Existem leis que regulamentam o ensino de cultura afro-brasileira e leis punitivas para o caso de injúria racial que são considerados como racismo
Por Gabriel Pereira* e Hélio Euclides
No Brasil cada um tem o direito de professar a sua fé ao seu modo. Isto se dá porque vivemos em um país laico. Entretanto a realidade, principalmente dos povos de terreiro, mostra que a liberdade religiosa é um ideal distante.
A pesquisa Egbé (comunidade em Yorubá) – realizada pela iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial (DMJRacial)- revelou que na Zona Oeste, na região central e na Baixada Fluminense, 75% dos terreiros já sofreram racismo religioso e todo terreiro fala sobre segurança pública. Os territórios estudados foram escolhidos por registrarem os maiores índices de casos de racismo religioso no Estado.
Um caso recente ocorreu com o cantor Rogerinho Ratatuia, cria da Maré, que levou um susto no mês de setembro. Ao postar nas redes sociais vídeo de um show no qual exibe uma performance artística do colega Celynho Show, que interpretava a entidade Zé Pilintra, ambos foram alvos de intolerância religiosa. Os comentários foram carregados de falas preconceituosas.
Rogerinho respondeu aos preconceituosos com o seguinte comentário: “Aos intolerantes que não respeitam a religião alheia, que procurem evoluir”. Tanto o cantor quanto o artista preferiram não dar entrevista com receio de serem entendidos como fazendo uma provocação. O caso foi registrado na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). Celynho e Rogerinho tiveram que ir à delegacia duas vezes ao descobrir que a unidade fica fechada aos finais de semana.
Definido por discriminação, hostilização e até mesmo atos de violência contra pessoas de diferentes crenças religiosas, a intolerância religiosa é motivada por preconceitos, estereótipos negativos ou simplesmente pela falta de compreensão e respeito pelas diferentes religiões e crenças. Carlos André, um dos coordenadores da Casa Preta da Maré, projeto da Redes da Maré, explica que é preciso entender a questão histórica.
“A população negra vem para esse território de maneira forçada no processo do tráfico transatlântico de escravos. Algo bastante cruel, assim como foi o processo de castigos físicos de não respeito às suas identidades, ancestralidade e suas práticas culturais.”
Carlos André, um dos coordenadores da Casa Preta da Maré
Para o pesquisador, a linha do tempo explica muito do que a população negra sofre hoje. “Os escravizados não poderiam professar sua fé, na verdade eles o faziam escondido. Também eram obrigados a estarem em cerimônias católicas. Imagino que deveria ser um ambiente de muita negociação, e de negar-se. As religiões de matriz africana, todas elas criadas aqui no território do Brasil, eram proibidas de professar a sua fé.”
Outro exemplo da racismo religioso ocorreu por parte da polícia. Os policiais invadiam os terreiros, baseados em códigos penais promulgados em 1890 e 1940 para perseguir a população negra e criminalizar as religiões. Profanadas por eles, os objetos sagrados foram apreendidos que, desde 1938, permaneceram alojados em caixas de papelão no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em um acervo denominado Magia Negra. Recentemente os mais de 500 itens que contam a história do candomblé e umbanda foram transferidos para o Museu da República para uma exposição que se chamará Nosso Sagrado.
A intolerância religiosa pode se manifestar de várias maneiras como: comentários preconceituosos ou insultos; ameaças verbais ou físicas; vandalismo em locais religiosos; discriminação no local de trabalho ou escolar; exclusão social; difamação pela internet; assédio religioso; recusa de serviços; agressão física e pichações ou símbolos de ódio religioso.
O nome certo do crime
Carlos André critica o termo intolerância.
“Pesquisadores se deram conta que racismo religioso é o termo mais apropriado. Quando você diz que você tolera uma religião é como se você agisse com benevolência, como se você permitisse a existência. Do ponto de vista político, entende-se hoje que não implica na garantia de direitos. Ao mesmo tempo, intolerância religiosa parece que suaviza, romantiza e esconde essa questão do racismo. O racismo religioso, na verdade, a criação desse termo foi para definir e descrever uma prática que existia por muito tempo sem nome. Isso é importante para o estado brasileiro, que vai conseguir entender e destinar políticas públicas específicas para esse problema. Então, na verdade, esse é o mesmo raciocínio quando há a criação de termos como trabalho análogo à escravidão, feminicídio e homofobia.”
