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‘Engenharia apoteótica’: desafios da Educação na Maré por quem vive a luta

No Dia da Educação, 28 de abril, professores, alunos e mareenses em geral se reuniram para o lançamento da pesquisa sobre o impacto da pandemia na formação e na saúde de estudantes e docentes

Por Tamyres Matos, em 05/05/2022 às 11h. Editada por Daniele Moura.

Durante o lançamento do estudo “Covid-19 e o acesso à Educação nas 16 favelas da Maré: impactos nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio”, três palavras se destacaram em meio às falas: experiência, construção e esperança. O impacto da pandemia na Educação da Maré é inegável e a pesquisa, cujos resultados já foram divulgados pelo Maré de Notícias, organizou esse diagnóstico. Agora, professores e diretores relatam suas vivências do período pandêmico e reforçam que a hora é de “arregaçar as mangas” para que a Educação continue representando a esperança de dias melhores diante dos inumeráveis desafios. A pesquisa é fruto da parceria entre a Redes da Maré e o Instituto Unibanco.

Cristina Oliveira, diretora Escola Municipal Osmar Paiva Camelo, ressalta a imensa dose de sofrimento que o trabalho durante a pandemia gerou para os profissionais da Educação, assim como também para pais e alunos. E chama atenção para a etapa de reconstrução vivida. Segundo ela, há crianças no 3º e no 4º ano do Ensino Fundamental que nem chegaram a ser alfabetizadas por conta das lacunas do período de pandemia. “Paulo Freire – Patrono da educação brasileira – fala sobre a importância da esperança, mas não é aquela de quem espera sentado. Trata-se de se levantar, construir, esperançar. Juntar-se com outros para fazer de outro modo. Então, que a gente seja capaz de fazer uma escola diferente da que tínhamos em 2019 e que a gente construa uma escola mais justa socialmente, porque na Maré nós temos crianças potentes, nós temos estudantes criativos, temos estudantes inteligentes que são capazes de ser o que quiserem. É necessário apenas que a gente tenha uma educação de qualidade.”

De acordo com o eixo de Educação da Redes da Maré, cerca de 20 mil estudantes estão matriculados nas 50 escolas públicas do conjunto. No entanto, ainda há deficiências específicas que precisam ser endereçadas pelos representantes do poder público, afinal de contas, fala-se de uma população de mais de 140 mil pessoas. Segundo a instituição, um dos exemplos destas deficiências é o baixo número de escolas para alunos que chegam ao sexto ano do ensino fundamental, o que pode colaborar para o aumento da evasão escolar nesta fase.

Presente ao evento do último dia 28, o estudante Vitor Soares, de 18 anos, destacou alguns pontos da vivência dos seus últimos dois anos de ensino médio sob as restrições da pandemia de covid-19. “Estudo à noite, então a maioria dos meus amigos são pessoas mais velhas, que têm que trabalhar. Alguns tiveram que largar a escola por ter que ajudar a família em tempo integral. E quando o presencial voltou, eu percebi que não ia ser a mesma coisa. Por exemplo, uma professora tinha perdido o marido dela (para a covid) e também não estava em condições de voltar a dar aula para gente. Mas foi legal porque houve uma mobilização, eles (os professores) nos procuraram para auxiliar na preparação para o Enem. Houve também relatos de alunos que ficaram muito desesperados, foi muito difícil”, relembrou.

Os problemas de insegurança alimentar entre os alunos também foram citados por todos os professores. “Em 2020, nós começamos a apoiar as famílias que passavam necessidades com 30 cestas básicas. Em 2021, pulou para 300 cestas a serem distribuídas. Foi uma engenharia apoteótica para conseguirmos fornecer um kit alimentação equivalente na época a R$ 120. Toda equipe se mobilizou”, relatou Sérgio Barbosa, diretor adjunto do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, na Rua Teixeira Ribeiro.

A partir deste encontro, o Eixo de Educação da Redes da Maré decidiu criar um fórum que vai acompanhar a evolução da situação nas escolas nas 16 favelas do bairro, além de propor soluções e cobrar as mudanças necessárias dos representantes da Prefeitura e do Governo do Estado.

