Vini Jr. resiste à expectativa do negro subserviente

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Atitudes do jogador são pedagógicas para o enfrentamento do racismo dentro e fora do esporte

O filme “Corra!” (“Get Out”, 2017) passa uma mensagem forte e explícita: a branquitude deseja o corpo negro, desde que sua cultura, sua história e sua relação com o próprio povo sejam mortas.

A obra retrata uma família branca que, por meio da jovem Rose (Allison Williams), alicia pessoas negras e as atrai para a sua casa de campo, onde um experimento macabro é conduzido. Ali, as vítimas são leiloadas, hipnotizadas e submetidas a uma cirurgia de transplante cerebral parcial, de modo que seus corpos passem a ser habitados por compradores brancos. Após o procedimento, o indivíduo negro segue existindo no subconsciente, mas adquire os comportamentos, a cultura, a vivência e as relações da pessoa branca.

A ficção de “Corra!” encontra paralelos com a realidade do Brasil, onde a população negra foi escravizada e submetida a um rito de desenraizamento dando voltas em árvores como a Baobá, de grande importância para a cultura desses povos. As vítimas eram separadas de seus familiares e conterrâneos, e então forçadas a adotar nomes escolhidos por seus algozes. Um processo violento em que o negro torna-se (do) branco.

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E o que isso tem a ver com o jogador Vinícius Júnior e os episódios racistas que tem vivido? Não tão simples de responder, mas também não tão complexo. “Vini Jr., apenas jogue bola. Toleramos o seu corpo aqui, gostamos do que faz em campo, desde que você se cale, tal como Pelé”. É possível enxergar essa fala como uma possível resposta de Javier Tebas, presidente da La Liga, para o jogador. Em entrevista para televisão, um torcedor rival afirma que acha o racismo errado, mas que acontece porque Vini Jr. é provocador. O jogador já precisou ir para as redes sociais defender até suas danças comemorativas nos jogos porque isso também já foi motivo para ataques.

Após enfrentamentos, Vini Jr. foi convidado pela FIFA a integrar um comitê de combate ao racismo no futebol | Foto: Reprodução Instagram

Em “Corra!”, a família branca alicia suas vítimas pois enxerga na população negra vantagens físicas, mas não intelectuais. Na vida real, quantos de nós não somos silenciados para conseguir “chegar lá”? No fim das contas, a branquitude segue repetindo a mensagem do filme: tolero seu corpo, mas não tolero você.

Pelé foi um corpo negro retinto que ganhou o título de Rei em um país estruturalmente racista. Ao longo de sua vida, o jogador foi criticado várias vezes pelo movimento negro por não ter se posicionado publicamente sobre a luta antirracista. Pelé começou a atuar profissionalmente ainda na década de 1950, não muito distante de um tempo em que jogadores negros passavam pó de arroz sobre a pele para parecerem mais claros e serem aceitos pelos clubes. O silenciamento de Pelé talvez tenha sido o preço que ele teve que pagar para conseguir “chegar lá”.

O ar racista que Vini Jr. respira na Europa é o mesmo ar que respiramos no Brasil. No pós-abolição, imigrantes europeus receberam benefícios governamentais para povoar o país e, ao entendimentos deles, para limpar a “mancha negra” que o caracterizava, fruto do tráfico transatlântico que havia trazido milhões de africanos escravizados para esta terra. Aos brancos, o Estado brasileiro ofertou empregos, moradia fixa e melhores condições de vida, enquanto proibia a entrada legal de indígenas e negros.

Vini Jr. não quer o preço do silêncio. Vini Jr. já chegou lá e continua falando, apontando diretamente para os racistas e pedindo punição. Cotado a melhor do mundo, atuando pela elite do futebol europeu, milionário e prestes a completar 23 anos, Vini Jr., na visão de muitos, já poderia parar. Afinal, está rico. Mas não se trata de dinheiro. Vini Jr. decidiu não dar só o seu corpo enquanto espetáculo para o que faz, mas também sua voz, sua dança, sua luta e sua origem de cria de São Gonçalo —sem permitir que apaguem essas heranças culturais e ancestrais.

Depois que levantou sua voz e ousou rebater todos que ainda o culpavam, Vini Jr. devolveu a essas pessoas o que elas tinham perdido nos últimos anos: a vergonha, o constrangimento e o medo de sofrer punições. O presidente da La Liga, por exemplo, costumava contrariar o jogador publicamente, dizendo que a Espanha não é um país racista e que os episódios de racismo são apenas casos isoladas, Agora, o cartola dá entrevistas para pedir desculpas e pedir o endurecimento das leis para punir os racistas. Javier Tebas teve que guardar o seu racismo para si para evitar maiores danos à sua reputação.

Há quem diga que as reações de Vini. Jr mostram uma pessoa que perdeu a humildade —adjetivo que, quando utilizado para descrever o corpo negro, costuma vir atrelado às ideias de servidão, inferioridade e subserviência. Mais uma vez, retornamos a um lugar de silenciamento. Quando se é uma pessoa negra, sobretudo de pele escura como Vini Jr, tentam nos colocar em uma caixa para preservar uma relação de subalternidade. É como diz Emicida em “Mandume”: “Eles querem que alguém que vem de onde nós vem seja mais humilde, baixe a cabeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda… Eu quero é que eles se f*.” Por isso, Baila, Vini Jr!.

Texto publicado originalmente pelo PerifaConnection na Folha de São Paulo

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