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O papel da mobilização comunitária na busca por justiça e paz em 30 anos de Maré

‘Marcha Basta de Violência’ que completa 7 anos reuniu mais de 5 mil pessoas. O evento é um marco significativo na história da comunidade

Edição #160 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Henrique Silva

O direito à segurança pública para a população das favelas sempre foi um tema muito discutido entre especialistas, autoridades políticas e acadêmicas, visando compreender a relação direta desse direito a partir de experiências desastrosas dentro da política pública para as favelas. Muitas vezes, a resposta é resumida às operações policiais, o que gera uma falta de compreensão da totalidade das questões de segurança pública e sua dimensão estrutural.

Para discutir a garantia do direito à segurança pública como um direito humano, é necessário questionar a longa história de hierarquização da humanidade, que, por sua vez, levou à normalização de processos desumanizantes voltados para grupos específicos. Para os habitantes de favelas, na maioria negros e pobres, essa desumanização é algo histórico, remontando ao período colonial.

O papel da mídia

Uma das principais ferramentas para o fortalecimento dos estereótipos dos moradores de favelas como pessoas indignas e violentas foi disseminado pela Grande Mídia. O jornal impresso por muitos anos foi um dos principais veículos de comunicação e desempenhou esse papel de reforçar estereótipos dos moradores de favelas. 

Para exemplificar, em 1982, uma matéria do Jornal do Brasil teve grande repercussão na Maré, e provocou um desejo de resposta por parte dos moradores. A jornalista Lilian Newlands, após passar um mês na favela Nova Holanda, publicou uma matéria intitulada Na Nova Holanda, a malandragem é continuar vivo. Ao longo da matéria de três páginas, o foco principal foi reportar a dinâmica de violência como característica da vida dos moradores da favela.

A reportagem não foi bem recebida por um grupo de moradores, que fizeram uma mobilização e produziram uma carta em resposta, destacando os efeitos desses estereótipos propagados na mídia. A carta foi enviada para redação do Jornal do Brasil, que a publicou na íntegra. Um dos trechos dizia:

“Será que a repórter sabe que aqui em Nova Holanda moram pessoas que trabalham sol a sol para conseguir seu sustento e de sua família? Será que ela sabe que existem jovens que trabalham, estudam e, no final de semana, ainda tentam fazer algo pela comunidade e que foram mais marginalizados pela reportagem? Podemos citar grupos de pessoas que procuram o bem da comunidade como: a Escola Nova Holanda, a Igreja, a Golden Cross, Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), a Creche Casulo.”

Reportagens como essa continuam a existir e a produzir visões estereotipadas sobre as favelas. Jornais, rádios, internet e programas na televisão exibidos no horário do almoço, trazem pautas sobre segurança pública que reforçam os espaços de favelas como um local onde as pessoas são violentas, imorais e criminosas.

Linha do tempo

Durante os governos de Leonel Brizola (1983-1987 e 1991-1994) foi implementada uma proposta de policiamento baseado na aproximação com a comunidade, que abriu novos espaços de diálogos entre as lideranças de favelas e os comandos das polícias. À época, a política foi considerada como um avanço no campo progressista sobre segurança pública.

Com o fim do governo Brizola, o modelo de segurança pública volta a ser destaque nas eleições para Governo do Estado e, ao longo dos anos 1990 e 2000, outra lógica de segurança pública se instaura. 

O governo Marcello Alencar trouxe para o comando da Secretaria de Segurança Pública o General do Exército Nilton Cerqueira, integrante da ala mais repressiva do período da ditadura militar.

Em sequência, os governos de Anthony e Rosinha Garotinho seguiram a mesma lógica, contando com um novo reforço no poderio bélico: o Caveirão, instituído como principal bandeira de governo. Este aparato nas operações policiais fez com que o número de mortos e feridos aumentasse durante esses governos.

UPP e Forças Armadas

Em 2007, o Rio de Janeiro recebeu a notícia que iria sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. A política de Segurança Pública foi a que mais recebeu investimento para propagar a sensação de segurança e garantir a realização dos megaeventos.