Alta taxa de analfabetismo funcional

Metade (50%) dos alunos do Colégio João Borges de Moraes é composta por analfabetos funcionais – pessoas que reconhecem letras e números, mas não entendem textos simples -. O dado impactante foi apresentado por Sérgio Barbosa em referência a uma pesquisa realizada internamente pela escola. Além disso, a avaliação diagnóstica apontou que, destes, 30% são completamente analfabetos – apesar de já terem encerrado a fase de alfabetização. “Temos ainda 30% dos nossos alunos estão em depressão e 80% das nossas alunas nunca foram ao ginecologista. São as respostas dos estudantes a nossa pesquisa. Que proposta político-pedagógica podemos realizar a partir do momento em que o estado vem com uma proposta conteudista e temos que seguir o currículo com 50% de analfabetos funcionais? Ou seja, se a gente seguir o programa do estado, vamos reprovar quase 70% dos alunos.”

Além desta dificuldade, o docente aponta que graves problemas estruturais inviabilizam a atuação no espaço físico que deveria estar sendo utilizado. “Nossa escola está interditada por conta de risco de incêndio, estamos funcionando graças às parcerias que temos com a Redes da Maré, que fornece duas salas para a gente dar aula à tarde, o (Instituto) Vida Real, que oferece uma sala para a gente dar aula pela manhã, a Associação de Moradores da Nova Holanda, que fornece uma sala para a gente dar aula pela manhã, a (ONG) Luta pela Paz, que oferece uma sala para a gente dar aula na parte da manhã, e a clínica da família que fica ao lado do nosso escola, que oferece espaço para gente dar aula pela manhã”, descreveu o diretor.

Público no Centro de Artes no dia da apresentação da pesquisa. Foto Douglas Lopes

Dados da pesquisa

Confira abaixo alguns dos dados mais relevantes da pesquisa realizada entre março de 2021 e setembro do mesmo ano. No primeiro momento do estudo, foram 89 entrevistas aprofundadas, em 18 escolas públicas da Maré. Em seguida, foram aplicados 832 questionários, sendo 630 entre alunos do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental II e dos 1º,2º, 3º anos do Ensino Médio; 101 entre responsáveis; e 101 entre profissionais de educação. Nessa fase, a pesquisa concentrou-se em 13 escolas públicas da Maré (nove municipais e quatro estaduais), incluindo estabelecimentos de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e um de Ensino Técnico.

Três em cada quatro alunos contam que aprenderam pouco (48%) ou nada (26%), somando 74% do total. Mais da metade deles  ? 57% ? afirmou que sua vontade de estudar na pandemia diminuiu (33%) ou caiu muito (24%).Motivos apresentados:

  • Dificuldade de adaptação ao ensino remoto (35%)
  • Problemas de aprendizagem (28%)
  • Em relação à saúde mental, 41% dos estudantes afirmaram terem sido afetados – 257 crianças e adolescentes enfrentaram algum tipo de sofrimento psíquico.

38% dos estudantes não acompanharam as atividades remotas. Os motivos mais citados por ordem foram:

  • Não ter entendido o que era pedido;
  • Falta de internet
  • Ausência de um dispositivo eletrônico

De acordo com 87% dos profissionais de Educação, menos da metade dos alunos aderiu às atividades remotas.

70% dos profissionais de educação disseram que sua motivação para trabalhar durante a pandemia diminuiu. Da mesma forma, 72% relataram o agravamento de problemas de saúde mental e emocional. Quase todos os respondentes (95%) pediram ajuda a colegas ou pesquisaram na internet para atuar remotamente.

Acesse o estudo completo aqui.

