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Educação Ambiental consciente e participativa 

Escolas da Maré resgatam o passado da favela para pensar nas futuras gerações

Por Edilana Damasceno em 09/05/2022 às 07h. Editado por Elena Wesley


No Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, na Nova Holanda, falar sobre Educação Ambiental é mais do que pensar num futuro melhor para as próximas gerações; engloba também não deixar morrer o passado da favela. E quem sabe contar essa história de cor é Marcelo Belford, diretor do colégio. Desde 1980, quando ainda era adolescente, Marcelo acompanhava a pauta do saneamento básico na Maré. Hoje, aos 57 anos, ele tenta resgatar esses valores a partir da abordagem da temática ambiental nas salas de aula. “A educação ambiental é a garantia de que teremos uma vivência saudável, feliz e comprometida com o futuro das gerações que virão depois de nós.”

O Artigo 225 da Constituição Federal estabelece que “todos têm o direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” e afirma, ainda nesse trecho, que, para assegurar o acesso de todas as pessoas a esse bem comum, o Estado deve “promover a Educação Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”.


Pensar crítico

Apesar das determinações da legislação brasileira, a educação ambiental não é considerada uma prioridade dentro de muitas escolas. A falta de conhecimento traz prejuízos para a sociedade como um todo, e principalmente para quem mora na favela. Os altos índices de poluição gerada por carros e indústrias, o desmatamento, o desperdício de água e os baixos investimentos em tratamento de esgoto trazem consequências sentidas no cotidiano: o calorão que faz no verão, o aumento de problemas respiratórios, a incidência de doenças provocadas por contato com água contaminada ou esgoto, entre outras.

E como a gente interrompe esse ciclo da falta de informação? Para Marcelo Belford, é importante que a educação ambiental seja interdisciplinar, permeando diversos momento do ensino: “Ela tem que caminhar com a matemática, por exemplo. Assim, a gente consegue calcular a diferença no consumo de água de uma família dentro de uma cidade e comparar com aquele das indústrias de bebida.” Marcelo ressalta que esse modelo de ensino funciona somente com base no diálogo, ingrediente fundamental para o bom funcionamento de qualquer escola.

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Marcelo Belford é diretor do Colégio Estadual João Borges de Moraes e um dos responsáveis pela implementação da Educação Ambiental na unidade
Foto: Maria Ribeir



À medida que o debate ambiental na João Borges se consolidou como parte da rotina da escola, ele cresceu e envolveu mais personagens, como o coletivo Lutas Urbanas Tecnologia e Saneamento (LUTeS). A parceria rendeu frutos, como o curso Saneando, Semeando e Empreendendo: Cidadania e Educação: durante quatro aulas, estudantes e integrantes do LUTeS pensaram estratégias para inserir o tema no cotidiano da população, através de uma linguagem acessível. Uma delas foi o projeto de construir coletivamente, dentro da escola no ano letivo de 2022, um biodigestor — esse equipamento acelera o processo de decomposição da matéria orgânica através da ausência de oxigênio, e é usado para tratar esgoto doméstico e restos de comida. No processo, é produzido um gás que pode ser aproveitado na cozinha.

Marlon Brendo, de 17 anos, é monitor na escola e faz parte da iniciativa. O jovem conta que a experiência transformou sua forma de pensar o meio ambiente. “Assim como gentileza gera gentileza, conscientização gera conscientização.” Marlon acredita que, assim como no colégio, o movimento pelo direito ao saneamento básico deve tomar as conversar por toda a Maré: “A gente está incentivando os alunos a passarem para outras pessoas o que a gente que mora na Maré precisa, e também a ajudarem uns aos outros em relação ao cuidado com nosso ambiente e nosso lugar.”

Coleta seletiva

Para Christiane Lagarto, diretora da Escola Municipal Professor Josué de Castro, educação ambiental se faz com movimento e participação. A ação de tornar o ambiente acadêmico mais verde e consciente começou na pandemia, mas a ideia era um sonho antigo da diretora: “Com o tempo mais livre, eu e a professora Luiza Colonesi começamos a reciclar todos os materiais, de bancos a potes; fizemos vasos e plantamos mudas pela escola.” 

