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Culpados até que se prove o contrário: o peso das violações de direitos nas favelas

Subversão da presunção de inocência, presente na Declaração de Direitos Humanos e na Constituição Federal, é rotina nas regiões periféricas do Rio de Janeiro e do Brasil

Daniele Moura e Tamyres Matos

“Atirar primeiro, perguntar depois”. Não há um morador de favela que não conheça de perto algum reflexo dessa máxima. Todos estão cientes de que o estado de alerta é necessário para não se tornar a próxima vítima. Mas o que acontece depois do tiro? O que acompanha o luto? Trajados de dor e tristeza, familiares e amigos das pessoas mortas por policiais reverberam com a projeção que conseguem: “queremos justiça”. Mas a realidade é que poucas vezes a tão sonhada justiça vem.

O Maré de Direitos, uma das principais ferramentas na luta por direitos dentro do maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro, registrou o atendimento de 296 situações de violações por parte de policiais entre os anos de 2016 e 2021. Destes, 117 casos resultaram em morte ou lesão corporal grave. Do total de atendimentos, somente sete processos foram judicializados e apenas um deles resultou em acordo judicial e foi finalizado.

“Muitas vezes, as pessoas têm medo de represálias dos policiais ou são afetadas pelo discurso de que a Justiça não chega para o morador da favela. Quanto às desistências, a demora faz perdurar o luto, o sofrimento das famílias. Os procedimentos pré-processuais também são prolongados demais. Este serviço precisa ser claro, eficiente, correto, mas tem que ser rápido também. Porque, quando ela demora demais, faz nascer dentro das famílias um sentimento de injustiça”, afirma Lucilene Gomes, advogada e redutora de danos do Espaço Normal, espaço de acolhimento da Redes da Maré.

Há mais de 4 anos, a família de Jeremias Moraes da Silva, assassinado aos 13 anos de idade durante uma ação policial, vive essa “via crucis” da luta por Justiça. “Meu filho foi morto por despreparo, covardia. Um menino que é alvejado pelas costas, com um pirulito na mão… e os policiais alegam que estavam ‘se defendendo’. Do que, eu não sei. Da ‘arma’ que ele tinha na mão? Só se pirulito agora virou uma arma. Ele estava na porta da casa de uma amiga da igreja, indo ensaiar um hino”, relembra a mãe do menino, Vânia Moraes da Silva.

Na casa da famílias, retratos guardam fotos de Jeremias. Foto: Matheus Affonso

As palavras de Vânia têm a marca do cansaço de quem passou pela pior experiência na vida de uma mãe. No dia da morte do filho, não havia  qualquer operação na comunidade. Ou seja, nem o alerta subjetivo do medo coletivo havia sido disparado para que o adolescente soubesse que “não podia” andar desatento pela rua. Ela relata que, após o assassinato de Jeremias, não foi convocada em nenhum momento para prestar depoimento na Divisão de Homicídios da Capital, que supostamente investiga o caso, mesmo tendo um advogado – que é  pago pela igreja que Vania faz parte. 

“Eu só quero que pelo menos eles (policiais que atiraram em Jeremias pelas costas) se sentem no banco dos réus. Meu advogado explicou que dificilmente eles seriam condenados, estão respondendo administrativamente. Só quero que eles respondam, pelo menos, a um júri popular. Acreditar que eles vão ser presos? Não acredito não. Infelizmente eles vão estar por aí para matar outras crianças. Eu me lembro que, assim que aconteceu o caso do Jeremias, nós demos uma entrevista e eu falei que Jeremias não seria o último, como não foi. Tivemos o Marcus Vinicius e tantas outras crianças que foram mortas. Teve um menino que foi morto dentro de casa – referência ao caso João Pedro, em São Gonçalo -. Vira e mexe a gente escuta essas notícias na televisão”, resigna-se.