Da Vila do João, morador retrata luta por transformação na Maré através do futebol

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Conhecido como Boi, mareense conta sua trajetória no território

Por Hélio Euclides, em 05/05/2022 às 07h.  Editado por Edu Carvalho

Na vida, ser um líder é uma qualidade despertada em algumas pessoas, com objetivo de mobilizar seja um beco, viela, rua, bairro e por aí vai. Na Maré, explode a quantidade de líderes reunidos por metro quadrado, geralmente com intuito de transformação coletiva das realidades. Um deles é Sebastião Lessa, de 62 anos, conhecido como Boi, cria da Vila do João. É ele quem reina dentro das quatro linhas do campo, motivando crianças e veteranos na construção de sonhos na favela. Nesta reportagem, ele conta sua trajetória para os leitores do Maré de Notícias, em depoimento ao jornalista Hélio Euclides. Confira abaixo:

Nasci no bairro do Riachuelo, mas a mudança de vida veio em 1964, quando tinha quatro anos. Minha família passou por uma remoção, com a justificativa da ampliação da Avenida Marechal Rondon. Os vizinhos foram divididos, uns ficaram na Vila Kennedy, outros na Praia de Ramos e nós fomos assentados na Nova Holanda. Lembro que a ação autoritária foi a mando do então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda. Na Maré, a primeira imagem da qual me lembro foi a de abrir a janela dos fundos do duplex e ver o sol.

Tínhamos pouca água que com o tempo foi minguando mais ainda. Ainda não havia palafitas, só o chiqueiro. Eu entrava na água, via o pé de tão clara que eram as águas. Com o coador de macarrão, eu pegava sardinha. Numa família de seis filhos, a vida não era fácil, pois meu pai largou a minha mãe e as coisas ficaram feias. Sendo assim, éramos os mais pobres da rua.

Estudei na Praia de Ramos, na Escola Armando de Salles Oliveira e, com oito anos, ia a pé num sol escaldante. Estudante não tinha direito à gratuidade e se pegasse o ônibus sem dinheiro era levado para o posto policial do Parque União. Tive que parar de estudar, não tinha dinheiro para pagar a caixa escolar, não tinha direito ao lanche. O principal motivo era ajudar na alimentação dos irmãos. Eu tomei conta do estacionamento do Bob’s, onde hoje é um restaurante popular. Quando saí entrou o queridíssimo Jorge Bob’s (Jorge Geraldo), que ficou anos nesse serviço. Há uns dez anos voltei à escola e chorei, pois lá foi o começo da vida.

Era uma infância sofredora para muitos. Em meados dos anos 1960, quando passavam na Avenida Brasil, pista de subida nos quartéis do Depósito da Aeronáutica e no antigo Regimento de Carros de Combate, perto da Escola Bahia, a partir das 19h, era possível ver uma fila de crianças e adultos para pegar sobras de comidas. Algumas vezes íamos até a Base Aérea do Galeão para buscar alimento. Hoje precisamos mostrar o quanto é necessário valorizar o momento. É preciso ter respeito por nós, fundadores, que sofremos nas décadas passadas e atravessamos barreiras.

Com 11 anos comecei a ir onde hoje é a Vila do João, isso nos anos 1970. Tinha um vazadouro de lixo da Kibon e da Sousa Cruz, essa última com sede perto da Escola Clotilde Guimarães. Era local de coleta de resíduos e material de demolição. Tudo servia para vender e comprar pão e leite. Para facilitar, pegava carona no caminhão do Seu Irineu, que era pai da Márcia, uma ex-miss Brasil. Já aos 13 anos eu ia mais longe e vendia o material no Caju.

Na minha juventude, a perseguição policial já era grande, fui levado à 21ª Delegacia Policial, em Bonsucesso, por mais de 20 vezes. Era inúmeros motivos, uma vez simplesmente por ser engraxate. Na maioria das ocasiões era por não ser permitido sair à noite, como ir ao baile do Bonsucesso Futebol Clube. Era necessário estar acompanhado por uma pessoa maior de idade e com carteira assinada. Se não acontecesse assim, era desencaminhamento de menores. Ainda tinha a discriminação sofrida por quem morava no duplex. Os moradores da Rua Teixeira Ribeiro tinham outro naipe. Quando namorei uma menina da Teixeira (de Melo) a mãe chamou a polícia. Fomos todos para a delegacia. Não deu em nada, pois não tinha motivo de prisão. No baile do Manoel Virgínio pegavam a gente e levavam para a delegacia para averiguação, depois libertavam e todos voltavam para a festa. Era o tempo das discotecas dos anos 1980. 