Os alunos se interessaram e aderiram ao movimento por meio da jardinagem, disciplina eletiva oferecida pela escola. O aprendizado também é percebido fora da sala de aula. “A gente também faz isso na cozinha e no refeitório. Temos um latão para resíduo de casca de frutas, outro para restos de comida e mais um para lixo seco. Vamos falando conversando.” Quem instrui os alunos sobre o local correto de descarte é Dona Emília que, aos 62 anos, atua de forma voluntária na escola. 


                   
Dona Emília é a responsável por orientar os alunos sobre os locais adequados para descarte de resíduos.                           Foto: Maria Ribeiro 

Christiane acredita que, para fazer o debate sobre cuidado com o meio ambiente chegar em mais pessoas, seria preciso uma integração entre comunidade e escola. E não faltam ideias para que isso se torne possível. “Queria que a comunidade enxergasse a escola como um lugar de coleta seletiva, mas para isso é preciso ter estrutura para isso. Também acho que a Prefeitura deveria montar uma logística de recolhimento dos resíduos orgânicos nas escolas e de transporte até um lugar para compostagem.” 

Enquanto a estrutura não ganha corpo, o caminho está aberto a quem quiser contribuir com as ações ambientais promovidas pela escola — como é o caso de Dona Emília. A escola segue se reinventando com os recursos que tem à disposição, como a capinagem que não implica no uso de materiais não degradáveis no descarte dos resíduos: “Quando a Comlurb capinava a quadra, o capim era posto em sacos plásticos. Hoje isso não acontece mais; descobri que se o capim for espalhado como um tapete, em dois meses ele se desintegra. Então, eu aqui fiz o meu micromundo”, conta a diretora.

Christiane Lagarto,  diretora da E.M. Professor Josué de Castro, que fica na Vila do João, implementou uma forma de capinar sem produzir lixo não degradável. Foto: Maria Ribeiro



Nem sempre criar micromundos é suficiente para encarar as dificuldades enfrentadas pelas escolas públicas. A diretora da Josué de Castro sente falta de continuidade nas políticas da Prefeitura: “Quando eu comecei, a Prefeitura nos cedeu terra através do projeto Hortas Escolares. Mas o projeto acabou e mantê-lo significa às vezes tirar dinheiro do nosso próprio bolso.”

Não é apenas nas atividades extracurriculares que a direção da escola sofre com a falta de apoio: o Colégio Professor João Borges, apesar de estar funcionando, não possui sequer uma estrutura elétrica adequada que garanta a segurança dos alunos e do espaço em si. Questionada, a Secretaria de Estado de Educação informou que “as providências para a realização dos reparos e efetiva solução do problema de energia do Colégio Estadual João Borges de Moraes, localizado na Maré, já foram tomadas junto à concessionária de serviços de eletricidade. Para isso, foi descentralizada à unidade escolar a verba de R$ 250 mil, e já existe uma empresa contratada para a realização desse serviço e a solução da questão da forma mais rápida possível”.

O diretor Marcelo Belford cita o documentário Utopia e Barbárie (2009), dirigido por Silvio Tendler, para explicar o porquê de ele e da escola continuarem resistindo: “Eles são tantos e nós somos tão poucos; eles são tão fortes e nós somos tão fracos que, muitas das vezes, eu me pergunto por que eu continuo a lutar […] Eu continuo porque estou certo.”

Essa reportagem é resultado de parceria do Maré de Notícias com o data_labe e foi produzida pelo CocôZap, um projeto de mapeamento, incidência e participação cidadã sobre saneamento básico nas favelas.

Mães de Favela

Registro fotográfico de corpos que se fazem presentes e resistentes em um território majoritariamente feminino.

Por Matheus Affonso em 08/05/2022 às 7h

A série “Mãe de Favela” nasceu em 2019 com a proposta de retratar o amor da mãe favelada. Ao registrá-las nas suas portas com suas filhas e filhos é desenvolvida uma narrativa do amor que, historicamente, constrói a favela a partir do afeto. Segundo o fotógrafo Matheus Affonso, para além da homenagem, “a série é um ato político destes corpos que se fazem presentes e resistentes em um território majoritariamente feminino”. Confira os registros.

Estúdio de produção musical incentiva artistas iniciantes

O jovem mareense disponibiliza duas vezes por semana o espaço de forma gratuita

Por Samara Oliveira em 07/05/2022 às 12h. Editado por Daniele Moura.