O governo do Estado do Rio lançou em 2008 o programa de Unidade Polícia Pacificadora (UPP), com objetivo restabelecer o domínio estatal nas favelas controladas pelos grupos armados. Na primeira fase da Pacificação, a polícia entrava nas favelas que seriam “pacificadas”, realizando operações e grandes incursões com uso de um potente material bélico, como tanques de guerra militares e helicópteros.

O conjunto de favelas da Maré, não chegou a receber uma UPP, no entanto, entre abril de 2014 a julho de 2015, a Maré foi ocupada pela – força de pacificação, com a incursão 2.500 soldados das Forças Armadas do Brasil, com a incumbência de atuar de maneira permanente nas ruas das favelas. As tropas realizaram patrulhas 24h por dia, instalaram postos de controle, com o intuito de fazer revistas corporais aos moradores. O resultado dessa política de segurança pública foram centenas de mortes nas favelas da Maré e da cidade do Rio de Janeiro.

Mobilização dos moradores 

É nesse contexto que Redes da Maré começa o trabalho de mobilização monitorando atividades, levantando denúncias de abuso de poder que se estenderam para as operações policiais. O resultado desse trabalho culminou na publicação do Boletim de Segurança Pública da Maré de 2016.

Desde o primeiro boletim até os dados mais recentes de 2023, foram registradas 138 mortes causadas pela ação policial nas favelas da Maré – sendo mais de 80% de pessoas negras. Uma dessas operações ocorridas no ano de 2016, que já durava mais de 12 horas no território, foi interrompida por ordem judicial após representantes das Associações de Moradores locais, ONGs e a defensoria pública do estado procurarem o plantão judiciário. 

A decisão inédita da Justiça visava proteger os 140 mil moradores da região, convocando os comandantes policiais para esclarecimentos. Esse episódio evidenciou a importância da mobilização dos moradores e da busca por justiça na defesa dos direitos das populações de favelas e periferias.

O resultado dessa articulação foi a obtenção da Ação Civil Pública da Maré, em 2017, o que reforçou a necessidade do engajamento da sociedade civil na garantia do direito à segurança pública dessas comunidades.

Marcha Basta de Violência 

Os primeiros meses de 2017 foram muito difíceis no Conjunto de Favelas da Maré, com 14 operações em três meses, 16 feridos e 12 mortes. Como resposta a essa violência foi criado pelas instituições e moradores do território o Fórum Basta de violência, outra Maré é possível!, que se empenhou em organizar uma marcha contra violência. 

A marcha completará 7 anos no dia 24 de maio deste ano, que reuniu mais de 5 mil pessoas, de diferentes bairros da cidade. O evento é um marco significativo na história da comunidade que reivindicou paz num ato público e político de mobilização realizado nas ruas da Maré.

Retrocessos

Em junho de 2019, a Ação Civil Pública (ACP) que tinha sido conquistada pelos moradores em 2017, foi suspensa a pedido do Estado pelo poder judiciário, sob a alegação de que o Estado deveria continuar a realizar incursões policiais sob seus próprios parâmetros, o que causou uma reação imediata da população da Maré. 

O Fórum Basta de violência se reuniu novamente para iniciar uma série de mobilizações, a fim de sensibilizar os juízes no sentido de rever a suspensão da ACP. Uma das propostas foi para que as crianças da Maré escrevessem cartas aos juízes sobre suas vivências durante os momentos de confrontos armados.

Neste processo de mobilização comunitária, foram escritas  mais de 1.500 cartas,  enviadas em sequência à presidência do Tribunal de Justiça. Ao mesmo tempo, a Defensoria Pública do Estado entrou com um recurso para o restabelecimento da ACP.

Uma das principais formas de resistir às violações de direitos causadas pela ausência de segurança pública e as operações policiais é a subjetividade e agenciamento crítico, explicitadas em cartas dos moradores da favela. Como resposta à reportagem do Jornal do Brasil e às 1.500 cartas escritas por crianças da Maré, mostramos a força da mobilização e incidência política comunitária como estratégias que emergem da necessidade de garantir e reivindicar a segurança pública como um direito em territórios favelados. 