Aos 19 anos trabalhava até tarde da noite na Transportadora Rota, que ficava entre as ruas 17 de Fevereiro e Flávia Farnese. Sempre ganhava um kit de brinde com produtos de inseticida. Um dia, três policiais me pararam e pegaram um aerosol na minha mochila e me deram um banho com o produto. Quando foram embora, uma senhora me chamou na sua casa e me lavei. Ela disse que eles tinham o projeto de tocar fogo, que por sorte desistiram e passei por um livramento.

Algumas coisas mudaram na Avenida Brasil, onde hoje é o Hotel Stop Time era a Churrascaria Gaúcho. O posto de gasolina da passarela oito era o saci, o mais antigo da redondeza. Sempre lembro de quando quebrou a ponte das palafitas, meu filho caiu e ficou com lama até o ombro. Uma coisa que não esqueço aconteceu em 1982, a remoção de moradores da Favela da Praia de Inhaúma, onde atualmente é a Bento Ribeiro Dantas. Todos foram realocados em Santa Cruz. Isso foi uma covardia. Próximo ao local da extinta favela estava a boate do Chiquinho, que ficava ao lado de onde hoje é a igreja Universal da Rua Praia de Inhaúma. Destacando a liderança da época, lembro do Zé Careca (José Gomes Barbosa), que foi um dos que lutou contra as remoções, pois abriu diálogo com o Ministro do Interior, Mário Andreazza. 

O trauma de uma remoção 

O programa de moradia Promorar na época do governo militar de João Figueiredo promoveu uma remoção na Maré e assim viemos para a Vila do João, que foi ocupada em outubro de 1982, até pouco tempo era possível ver a placa inaugural, que depois sumiu. Encontramos um local com ruas asfaltadas e até gás de rua. Por outro lado, as pessoas queriam fugir da violência da nova favela, quando o local era conhecido como inferninho colorido, já que cada casa tinha uma cor. Tinha um morador que não se adaptou e trocou as casas por telefone e fusca. A Vila do João teve um bonito carnaval com desfiles, mas por causa de tiroteios, foi o único nesse molde. Nos sentíamos humilhados de ir para um local assim, no qual as casas não eram valorizadas.

Com o passar dos anos, a disputa territorial cessou e hoje posso dizer que aqui é um paraíso. Estamos no meio de três vias importantes, as linhas Vermelha e Amarela e Avenida Brasil. Só fico triste quando vejo alguns jovens no caminho errado, por falta de opção. Infelizmente a juventude não tem caminho de experiência para o mercado de trabalho. São poucas vagas para jovens aprendizes. 

O esporte presente na história

Me recordo das aulas de futebol que dei na Vila Olímpica da Maré, de 2000 a 2010, para 5.000 alunos. Ainda tinha as confraternizações com suco e pão com mortadela. Destaco que tinha a carteira assinada pela instituição, isso me ajudou na aposentadoria. Pela minha experiência, acho que o Seu Amaro deveria ter um busto na frente da Vila Olímpica, pois fez muito pela Maré. Em 2005 já falava para os meus alunos que no futuro o Ensino Médio era pouco, que era necessário fazer cursos para complementar. Hoje vivenciamos isso. Eu não queria formar jogadores e sim cidadãos.

Com a saída da Vila Olímpica, fui ajudar o professor Edilson que disputava com seus atletas o campeonato da Confederação Brasileira de Futebol. Falava para eles que era preciso estudar para ser alguma coisa na vida. Nesse período escolhi trabalhar à noite só para continuar dando aula de futebol.

Como liderança, debato sobre as obras que os governantes fazem nas favelas. Não há diálogo, pois somos nós que moramos aqui e que conhecemos nossas necessidades e prioridades. Certa vez uns políticos queriam diminuir o campo da Vila do João, bati o pé e fui conversar com secretário municipal de esporte. Ele concordou com a minha opinião, pois quem sabe o melhor são os moradores.