“É como se eu tivesse conseguido passar pela porta e manter ela aberta pra rapaziada do meu bairro”, essa é a fala de Gabriel de Souza que conseguiu realizar seu sonho de abrir um estúdio de produção musical na comunidade Marcílio Dias, conhecida pelos moradores como Kelson.

Há 4 anos envolvido com música, seja produzindo, cantando ou tocando, Gabriel tinha o sonho de aprender, ao menos o básico, para produzir suas próprias criações. Na época, trabalhando como jovem aprendiz, montou seu primeiro estúdio dentro de um guarda roupas com equipamentos usados. Como não tinha condições de arcar com cursos para se aprimorar, o jovem decidiu estudar pelo Youtube. “Com três meses fazendo meus beats mostrei para um amigo de escola que fazia rap e ele me levou no primeiro estúdio que entrei na vida”, relembra o músico de 20 anos.

A visita rendeu seu primeiro trabalho na área, além de uma formação custeada pelos donos do estúdio com grandes nomes da produção musical como Neo Beats e Dj Coala. Sendo o primeiro, produtor de grandes sucessos do Xamã e Poze do Rodo.

Gabriel Souza em seu estúdio na Kelson. Foto: Gabi Lino

Em janeiro deste ano, Gabriel entendeu a necessidade de criar um estúdio onde outros artistas pudessem gravar suas músicas com qualidade profissional por um preço acessível. Assim, nasce a Salty.  “O valor de uma sessão de estúdio era e é muito fora da nossa realidade. Parei pra pensar e vi que não tinha nenhum estúdio aqui na Kelson e o quanto seria difícil se tivessem mais moleques como eu que queriam cantar”, contou. 

A iniciativa de Gabriel também estimula artistas independentes que estejam iniciando sua carreira. A Salty disponibiliza o espaço de forma gratuita duas vezes por semana para qualquer morador que componha ou cante para ter a primeira oportunidade de ouvir suas músicas produzidas.“Há 4 anos tudo isso era um sonho, nunca tive condições. Quando eu olho pra Salty eu fico cheio de orgulho”, afirma Gabriel.

Além do estúdio já em funcionamento na Kelson, a Salty também vai funcionar na Penha em data ainda a ser divulgada pelo produtor musical.

Mostra de arte em SP exibe documentário de jovem mareense

Curta metragem revela a história da rua em Bento Ribeiro Dantas onde o artista mora há mais de 10 anos

Por Samara Oliveira em 06/05/22 às 15h. Editado por Daniele Moura

O Conjunto de Favelas da Maré será representado pelo jovem Anderson Oliveira, de 27 anos, na 30ª Mostra de Arte da Juventude (MAJ) do SESC de Ribeirão Preto (São Paulo), uma das principais iniciativas no campo das artes visuais, que ocorre entre os dias 9 e 14 de maio. 

Anderson foi escolhido entre mais de 400 jovens artistas, apresentando o minidocumentário A Rua que era Praia sobre a Rua Praia de Inhaúma. O vídeo traz à tona memórias ambientais e afetivas que revelam as transformações que ocorreram nas favelas da Maré; a Rua Praia de Inhaúma no passado fazia parte do mar da Baía de Guanabara. 

A pesquisa foi realizada por meio de conversas com vizinhos e parentes, que narram histórias ilustradas com fotos da época antes de a rua ser aterrada. “É muito gratificante ter a oportunidade de ser instigado a pensar essas memórias, é como fazer o registro do hoje pra depois ver essa memória no futuro. É importante para Maré evidenciar o quanto a sua história é potente e, confesso, me sinto um pouco responsável também por perpetuar essas memórias”, reforça o artista.

Anderson é morador do Conjunto Ribeiro Dantas, uma das 16 favelas da Maré; o objeto central de seu documentário está intrinsecamente inserido em sua própria existência: ele mora há mais de dez anos na Rua Praia de Inhaúma

Com duração de cinco minutos, o curta tem como um dos objetivos dar visibilidade às memórias ambientais e afetivas, contadas pelos moradores de territórios de favelas.

Memórias resgatadas

O documentário de Anderson foi viabilizado pelo Laboratório de Memórias Ambientais, criado em 2020 pela Redes da Maré em parceria com outras organizações. Popularmente conhecido como Lab Memória, a iniciativa propôs que os jovens investigassem e registrassem suas memórias sobre a crise climática e como isso afeta suas vidas.