Vale a pena ler de novo: 3 matérias que destacam a diversidade cultural na Maré

No dia 21 de maio, celebramos o Dia Mundial da Diversidade Cultural, uma data que nos convida a refletir e celebrar a riqueza cultural em diferentes cantos do mundo. Em homenagem a esta data, o Maré de Notícias resgata três matérias que destacam a essência da diversidade cultural nas favelas da Maré.

A primeira matéria, “Parque União é reconhecido como Polo Gastronômico e Cultural”, aborda o projeto de lei que regulamentou esse território, que tem atraído diversos públicos para a praça do Parque União com o objetivo de fortalecer a gastronomia e a economia local.

Em “É tempo de celebrar a herança cultural do folclore na Maré”, abordamos a importância de valorizar a cultura local também na educação. Unidades escolares no Salsa e Merengue e na Vila do Pinheiro promoveram eventos que contam com a participação ativa de alunos e seus responsáveis.

Por último, a matéria “Maré celebra cultura com diversidade e resistência” mostra o quanto as favelas da Maré são diversas e atuam em diferentes frentes da cultura, promovendo diversidade e resistência.

Essas matérias destacam como as diferenças culturais mostram a força vibrante e resiliente nas favelas da Maré, impulsionando o desenvolvimento econômico, a educação e a união comunitária. Celebramos, assim, o Dia Mundial da Diversidade Cultural reconhecendo e valorizando as múltiplas vozes e tradições que compõem a nossa Maré.

Território e raça: os impactos sociais divergentes além das favelas e periferias

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Flavinha Cândido*

No Brasil, a segregação racial não se limita apenas aos confins das favelas e periferias, mas estende suas raízes para além desses territórios classificados externamente como hostis ou marginalizados. Abdias Nascimento, renomado ativista e intelectual afro-brasileiro, e Lélia Gonzalez, socióloga e militante do movimento negro, denunciaram com veemência essa realidade, desmascarando a falsa democracia racial que persiste em nosso país.

Abdias Nascimento, em sua obra seminal “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, destaca como a segregação espacial e as disparidades socioeconômicas impostas às comunidades negras são reflexos de uma estrutura de poder que perpetua a opressão racial. Ele ressalta que, ao deixarem as favelas e periferias, os corpos negros são imediatamente confrontados com barreiras e preconceitos que reforçam a hierarquia racial vigente. Por sua vez, Lélia Gonzalez, em seus escritos e discursos, traz à tona a noção de “colonialismo interno”, argumentando que o racismo no Brasil é profundamente enraizado na mentalidade e nas estruturas sociais do país. Ela desafia a ideia de uma harmonia racial ao expor as desigualdades estruturais que permeiam todos os aspectos da vida cotidiana, inclusive além das fronteiras das favelas e periferias.

A verdade é que, quando um corpo negro e um corpo branco deixam as favelas ou periferias, cada um é recebido pelo racismo estrutural de maneiras diferentes, evidenciando o privilégio da cor branca em espaços sociais. Enquanto o corpo branco muitas vezes desfruta de acesso facilitado e tratamento preferencial, o corpo negro é submetido a suspeitas, discriminação e violência baseadas unicamente em sua cor de pele. Essa disparidade de experiências revela a persistência de uma estrutura racializada que perpetua a marginalização e a desigualdade.

É inegável que durante operações policiais ou conflitos entre grupos de civis armados ou milícias, todos os moradores dessas áreas sofrem, independentemente de sua etnia. No entanto, fora desses contextos, os negros são sempre alvos preferenciais. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva, divulgada em março de 2022 pelo Jornal Nacional, revelou que uma em cada três pessoas negras já sofreu racismo no transporte público, destacando como circular pelas cidades se torna um desafio para esses indivíduos, mesmo em ambientes supostamente neutros. Pense nos desafios de se deslocar numa cidade brasileira qualquer: transporte lotado, congestionamento, passagem cara. Tudo isso é verdade. Mas, se você é negro, no topo da lista, além desses problemas o seu incluí o de sofrer racismo.