Na minha trajetória de professor de futebol não posso esquecer de outras lideranças que trabalharam ou ainda trabalham com escolinhas, como Edilson, Bidu, Sidney do Real Maré, Moranguinho, Alexandre Pichetti, Mário, Miro, Zé Luis, Serginho, Paulinho, Barba, Caixote, Willian, Ricardo, Junior, Paim, Giba e o irmão. Muitas vezes os projetos têm alguém de fora que ganha dinheiro e o professor dos alunos vira auxiliar. É preciso acabar com os interventores. Não queremos ganhar com o aluno no clube grande, mas também não desejamos que sejam enganados. Defendo que para evitar que empresários ganhem dinheiro com os nossos atletas era bom ter uma comissão que organizasse as transferências. Os jogadores profissionais como Leo, Dudu, Charles e Duarte poderiam ajudar nisso.  

Hoje trabalho com as crianças no campo do Palace, no Conjunto Esperança, às quartas-feiras, de forma gratuita. Já nos sábados organizo as peladas e torneios dos veteranos, no campo da Toca, na Vila dos Pinheiros. O meu prémio é esquecer os meus problemas e quando os meus alunos da Vila Olímpica colocam os seus filhos na minha escolinha, entendo que querem os filhos num lugar bom. 

Tento mostrar a esse menino que as coisas não são fáceis, que nem todos se tornam profissionais. Há 35 anos um total de 50% estavam bem de vida no futebol. Era uma alegria jogarem no Bonsucesso, Portuguesa e Olaria. Eram tratados como “Deus” na favela. Hoje as coisas mudaram, a garotada só quer os quatro grandes. Um exemplo que o futebol é um funil são os moradores Picolé e Sapinho, que jogavam muito, mas não tiveram oportunidade.

Uma outra ação de que gosto muito é de levar os alunos para conhecerem outros lugares, como o Maracanã, praias ou shoppings. Mostrar ao garoto que existe um lugar além da favela. Mas também bato na tecla do estudo. Eu me arrependo de não ter cursos, pois tinha a prática, mas perdi oportunidades. Por fim, falo para eles que tenho orgulho de quase ter nascido aqui e de ter criado meus cinco filhos na Maré, me esforçando para que não faltasse o necessário. São todos trabalhadores, me deixando com o sentimento de gratidão desse local chamado Maré.

Profissões quase extintas resistem ao tempo

Apesar dos desafios diversos, trabalhadores mareenses não desistem de ofícios que correm risco de se tornarem obsoletos 

Por Hélio Euclides em 05/05/22 às 07h. Editado por Daniele Moura

Lanterninha de cinema, telefonista, leiteiro, acendedor de poste, vendedor de enciclopédias, telegrafista, operador de mimeógrafo, datilógrafo — essas são algumas das profissões que se extinguiram com o progresso e a transformação da sociedade. Outras resistem ao tempo pelas mãos de profissionais que não desistem, como Atanásio Amorim, o alfaiate da Maré, que trabalhou cortando milimetricamente tecidos até a sua morte em 2020. Como ele, há outros valentes no seu ofício.

Lindanira Avelino da Silva, de 65 anos, tem um ateliê na Nova Holanda onde faz reparo de roupas e calçados, entre outras utilidades. Ela começou trabalhando em uma fábrica de roupas, mas percebeu que era explorada por não receber pelas horas extras que fazia. Decidiu, portanto, dar um novo rumo em sua vida profissional. “Sou de uma família de sapateiros, já atuei como ponteadeira de sapato, costurava toda a parte de pano ao solado”, conta. Sua trajetória já chega aos 30 anos de luta, 16 deles na Nova Holanda. 

Ela pretende se aposentar ainda este ano, mas revela que não vai parar, só diminuir o ritmo. Dona Linda, como é mais conhecida, garante que sua profissão vai continuar por um bom tempo. “Com o desemprego, é muito mais em conta consertar uma bolsa do que pagar R$ 50 por uma nova. Meu irmão é sapateiro e é a mesma coisa, um sapato novo custa mais de R$ 100, em média, mas com R$ 30 a pessoa sai com calçado não apenas colado, mas costurado. Hoje não dá para jogar fora”, explica. A costureira afirma que deixa bolsas e roupas como se fossem novinhas.