“Conheci o Lab numa chamada pública pelo Instagram e fiquei curioso de saber do que se tratava. Gosto de escrever e trabalhar com meu lado sensorial, artístico, por isso criei um curta documental onde falo de sonhos, de vidas, de trajetórias, das pluralidades da Maré e suas transformações”, explica.

Anderson terá ainda a companhia de outros três moradores do Rio de Janeiro, igualmente foram chamados a participar da mostra.

“É uma alegria imensa ter sido um dos selecionados para a 30º MAJ. Ainda mais por ser um trabalho que fala de nós, do nosso lugar, dos nossos sonhos, das pessoas que construíram a vida na Maré. E eu faço parte disso, é muito incrível, potente, reverbera em mim e nos meus.”

Anderson Oliveira
Foto; Gabi Lino

Vivência nos territórios

Natural de João Pessoa (Paraíba), Anderson é um dos jovens educadores idealizadores do projeto Leituras na Favela, que incentiva o gosto pelo livros por meio de oficinas, contação de histórias e ciclos de leitura. Ator, ele ainda cursa Teatro na Escola SESC de Artes Dramáticas e Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para onde leva suas vivências nos dois territórios. 

“Meu processo de construção como um cidadão crítico está marcado por essas minhas duas vivências. Elas não se separam, e sim, se complementam.”

Anderson Oliveira.

Siri de Ramos continua no Grupo C

Por diferença de nove décimos, escola do Piscinão não é rebaixada

Por: Hélio Euclides em 06/05/22 às 10h. Editada por Daniele Moura 

Depois de um longo período de bandeira enrolada, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Siri de Ramos voltou ao desfile. O retorno foi com dificuldades financeiras que precisaram ser recompensadas com muita garra na Avenida Intendente Magalhães. Os seus componentes defenderam as cores verde e branco e não deixaram o Siri cair. Entre as dez agremiações que desfilaram pelo Grupo C, o Siri ficou na vice-lanterna, com 265 pontos, ficando à frente por apenas nove décimos da Feitiço Carioca, que foi rebaixada para o Grupo D.

A Escola nasceu como bloco em 1979, batizada como Boca de Siri. Já em 2018, foi rebatizada ao ser elevada a Escola de Samba. O grande problema enfrentado pela escola é a divergência no carnaval da Passarela do Samba da Intendente Magalhães. No Carnaval de 2019, o Siri foi uma das escolas fundadoras da Livres (Liga Independente Verdadeira Raízes das Escolas de Samba), que rachou com a Liesb (Liga Independente das Escolas de Samba do Brasil), atual Superliga. 

Em 2018, os desfiles na Intendente Magalhães eram divididos em Grupo B, C, D e E. A Liesb realizou a fusão do Grupos B e C, fundando o Grupo Especial da Intendente, atual Série Prata. O Grupo D foi batizado de Grupo de Acesso da Intendente, atual Série Bronze. Já o Grupo E foi definido como Grupo de Avaliação. A Livres manteve as antigas denominações de Grupo C e D. Em 2019, a Tradição venceu o Grupo C da Livres e deveria este ano ser elevada a Série Ouro, desfilando no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, algo que não aconteceu, e como protesto não participou do carnaval de 2022. O mesmo problema pode vir a acontecer com a vencedora de 2022, a Acadêmico do Engenho da Rainha. Os foliões esperam que em 2023 ocorra uma solução para essa confusão.

Comemoração na quadra da Siri em Ramos. Foto: Hélio Euclides

Redução de danos: humanidade para incentivar autonomia e criar laços

Estratégia é adotada no trabalho desenvolvido pelo Espaço Normal, equipamento da Redes da Maré que completa quatro anos no dia 7 de maio 

Por Tamyres Matos, em 06/05/22 às 07h. Editado por Daniele Moura

Acolhimento, construção coletiva, reconhecer que não há soluções simples para problemas complexos: essa é a base onde se assenta a redução de danos, estratégia centrada na valorização da vida e na prevenção dos problemas que podem ser causados pelo consumo excessivo de álcool e outras drogas. O Espaço Normal, equipamento da Redes da Maré, foi idealizado a partir deste conceito e completa quatro anos de existência no próximo dia 7 de maio, Dia Internacional da Redução de Danos.