É importante lembrar do caso de Evaldo dos Santos Rosa, brutalmente assassinado com 80 tiros enquanto estava em seu carro, ilustra a gravidade dessa realidade. O que poderia explicar tal ação? A cor da pele de Evaldo, um homem negro, foi o único fator que justificou o uso excessivo de violência. Outro exemplo alarmante é o caso de Karine Fernandes dos Santos Santana, uma mulher negra que foi à delegacia, em 19 de maio de 2017, para prestar queixa por calúnia e difamação, mas acabou sendo acusada de furto e não teve seu casaco devolvido pela polícia, mesmo após provar a propriedade da peça. Esses episódios evidenciam como a cor da pele influencia drasticamente a percepção e tratamento dispensados pela sociedade e pelas instituições, fora da favela e das periferias, o corpo negro é classificado como “o que pode cometer um crime”.

Djamila Ribeiro aborda o conceito de “privilegio da branquitude”, destacando como esse privilégio se manifesta quando alguém não é alvo de discriminação por sua cor.

É fundamental reconhecermos que a cor da pele continua a ser um fator determinante nas interações sociais e institucionais, perpetuando desigualdades profundas em nossa sociedade.

Em suma, é crucial desafiar e desconstruir as estruturas racistas que permeiam todos os aspectos de nossa sociedade, tanto dentro quanto fora das favelas e periferias. Somente através do reconhecimento e combate ao racismo estrutural poderemos construir um país verdadeiramente igualitário e justo para todos os seus cidadãos. Como disse Djamila Ribeiro: “O racismo é estrutural, é diário, é velado e é naturalizado. E precisa ser combatido”.

Essas reflexões ganham ainda mais relevância quando confrontadas com casos chocantes de violência racial, como o ocorrido no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro. A ex-jogadora de vôlei, branca, que chicoteou o motoboy. O homem, identificado como Max Angelo dos Santos, corre e tenta se esquivar, mas suas costas ficam marcadas pelos golpes. As imagens, que remetem à punição praticada por meio de açoite no período em que pessoas eram escravizadas no país, foram registradas em um local chamado de “nobre” pela sociedade, onde se esperaria civilidade encontra-se racismo. Esse fato escancara a crueldade do racismo e o privilegio da cor, demonstrando que, mesmo fora das favelas e periferias, o corpo negro não está isento de discriminação e violência, pois o racismo não faz distinção de classe ou localização geográfica.

*Flavinha Cândido é moradora da Maré e colunista no Maré de Notícias, formada em Letras pela UERJ, Pós-graduada em Letramento Racial e Idealizadora da Página no Instagram Racial Favelado

Todos favelados sofrem as mesmas desiguldades?

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Você acredita que todos favelados sofrem as mesmas desiguldades? Separamos alguns dados para você fazer essa reflexão.

  • Já o Censo Maré (publicado em 2019) mostra que dos 139.073 moradores, 52,9% da população mareense se autodeclaram pardos e 9,2% pretos, ou seja, podemos afirmar que 62,1% da população da Maré é não branca, enquanto 36,6% são brancos.
  • Uma pesquisa da Universidade Federal Fluminense revela que nas favelas há desigualdade de renda e de habitação. Algumas áreas têm moradores com uma média de R$539 a mais na renda per capita, nessas mesmas áreas o número de pessoas brancas é superior (36%) ao de pessoas negras (26%).

Refletindo sobre os dados, você acredita que todos favelados sofrem as mesmas desiguldades?

O espaço para o debate e expor a opinião de vocês leitores, está sendo feito atráves do Instagram.

EDI na Maré se destaca por acolhimento na primeira infância

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A escola de educação infantil trabalha com alunos de seis meses a seis anos em prol do desenvolvimento de suas aptidões físicas, emocionais e cognitivas

Maiara Carvalho*

O Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Profª Kelita Faria de Paula, localizado no Conjunto Bento Ribeiro Dantas se tornou, ao longo dos seus 12 anos de existência, uma referência ao falarmos de “lugar de escuta” para os pequenos na primeira infância.

