da exceção. O Figueiredo morreu pobre, o Geisel morreu pobre. Agora a Força Aérea Brasileira, o coronel Guerra, coronel Pazuello… Membros militares das Forças Armadas”, disse o presidente da CPI da Covid, Omar Aziz. Era o que faltava para o ar pesar. Com risco de penalização aos militares, as Forças Armadas aumentaram o nível de tensão no país. 

Horas após a fala durante a sessão, o Ministério da Defesa tratou de divulgar uma nota, rebatendo a declaração. “Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável. A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições pertencentes ao povo brasileiro e que gozam de elevada credibilidade junto à nossa sociedade conquistada ao longo dos séculos“, trazia o texto. 

Muitos analistas políticos viram o caso como o início de uma crise maior, mas não sabiam o que ainda estava por vir. Em entrevista ao O Globo, o comandante da Aeronáutica, Carlos Alberto Baptista Junior, em caráter intimidador, disse que a nota era um alerta. ‘’Nós não enviaremos 50 notas. É apenas essa’’, frisou. 

A fala reafirmou a iminência de um possível golpe, a partir do alinhamento do mais alto escalão das FAs com o governo Bolsonaro. Para Carlos Fico, não há chances de uma ruptura. ‘’São indicadores de uma fragilidade institucional. Eu não creio que haja ameaça propriamente de um golpe, até porque está sendo tão falado, tão comentado, e não só um golpe tradicional, mas como, eventualmente, Bolsonaro não consiga a reeleição, uma rebelião das polícias militares’’. Para ele, a circulação do tema pode atuar de maneira preventiva pela população. ‘’A sociedade vai se dando conta desses riscos constitucionais e vai criando sistemas de defesa para isso. Creio que a exposição pública de tantos erros e tantas ameaças acabam tendo efeito preventivo. Quem vai dar um golpe não fica dizendo: “eu vou dar um golpe amanhã”. Isso não existe’’, pontua.  

Já para o ex-presidente Michel Temer, a hierarquia e separação das entidades está baseada na Carta Magna do país. ‘’Ao que sei, fruto da minha experiência governamental, é que as Forças Armadas estarão sempre cumprindo os termos da Constituição Federal. Portanto, obedientes ao Estado Democrático de Direito’’, enfatizou o ex-presidente. 

Perguntado se acredita numa eventual diminuição da participação dos militares em cargos de comando em governos futuros, Temer foi direto. ”Depende de quem seja eleito”.

Braga Netto, um personagem ainda sobre o refletor

Segundo reportagem publicada pelo jornal O Estado de São Paulo no dia 22, das repórteres Vera Rosa e Andreza Matais, no último dia 8, uma quinta-feira, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), recebeu um duro recado do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, por meio de um importante interlocutor político. O general pediu para comunicar, a quem interessasse, que não haveria eleições em 2022, se não houvesse voto impresso e auditável. Ao dar o aviso, o ministro estaria acompanhado de chefes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

A publicação da matéria estremeceu Brasília, repercutindo em todas as três esferas de poder. Perguntado sobre o conteúdo da matéria, o ministro da Defesa disse que é uma “invenção”.

Na sexta, 23, o colunista do Metrópoles Guilherme Amado publicou que Braga Netto recebeu R$ 100,7 mil de salário líquido no mês passado. Questionado, o Ministério da Defesa afirmou que esses valores são uma parcela do 13º salário e pagamentos retroativos desde que o governo Bolsonaro liberou a remuneração acima do teto salarial no fim de abril.

O tema não termina aqui

Se você quer saber mais sobre a presença histórica dos militares na Segurança Pública e em outras âmbitos, vale ler dois livros que dialogam com o tema. O primeiro é da jornalista Gizele Martins, chamado ‘Militarização e censura: a luta por liberdade de expressão na favela da Maré’, publicado pela Editora NPC. Ela narra o período da ocupação do Exército na Maré nos anos de 2014 e 2015, enquanto profissional e também moradora do local. A obra está em fase de adaptação para o teatro.

A também jornalista e co-fundadora da Agência Pública, Natália Viana, acaba de publicar DANO COLATERAL: A intervenção dos militares na segurança pública”, pela Companhia das Letras. O pontapé inicial do livro é o domingo de 7 de abril de 2019, no qual militares do Exército dispararam mais de oitenta tiros contra o carro onde estavam o músico Evaldo Rosa e sua família. Evaldo morreu no local. O catador de recicláveis, Luciano Macedo, que tentou socorrer a família, também foi atingido e morreu no hospital dias depois.


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