Carlos André, um dos coordenadores da Casa Preta da Maré
A questão da liberdade de culto e da liberdade religiosa é conferida pela nossa Constituição Federal, afirma o coordenador da Casa Preta da Maré. “Esses cultos, essas cerimônias, as gírias, como é tratado esse momento do ritual, elas têm segurança jurídica. O candomblecista e o umbandista podem bater no peito e dizer quem ele é, qual é a religião que ele professa sem precisar ter medo de ser achincalhado ou zombado. Mas isso é no papel. A gente sabe que não é bem assim? As últimas notícias de terreiros demonstram que eles são queimados, que pessoas que têm as suas vestes até rasgadas e tem medo de caminhar com seus fios de conta ou com sua roupa branca. Tem regiões do Rio de Janeiro que não podem mais ter espaços de culto, porque é proibido.”
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Uma sociedade que exige mudança
Passos importantes para a reparação histórica na sociedade vieram há 20 anos, com as Leis 10.639/03 11.645/2009. Elas estabelecem, nas diretrizes e bases da educação nacional, a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira. “O combate ao racismo precisa ser feito por meio da educação, também nas escolas. As crianças precisam entender essa questão do respeito às diferenças e à diversidade. De modo que essas religiões, possam ser conhecidas. Esse mito de que elas estão ligadas à maldade, possa ser combatido o quanto antes. Além disso, elas precisam aparecer mais nos filmes, nos seriados e nas novelas”, destaca Carlos André.
Outra vitória importante veio este ano. A Lei 14.532/23 estabelece que as pessoas que cometem esse crime podem ser condenadas a cinco anos de prisão, alterou a tipificação do crime de injúria racial, passando a ser considerados uma modalidade do racismo.
“Com isso, a mesma lei transformou o dia 21 de março como o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas. Com isso já é possível ver mudanças, como lojas de grife muito famosas, que fazem suas coleções de camisas em homenagem aos orixás. Nas rodas de samba espalhadas pela cidade, tem sempre na maioria delas uma imagem de Ogum ou de São Cosme e São Damião.”
Carlos André, um dos coordenadores da Casa Preta da Maré
Como realizar denúncia sobre o ato de intolerância?
O professor e doutor Babalawô Ivanir dos Santos, diz que a intolerância religiosa é uma atitude social que repercute na vida cotidiana das pessoas “tanto nas escolas, nas relações de vizinhos, como no mundo do trabalho e, consequentemente, os ataques à cultura de origem afro-brasileira, que tem sido muito frequente, inclusive, na internet” comenta. Ele reforça a importância da denúncia desses crimes, investigação e diz que “Ministério Público deve, na verdade, oferecer denúncia ao Judiciário.”.
Delegacia: Pode-se dirigir à unidade mais próxima e relatar o incidente. De acordo com a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, pode haver variações nos horários de atendimento em delegacias específicas, e algumas menores podem ter horários limitados. Informações: http://www.policiacivil.rj.gov.br/ ou pelo número 197. A Decradi funciona de segunda a sexta, na Rua do Lavradio, 155 – Centro do Rio.
Disque 100: Serviço de denúncias de violações de direitos humanos, que acaba incluindo também o ato de intolerância religiosa. O serviço é gratuito e confidencial.
Ministério Público: Possui órgãos especializados em direitos humanos e discriminação, que ajudam com orientações sobre como prosseguir com uma denúncia.
Organizações de Direitos Humanos: Fornecem apoio e orientação sobre como denunciar o incidente. Uma das instituições que promovem o bem-estar, incluindo apoio psicológico, é o Projeto Maré de Direitos.
Defensoria Pública: Para obter assistência legal e orientação sobre como denunciar casos de intolerância religiosa.
*Gabriel Pereira é aluno do Curso de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em parceria com o Maré de Notícias e o Conexão UFRJ.