A primeira infância é uma fase primordial quando se fala em desenvolvimento como ser humano, pois é neste momento em que nosso cérebro se encontra totalmente receptivo aos estímulos que surgem através das interações sociais, as quais levamos na bagagem da vida. É neste momento, também, que os espaços escolares se tornam parte da rotina das crianças, e é essencial que o mundo seja mostrado para eles de forma acolhedora, entendendo a individualidade de cada um.

A escola de educação infantil trabalha com alunos de seis meses a seis anos em prol do desenvolvimento de suas aptidões físicas, emocionais e cognitivas, enquanto experimentam o contato com a natureza e com outras crianças. Rosângela Alves, diretora geral do EDI, menciona que a equipe tem muito orgulho do que faz, e que as mães procuram o EDI como referência de um trabalho realmente qualificado: “É um trabalho feito com carinho, com amor, todo pensado para a criança. O dia a dia é baseado numa rotina onde acontece momentos individuais, momentos coletivos, momentos de calma e outros mais ativos, todos voltados para o desenvolvimento da criança, sempre num espaço limpo e organizado. O amor é primordial aqui neste espaço.”

Inclusão e conscientização

Segundo o Censo Escolar 2023, os indicativos de alunos da educação especial com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) cresceu significativamente nos últimos anos, e hoje representam cerca de 35,9% deste percentual, ficando atrás apenas de estudantes com deficiência intelectual. No EDI Kelita, o autismo sempre foi uma pauta importante, e mais do que só falar sobre o tema, a escola faz questão de trazer pra perto a conscientização e entendimentos das complexidades individuais de cada aluno.

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No último mês de abril, próximo à data de conscientização sobre o autismo, a escola realizou um evento aberto para toda a comunidade. Com atividades de recreação, a gestão escolar formada por Rosângela Alves, Leila Bosso e Suelen Maciel preparou um dia cercado de afeto e abordagens sobre o assunto.

“Nossa ideia era fazer um barulho pra nossa comunidade ter mais atenção à causa […] Buscando o respeito e reconhecimento daquela criança.”

“Ela não é diferente por ter autismo, ela é diferente porque todos nós somos diferentes um do outro. Precisam ser respeitados com suas características”

Completa Rosângela

Os Espaços de Desenvolvimento Infantil foram criados partindo da ideia de que era hora de mudar o pensamento assistencialista que se tinha sobre as creches, onde as crianças estavam naquele lugar, por determinado tempo somente para que seus pais pudessem trabalhar, e não necessariamente que fosse um local agradável de  interação e aprendizado. Leila Bosso, coordenadora articuladora do EDI Kelita, garante que a participação da família no dia a dia da escola é fundamental para o desenvolvimento dos estudantes: “Também nos importamos em acolher a família, entender a criança a partir da sua família. A gente faz questão de que os responsáveis participem o máximo possível.”

Assim como exemplificado no evento  de conscientização do Abril Azul, a EDI Kelita se mostra um local de diálogo com toda a comunidade que forma o espaço. A escola também realiza oficinas de desenho e pintura recorrentes para que os responsáveis possam participar e construir a escola juntos.

(*) Maiara Carvalho é estudante de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e faz parte do projeto de Extensão Conexão UFRJ com o Maré de Notícias.

Decisão do STF em caso de morte na Maré obriga Estado a indenizar vítimas de violência policial

Em 2015, Vanderlei foi atingido dentro de sua casa, na Vila dos Pinheiros, durante uma operação feita por agentes do Exército e policiais militares

Maria Teresa Cruz

Edição #160 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

A morte do mareense Vanderlei Conceição de Albuquerque, de 34 anos, há seis anos, deu origem à decisão histórica do Supremo Tribunal Federal que, obriga o Estado a indenizar familiares e vítimas de ferimentos ou morte por arma de fogo em operações policiais. 

