Existe o aborto legal, mas regra ainda é punir

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Em evento de combate à violência sexual, especialistas apontam que mulheres ainda encontram dificuldades para realizar o procedimento, mesmo em casos permitidos pela lei

Por Ana Beatriz*, Andrezza Paulo* e Edith Medeiros*, em 29/09/2022 às 12h37

A interrupção da gravidez é reconhecida pelo Código Penal brasileiro desde 1946. Porém é interpretada a partir da ideia de crime. O aborto é autorizado em casos de má formação fetal (anencefalia); quando a vida da gestante está em risco (em ambos os casos é necessário um laudo médico); se a gravidez é fruto de um estupro e em caso de gestação em menores de 14 anos, visto que toda relação sexual com uma menina dessa idade é considerada por lei estupro de vulnerável. Embora sejam claras as situações que permitem o aborto, o estigma gerado a partir da interpretação do Código Penal resulta em dúvidas nos profissionais de saúde e discussões de caráter moral.

Para discutir o tema e fazer chegar a informação ao público feminino,uma das mesas da primeira edição do Ecoar! – Festival de Ativismo para Enfrentamento da Violência Sexual) abordou a justiça reprodutiva e o aborto legal, colocando em pauta os direitos reprodutivos; não somente no âmbito sexual, como no acesso à justiça. O evento ocorreu no último sábado (24), no Museu de Arte do Rio (MAR).

A conversa contou com a participação da Ana Teresa Derraik, médica ginecologista, obstetra, mestre em saúde da família e militante dos direitos sexuais e reprodutivos; Emanuelle Góes, doutora em saúde pública; e com Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética. A mediação foi de Julia Leal, assistente social e coordenadora da Casa das Mulheres da Maré.

As contradições da Justiça

O Brasil tem uma legislação restritiva em relação ao aborto. Em contraponto, tem altas taxas do procedimento, o que significa que as mulheres arriscam suas vidas em clínicas clandestinas, utilizando métodos não seguros, inclusive as que possuem o direito garantido. A interrupção da gestação passa por infinitos obstáculos que dificultam a realização do procedimento. De acordo com a advogada e membro do comitê coordenador do Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro (CLACAI) Gabriela Rondon, “a regra é punir e não auxiliar as mulheres. Embora a legislação permita o acesso ao aborto, as mulheres estão muito longe de garanti-lo na prática.”

A lei não é eficaz, nem mesmo para as situações que se enquadram; a lei não se cumpre. Existe um grande abismo entre o que é previsto na lei e o que é feito de fato. 

Gabriela Rondon, membro do comitê coordenador do Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro (CLACAI).

Barreiras de Acesso

O Brasil, país de dimensões continentais, tem poucos polos de atendimento, concentrados em regiões com maior poder aquisitivo. As mulheres que moram mais distante dos centros que oferecem esses serviços ficam mais expostas a complicações. Para todos os especialistas presentes no Ecoar!, o aborto não deve ser encarado como uma questão moral, mas de saúde pública.

Segundo Emanuelle Góes, vivenciamos os vazios assistenciais, onde as ofertas dos serviços estão em locais aos quais as mulheres periféricas e indígenas não têm acesso. As estatísticas apontam que essas mulheres estão incluídas no maior percentual de notificação de violências e gravidez. Em contraponto, o serviço de interrupção é mais frequente para mulheres brancas. 

Não se pode falar em aborto sem mencionar os marcadores estruturais que causam distinções na atenção às pessoas, em decorrência da raça, por exemplo. A morte materna, em consequência do aborto inseguro, acontece com mais frequência com as mulheres negras. Para Emanuelle, a decisão do profissional de saúde está baseada no imaginário sustentado pelo sistema racista. A menina branca é vista como delicada e que precisa do cuidado e encaminhamento, enquanto a menina negra é vista como culpada.

O corpo racializado não tem direito e os indicadores de estigma e do racismo são cruciais para entender o aborto além da legalidade, a partir da justiça reprodutiva

Emanuelle Góes, doutora em saúde pública.

Justiça reprodutiva e o aborto legal no Brasil 

Durante a conversa, uma ouvinte da plateia se emocionou com as informações colocadas pelas convidadas da mesa. Uma mulher de 62 anos, que preferiu não se identificar, e foi ao encontro acompanhando a filha, contou que fez aborto há mais de 40 anos, guardando desde então um sentimento de culpa.

“Eu não estava preparada, não tinha condições de ter um filho. Guardei comigo durante todos esses anos a culpa por ter feito isso. Fui trabalhar na Fiocruz cuidando de crianças pra ver se isso poderia me redimir do monstro que eu sentia que era. Se eu mostrasse pra todo mundo que eu cuidava de criança, dava alegria a elas, ninguém iria me julgar pelo que eu fiz. Hoje eu vim aqui só pra acompanhar, sem saber do tema e agradeço muito por vocês estarem falando sobre isso”, desabafa.

A mulher, que emocionou as pessoas presentes, concluiu dizendo que não se arrepende, pois a decisão que tomou fez com que criasse tão bem a filha que tem hoje e finaliza dizendo que abortaria novamente se as condições fossem as mesmas da época.

A médica Ana Teresa Derraik ressalta a necessidade, nos casos em que a gravidez envolve violência sexual, que a palavra da mulher baste, “Como falar de aborto legal numa sociedade em que o homem tem a palavra final e as mulheres são postas em dúvida, deslegitimizadas e julgadas? A vontade da mulher sobre seu próprio corpo deveria ser suficiente. A opção pelo aborto não deveria ser carregada como fardo por uma vida inteira, mas encarada como escolha, uma decisão.”   

Em caso de aborto legal, procure uma das unidades de saúde abaixo:

Maternidade Maria Amélia, Maternidade Fernando Magalhães, Hospital da Mulher em São João de Meriti (coordenado pela Dra. Ana Teresa Derraik), Hospital da Mãe, em Mesquita, e Hospital Adão Pereira Nunes.

*Comunicadoras do Laboratório de Formação em Jornalismo do Maré de Notícias

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