Dona Lina em seu ateliê. Foto: Gabriela Lino

A proprietária da Linda Consertos tem orgulho de ter estampado a capa do Censo de Empreendimentos, realizado pela Redes da Maré: “Fiquei famosa. Mas quem me conhece sabe que sou humilde e não trabalho apenas pelo dinheiro — eu gosto do que faço. No início, quando viam uma mulher consertando sapato, me chamavam de doida. Hoje já conquistei o meu espaço e muitos amigos na favela.” Lindanira não menospreza a tecnologia: ela usa uma rede social para conversar com seus clientes.

Um dos seus orgulhos foi ter se tornado microempreendedora individual, em 2013. “Mas do que um trabalho, o que faço é um remédio, me distrai. Não tem tempo ruim, as melhores épocas do ano são o Dia das Mães e o fim das férias. Aparecem muitos reparos em calçados e mochilas. Quando cai o movimento de bolsas e roupas, vou para o segmento de conserto de pula-pula e materiais de academia. Fico feliz quando uma pessoa vai viajar e leva sua bolsa e mala que foi reformada por mim. Acredito que para os meus serviços sempre vai haver clientela”, conclui.

Motor silencioso

No Parque União é possível encontrar uma loja de enrolar motor. Marco Antonio, de 47 anos, é o responsável e se identifica como eletricista e bobinador. “Enrolador tem duplo sentido. É um serviço sério, que abrange o reparo em todos os tipos de motores elétricos. O serviço que mais realizo é de reparo em bomba hidráulica”, explica. O seu ofício começou quando tinha 19 anos, na laje de casa.

Antônio se apresenta também como “psicólogo”. Especialmente quando seus clientes abrem o coração, contando o amor que sentem pelos seus equipamentos, como as bombas: “O meu trabalho vale a pena e vai além de um simples conserto. Tem pessoas que trazem sua bomba d’água já cansada, mas preferem o conserto por valor sentimental.” Ele conta a história de uma senhora que trouxe sua bomba hidráulica para reparo do motor. Ao finalizar o serviço, o equipamento passou a trabalhar silenciosamente. “Dois dias depois da entrega, ela voltou à loja e reclamou que não tinha gostado do serviço, pois antes tinha o barulho e que agora sentia falta dele”, lembra, rindo.

O seu primeiro curso, uma parceria com o Banco da Providência, foi feito em 1993. Desse diploma se orgulha e o mostra com carinho, pendurado na parede. Outra satisfação é ter conseguido passar o que sabe para o seu filho, já dono da própria oficina. “Não é um serviço no qual o profissional fica rico, mas tem muito trabalho na favela e pouca gente para fazer”, diz. Para quem deseja seguir a profissão, ele dá a dica: a prática é primordial. “O meu diferencial é que gosto do que faço”, resume.

Chave para o sucesso

Nem é tão difícil achar um chaveiro na cidade, mas que seja completo, afiando alicate, faca e tesoura, é mais difícil. Claudio Fernando Firmino Reis, de 43 anos, é esse profissional: “Antes de tudo, vendia chaves na Tijuca e às vezes me atrevia como chaveiro. Pela curiosidade e honestidade, os profissionais me ensinaram o ofício.”

Há 14 anos, começou a trabalhar num trailer e também na feira da Rua Teixeira Ribeiro, até conseguir sua própria lojinha: “Na Maré, comecei como ajudante de chaveiro até me profissionalizar e abrir o meu próprio negócio. Nos meus primeiros passos percebi que a população daqui sentia a necessidade de um chaveiro nos fins de semana. Na época, eram sete dias por semana de trabalho.”

Ele lembra que “meu primeiro passo foi comprar um esmeril e fui me aprimorando, me sentindo muito feliz por ter uma profissão e conhecer gente. Com essa renda sustento a minha família com dignidade. Sou um prestador de serviço da comunidade. É uma carreira que resiste e até está em expansão”. Ele já teve várias profissões, como guardião de piscina, vendedor de cerveja e ajudante de entregador de jornais, mas o que o deixa mais feliz é ser chaveiro. “Foi como chaveiro que consegui comprar minha casa, meu carrinho e educar minha filha”, resume.