Apesar das diversas experiências com resultados positivos, o quadro geral no Brasil não é dos mais favoráveis atualmente. O país ocupa a última posição no ranking internacional que avalia as políticas públicas de drogas em 30 países. The Global Drug Policy Index é uma pesquisa ligada ao Consórcio de Redução de Danos (Harm Reduction Consortium), que buscou medir e comparar o quanto as políticas nacionais de drogas e suas implementações estão alinhadas aos princípios de direitos humanos, saúde pública e desenvolvimento socioeconômico.

“A experiência brasileira com redução de danos tem lugar de destaque na construção de uma rede de pessoas e movimentos empenhados em fazer avançar a reflexão sobre políticas de drogas no Brasil, depois de quase um século de hegemonia absoluta de pensamento retrógrado sobre drogas. Neste sentido, estamos trabalhando juntos em uma linda irmandade latino-americana, que pensa e faz uma RD bastante avançada.”, afirma Dênis Petuco, pesquisador em saúde pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV – Fiocruz).

Paulo Ricardo Santos de Azevedo, de 38 anos, morador da Nova Holanda, é uma das vidas tocadas por essa estratégia de criação de vínculos e no estrito respeito pelos direitos humanos. Ex-morador da cena de consumo de drogas da Rua Flávia Farnese, Papa (como é conhecido) atualmente é redutor de danos do Espaço Normal. Ele explica que RD é “trabalho de formiguinha”, e acredita não haver outro jeito de se lidar com o vício. Em seu tom de voz, é possível notar o orgulho da própria trajetória e do trabalho que vem sendo realizado pelo Espaço Normal desde 2018.

Antes atendido pelas iniciativas da Redes da Maré, Papa é redutor de danos no Espaço Normal | Foto: Matheus Affonso

“Os proibicionistas entendem que o problema das drogas se resolve com internação compulsória. Essa pressão das regras excessivas gera um constrangimento, representa uma perda na autonomia. Não tem como ser dessa forma. As pessoas precisam ser ouvidas, não dá pra impor. Muita gente acredita que a pessoa vai ficar internada e sair de lá curada. Não é assim, mas é possível parar de fazer o uso ou converter de uso abusivo para um mais leve. Sou uma prova viva do trabalho da redução de danos. Passei a entender qual era a minha relação com as drogas”, diz ele.

Dênis analisa que ainda há muita resistência na sociedade no que diz respeito à redução de danos, o que explica até mesmo um olhar de “clandestinidade” em relação à adoção da estratégia. “Trata-se de um marco quando se estuda a história do cuidado de pessoas que usam drogas no Brasil e uma posição que segue produzindo controvérsias profundas até hoje. A redução de danos fala tanto do ambiente conservador que nos empurra, como também do quanto mudamos o contexto a partir de práticas sempre inovadoras. Veja o caso do pessoal que faz RD em festivais de música eletrônica: mesmo antes de este retrocesso começar, o pessoal estava arriscando, atuando nas franjas da legalidade, fazendo testagem de drogas antes de qualquer regulamentação desta prática, que carrega uma ousadia análoga àquela de pioneiras e pioneiros que promoveram as primeiras trocas de seringas na década de 1990. Existe algo na RD que não se acomoda e que, mesmo num contexto desfavorável, leva as experimentações ao limite”, pondera o especialista.

História, definição e vivência prática

Guiar-se pela redução de danos é compreender que as drogas sempre fizeram parte da vida em sociedade. Segundo a Associação Internacional de Redução de Danos, o conjunto de práticas e políticas se refere a ações que têm como objetivo, primeiramente, “reduzir as consequências adversas para a saúde, sociais e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente reduzir o seu consumo. A redução de danos beneficia pessoas que usam drogas, suas famílias e a comunidade”.

Mas como isso se traduz no dia a dia? Papa compartilhou com o Maré de Notícias um pouco da sua rotina no Espaço Normal, fruto de três anos de pesquisa e intervenção junto com as cenas de uso de crack e outras drogas na Rua Flávia Farnese e na Avenida Brasil. O redutor de danos conta que o espaço ainda não voltou a funcionar com 100% das atividades por conta das restrições da pandemia, mas que são cerca de 60 pessoas atendidas por dia. Os usuários do espaço desfrutam de café da manhã, distribuição de tíquetes para almoço, banho, descanso — acima de tudo, é um local no qual eles são ouvidos.