O julgamento do caso pelo STF começou em outubro do ano passado e terminou em abril deste ano, quando, por 9 votos a 2, os ministros aceitaram a tese de responsabilização do Estado quando, durante operação policial, uma pessoa é morta ou ferida por arma de fogo. Os ministros também decidiram estender a mesma decisão para casos semelhantes que venham a acontecer no futuro, a chamada “tese de repercussão geral”.

Última instância

Em 18 de junho de 2015, Vanderlei foi atingido dentro de sua casa, na Vila dos Pinheiros, durante uma operação feita por agentes do Exército e policiais militares. À época, a Maré estava ocupada pelas Forças Armadas. Duas semanas após a morte de Vanderlei, o Exército passou a operação que, oficialmente era chamada de “pacificação da Maré”, à Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Ao todo, foram 14 meses de ocupação.

Na ocasião, familiares de Vanderlei relataram que ele foi atingido dentro de casa, que trabalhava como auxiliar de pedreiro e era responsável por parte do sustento do lar. A versão oficial indicava que policiais e agentes do Exército estavam sob intensa troca de tiros com grupos armados que atuam na região, quando a vítima teria sido atingida dentro de casa. 

A família entrou com um pedido de indenização e perdeu em duas instâncias. A perícia não foi capaz de identificar de onde partiu o projétil que matou Vanderlei,  principal argumento do Estado para dizer que não havia como identificar quem era o responsável pela morte.

O caso chegou então à última instância da justiça brasileira: o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja sentença determinou  que, independentemente de onde veio o tiro, a família de Vanderlei tem direito a ser indenizada. Para o STF, o Estado tem responsabilidade direta pela atuação de seus agentes.

Assuntos relacionados

Perícia

Para Marcela Cardoso, advogada do Eixo Direito a Segurança Publica e Acesso a Justiça da Redes da Maré, o desfecho do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1385315, o nome técnico dessa ação, representa uma importante vitória. 

“A decisão tira das vítimas e familiares a responsabilidade de provar que o dano foi causado pelo Estado e traz para o Estado a responsabilidade sobre o exercício do seu poder de polícia com mais cautela e respeito aos direitos e garantias fundamentais dos brasileiros. Anteriormente a essa decisão, as mortes e ferimentos causados por agentes do Estado em operações policiais eram consideradas como danos colaterais ao exercício da função estatal”, explica.

Marcela aponta para outro fator que foi tema de grande discussão neste processo: a dificuldade de realização da perícia em operações policiais. “A polícia civil quase nunca entra em territórios para fazer perícia, sob a alegação de risco aos seus agentes em territórios ditos conflagrados.”

A advogada aponta que um segundo ponto é a necessidade de se criar a cultura da perícia, já que os moradores não preservam o local do fato. Na necessidade de socorrer as vítimas e de retirar todos os vestígios violentos, como sangue e projéteis, dos seus espaços de convívio, as ruas e casas são lavadas, tirando os possíveis indícios do crime.

O tema da perícia é tão importante que apareceu na fala do relator da ação, o Ministro Edson Fachin. “A atividade da perícia aqui é fundamental, relevante imensamente para que se possa apurar a realidade dos fatos e para aportar elementos suficientemente probatórios. Isso significa que, especialmente os estados, devem ter um aparato técnico e de recursos humanos com autonomia administrativa e financeira para realizar essas perícias”.

Protegendo direitos

Marcela Cardoso destaca o trabalho de acompanhamento e atendimento jurídico realizado pelo Eixo junto a familiares vítimas de violência policial, como um importante espaço para que transformações como essa gerada pela decisão do STF aconteçam. 

“Essa decisão muda o absurdo dessas ilegalidades e a pretensa simetria entre Estado, vítimas e familiares, se configurando enquanto uma grande vitória contra as impunidades, a blindagem estatal diante das arbitrariedades de seus agentes e reforçando juridicamente o cerco contra essa política pública de segurança, pautada em poder de polícia, violência e morte”.

O Maré de Notícias procurou a família de Vanderlei para comentar o caso, mas não obteve retorno até o fechamento da edição.