Claudio Fernando Firmino Reis em frente a sua loja de chaves. Foto Matheus Affonso

Claudio ressalta que já atendeu pessoas oriundas da Região dos Lagos, do Uruguai e até de Portugal. “Aqui é uma favela-mãe: acolhe moradores oriundos de todo lugar. Como a Maré é um ponto estratégico da cidade, entre vias importantes como a Avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha, o comércio gira um capital forte. Gosto daqui e sinto gratidão pelos meus fregueses”, diz. A clientela retribui o carinho. “Acho o serviço dele excelente. Sempre que preciso de uma chave é ele quem eu procuro”, diz Sheila Carvalho, moradora da Nova Holanda.

Arte para o inusitado

Um artesão que passava pelo bairro da Lagoa, onde tinha um heliporto e ficava admirando os helicópteros e resolveu fazer miniaturas. Assim começou a história de Sebastião Nunes, de 71 anos, mais conhecido como Tião, que desejou construir seus próprios voos. Ele é um paraibano que chegou à Maré em 1974. Morador do Roquete Pinto, começou em 2000, utilizando a revista Guia de Helicóptero, como parâmetro para construir as suas artes. “Fui desenvolvendo e adaptando, modernizando e atualizando. Já são mais de 50 helicópteros construídos e espalhados pelo Brasil, como Belém, Fortaleza, Recife, Natal e João Pessoa”, comenta.

Apesar de não ser uma profissão em extinção, o artesanato representa a resistência de uma atividade geralmente à margem da modernização e mecanização do trabalho. Para construir as suas artes, Sebastião utiliza materiais recicláveis como garrafas pet e tiras de ventoinha de carro, que busca nas ruas. A cada arte criada o seu sentimento é de felicidade. “Me distrai muito, é uma terapia. Não é um brinquedo, mas sim um objeto de exposição”, afirma.

E não são só helicópteros, a produção já abrange outros meios de transporte: um ônibus para uma banda de forró de São Paulo. A arte ônibus demorou  2 meses para ficar pronta. E, por tanto trabalho não confia em por transportadora a encomenda, irá  pessoalmente entregar.

O ônibus tem 60 centímetros de comprimento, enquanto o helicóptero tem 50, com média de construção de três unidades por mês. Quem desejar adquirir o helicóptero deve desembolsar R$ 80. Tião também constrói retroescavadeira e carro. “Já me sugeriram criar uma página na internet, contudo sem as redes sociais já chovem pedidos”, finaliza. 

Gato de Bonsucesso sobe para série Bronze

Com o enredo “Respeito é bom e eu gosto” agremiação garante vaga para o antigo grupo D

Por Hélio Euclides em 04/05/2022 às 10h20. Editado por: Daniele Moura

O Grêmio Recreativo Escola de Samba Gato de Bonsucesso, depois de três anos fora do carnaval, após ser rebaixado do grupo E, deu a volta por cima. A azul e branco da Nova Holanda conquistou 178,3 pontos, ficando em sétimo lugar no Grupo de Avaliação, antigo Grupo E. Com o enredo “Respeito é bom e eu gosto”, a escola garantiu uma vaga na Série Bronze da Superliga, no antigo Grupo D, que desfila na Avenida Intendente Magalhães. O miado do gato pediu mais amor, apreço, resiliência, resistência, humildade, empatia e sabedoria para a Maré. Na camisa estampou o desejo do fim da intolerância, do racismo, da xenofobia, do medo e da homofobia sofrida pelos moradores da favela. 

A agremiação comemora 23 anos de Escola de Samba. Como o bloco “Mataram Meu Gato” foram 25 anos como bloco. A escola, que traz como símbolo um felino, foi a 16ª agremiação a desfilar no feriado de 21 de abril. O enredo, de autoria do carnavalesco Marcos Salles, foi defendido por componentes apaixonados pela escola, que disputaram as oito vagas com outras 20 agremiações. O presidente Mauro Camilo, depois da apuração, fez questão de levar a planilha com as pontuações, como um troféu, para a quadra localizada na Rua São Jorge, s/nº, na Nova Holanda. No local foi realizada uma festa de comemoração.