“Começamos a distribuir o café às 9h e por volta das 10h30 encerramos. Aí liberamos o banho no espaço, com privacidade. Temos duas assistentes sociais, uma psicóloga e uma coordenadora do cuidado, além de cinco redutores de danos. Na verdade, todo mundo atua com base na redução de danos, independentemente da formação. Temos demandas também como documentação, alguma questão pendente com a Justiça, e encaminhamentos para a clínica da família ou qualquer outra clínica”, explica Paulo Ricardo.

Para Papa, o mais marcante é a formação do laço de confiança entre equipe e atendidos. “Eu vivi isso, quando se está nessa situação (de vulnerabilidade) é muito difícil você falar com qualquer um sobre suas demandas, mas a gente conseguiu construir essa confiança. Nosso processo de escuta abre esse caminho de sensibilidade para as demandas dos usuários”, diz.

Equipe do Espaço Normal reunida: em 2022, o equipamento completa quatro anos desde sua inauguração | Foto Matheus Affonso

De usuário nas cenas de uso de substâncias acompanhado pelos projetos da Redes da Maré a redutor de danos, Papa conheceu o centro de convivência É de Lei, voltado à redução de danos em São Paulo, concluiu seu Ensino Médio depois de mais de 13 anos sem estudar, participou de palestras de formação e não quer parar mais. Atualmente, ele participa do pré-vestibular da organização mareense e pretende fazer faculdade de serviço social com um propósito em mente: “retribuir”.

Contexto

A redução de danos foi adotada como estratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no município de Santos, em São Paulo, em 1989, quando os índices de transmissão de HIV estavam relacionados ao uso indevido de drogas injetáveis. O objetivo prático inicial era minimizar a gravidade do alto contágio via seringas compartilhadas, mas ao longo do tempo se converteu em um trabalho para a produção de saúde alternativa e não na lógica da abstinência. Hoje, a estratégia é observar o que os usuários de álcool e drogas (e da comunidade que o acolhe) precisam e ampliar as ofertas em saúde. Trabalham neste sentido os já citados centros de convivência Espaço Normal e É de Lei, além do programa governamental da cidade de São Paulo De Braços Abertos.

“Tenho profunda admiração pelo Espaço Normal. Considero as experiências de centro de convivência as mais corajosas e inspiradoras que temos hoje no Brasil. São iniciativas da sociedade civil que fazem avançar o pensamento sobre o que pode a política pública, que estão na contramão do retrocesso. Com sua ousadia, são faróis a guiar a política pública”, acredita Dênis Petuco. 

De acordo com Lumena Furtado, coordenadora do Laboratório de Saúde Coletiva (LASCOL), coletivo de docentes e técnicos do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (EPM/ Unifesp), a importância do programa De Braços Abertos, lançado em 2014 e interrompido em 2019, foi mostrar que é possível ter uma política pública de cuidado na questão do uso intensivo de álcool e drogas, tendo como premissa outra referência que não a “guerra às drogas” e sim, a redução de danos como uma perspectiva de alinhamento da política. 

“O programa tinha um tripé. De um lado a questão da moradia, que é fundamental para que a pessoa possa se organizar, se cuidar e ter uma possibilidade de vínculo com outras estratégias. Era moradia transitória, a pessoa ficava um tempo, tipo dois anos, até conseguir se restabelecer. O segundo ponto do tripé era geração de renda através de possibilidades alternativas coletivas, solidárias de geração de renda: a formação em diferentes linhas de trabalho, como jardinagem, cabeleireiro, limpeza… O terceiro era o cuidado em saúde”, relembra Lumena.

Para o especialista da Fiocruz, as possibilidades da redução de danos já foram mostradas pelas experiências existentes e pesquisadores e trabalhadores da saúde mental de equipamentos públicos e organizações sem fins lucrativos devem se unir na definição de estratégias. 

“Não é por acaso que o sucesso do Espaço Normal e do É De Lei é celebrados por quem milita por melhores políticas de drogas. A evolução passa por aceitar as provocações que essas duas experiências fazem às políticas públicas. Cabe aos gestores o esforço de alcançar aquilo que o Espaço Normal e o projeto É De Lei já fazem. E o mais bonito é saber que, quando isso acontecer, esses espaços já estarão ousando em outras frentes. Você pergunta como evoluir? Eu respondo: prestando muito atenção ao que estas organizações estão fazendo.”

Dênis Petuco, pesquisador em saúde pública da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV – Fiocruz).