‘Aprendi a ser melhor, escutar as pessoas’ 

Filho de distribuidor, Jonathan Ribeiro é um dos mais antigos profissionais da distribuição da versão impressa do Maré de Notícias

Por Daniele Moura em 04/05/22 às 07h

Ele estava presente quando teve uma festa no Centro de Artes da Maré para comemorar a edição de número 100 do Maré de Notícias. Entre o público que assistia à homenagem aos 16 baluartes mareenses – líderes comunitários que se tornaram referência nas favelas onde vivem – estavam presentes os presidentes das associações de moradores. Na época, eram eles os parceiros que viabilizavam a entrega do jornal aos moradores da Maré. O da Baixa do Sapateiro, Charles Gonçalves, contava com a ajuda de Jonathan Ribeiro da Cruz, com 20 anos de idade à época. 

Por uma década, o jornal era levado para as associações de moradores — pontos de referência para a entrega do Maré de Notícias — e, de lá, chegava à casa dos moradores. Para Jonathan, esse esquema não permitia que a comunicação entre os moradores e o jornal fosse fluida. “A forma de distribuição antiga não favorecia o diálogo com os moradores. A nova distribuição é muito mais eficiente nesse ponto”, acredita.

Em setembro de 2019 o próprio jornal tomou para si a responsabilidade pelas entregas. Cada presidente de associação indicou pessoas para trabalharem na distribuição do periódico, o da Baixa recomendou o nome de Jonathan. “Charles me indicou para esse trabalho para eu adquirir experiência profissional e conhecer coisas novas na vida. Fazer parte do novo processo de distribuição do jornal foi maravilhoso, aprendi muito com companheiros excelentes que hoje eu tenho”, relembra o rapaz.

Jonathan nasceu no Hospital Geral de Bonsucesso e viveu até os sete anos na Vila Cruzeiro, na Penha. Chegou à Maré com a família em 2006. Cursou o Ensino Médio do Colégio Estadual Olga Benário Prestes em Bonsucesso e hoje mora na Vila do Pinheiro com a mãe e um irmão mais novo, com apenas um ano de diferença. O pai (que era distribuidor dos jornais O Globo e Folha de São Paulo) morreu há quatro anos.

Seguir a profissão do meu pai é uma honra. O Maré de Notícias me trouxe motivação, aprendizados, eu pude mudar em muitas coisas. Hoje me respeito mais e estou mais feliz. Aprendi a ser melhor, a escutar as pessoas.

Jonathan Ribeiro da Cruz, distribuidor do Maré de Notícias

Ele revela o desejo latente de sempre evoluir. “Trabalho procurando sempre melhorar a performance no dia a dia para não errar. Isso sempre me motiva. Hoje você pode estar bem, mas amanhã ninguém sabe. Por isso é importante sempre ajudar o próximo, inclusive os distribuidores mais novos, que têm menos tempo no jornal. Procuro apoiar a todos sempre da melhor forma possível. A equipe é muito entrosada, e daqui pra frente é só somar,” diz  o jovem.

Por onde anda na Maré, Jonathan é abordado. Difícil não reconhecê-lo como “cria do Charles”: “Não tem jeito, todo mundo me conhece, acaba que me sinto destacado!”

Sobre a importância que ele dá ao periódico comunitário, ele afirma:

A Maré precisa desse jornal que é aguerrido, batalhador e vencedor. Todos nós mareenses precisamos dele para sabermos do cotidiano da Maré. O jornal está aí para moradores se divertirem, aprenderem a dialogar entre si e saber como são as 16 favelas.”

Junto com Jonathan na distribuição estão Valdemir Gomes da Cunha Júnior, Lucas Brandão, Cristiane dos Santos, Vagner Moreira Pires, Ricardo Heleno Mendes Cruz, Antônia Valéria Lins e Silva, Pedro de Oliveira, Yasmim Emmanuel Duarte, Thuany Vieira Nascimento e Lenny Aquino.

Junto com Jonathan na distribuição estão Valdemir Gomes da Cunha Júnior, Lucas Brandão, Cristiane dos Santos, Vagner Moreira Pires, Ricardo Heleno Mendes Cruz, Antônia Valéria Lins e Silva, Pedro de Oliveira, Yasmim Emmanuel Duarte, Thuany Vieira Nascimento e Lenny Aquino.