Na Maré, Clínica da Família leva nome da criança, morta em 2018. Foto: Matheus Affonso

Sangue escorre pelos becos (e nada acontece)

O Rio tem a polícia mais letal do Brasil, apesar de não estar entre os dez estados mais violentos do país. De acordo com uma pesquisa sobre o tema divulgada pelo MP do Rio em 2020, o padrão no uso da força pelas polícias no Rio é muitas vezes atribuído ao perfil da criminalidade local, que seria excessivamente violenta e armada. 

Mas, apesar de ser reconhecido nacional e internacionalmente como um local violento, o Rio ocupava o 11º lugar entre os 27 estados da federação em relação às mortes violentas intencionais em 2018, com uma taxa de 39,1 por 100 mil habitantes, o que representa 10,1% do total observado no país. Portanto, uma taxa menor do que a de estados como Acre, Alagoas e Sergipe, por exemplo.

De acordo com os dados obtidos no site do Instituto de Segurança Pública do Governo do Estado do Rio (ISP), entre 2016 e 2020, jovens pretos são maioria entre as vítimas fatais por intervenção de agentes do estado. No período analisado, foram registradas oficialmente 1.190 mortes como resultado de ações policiais.

“O controle externo da atividade policial é atribuição do Ministério Público. Pesquisas que foram feitas no intervalo de mais ou menos 10 anos apontam que, para os casos de mortes de civis pelas mãos de agentes do estado, nós temos algo em torno de 99% de arquivamento por iniciativa do próprio Ministério Público. Tem que se discutir quais as razões para isso, o que nos conduziria a uma série de pontos como a perícia, a investigação e o inquérito policial como um todo”, analisa Daniel Hirata, pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para o especialista, existe um senso que justifica essas mortes aos olhos da sociedade, o que impacta na efetivação ou não dos dispositivos legais que deveriam proteger essa parcela da população do braço armado do Estado. Associa-se a região de favela ao tráfico de drogas na ótica do senso comum. E, em nome de uma suposta guerra às drogas, a ação que legitima o impulso do “menos um bandido para nos ameaçar” acaba sendo aceita como um efeito colateral, até mesmo quando essa inocência é comprovada. Ou seja, a situação extrapola até mesmo o vício dos “culpados até que se prove o contrário”.

“A gente ainda vai ter que avançar muito mesmo, todas as pessoas envolvidas nessa nessa questão – policiais, pesquisadores, organizações, imprensa, sociedade civil – para que se faça claro de uma vez por todas, que o fato da pessoa atuar no comércio de drogas não faz dela uma pessoa ‘matável’, uma pessoa cujo a morte é justificável. Nós não temos pena de morte no Brasil e não há morte pelas mãos do Estado que seja justificável, a não ser nos casos de legítima defesa, que não é o que acontece na maior parte das mortes que acontecem aqui no Rio”, considera Hirata.

O Ministério Público informa que a legislação brasileira atribui ao órgão o dever de oferecer denúncia ou promover o arquivamento de procedimentos investigatórios. “Logo, sempre que as investigações, por diversos motivos, não conseguirem reunir um mínimo de prova para que seja deflagrada uma ação penal, o MP promoverá o arquivamento, que poderá ser revisto diante de novas provas”, detalha em nota.

“O MPRJ vem adotando medidas para dar maior efetividade à apuração e responsabilização de agentes, com a criação: de grupos especializados de combate ao crime (como o GAECO); de Forças-Tarefas, Grupos de Atuação Especializada e Grupos Temáticos Temporários; de plantão 24h para denúncias sobre operações em comunidades; das Coordenadorias de Segurança Pública, de Direitos Humanos e Minorias, e de Promoção dos Direitos das Vítimas, para interlocução com as vítimas, seus familiares e a sociedade civil organizada”, lista o órgão.

Sem responsabilização, ciclo fatal é normalizado

Para que a democracia chegue o mais perto possível de funcionar plenamente, é preciso que seja respeitada uma série de processos. Para Daniel Hirata, no caso da força policial, quando não há uma sinalização clara de controle das instâncias, existe o risco de ocorrer um desestímulo àqueles que seguem as regras. Ou seja, a pessoa pode agir da maneira como achar conveniente, pois ela dispõe de forma praticamente ilimitada do poder de decisão sobre vida e morte, sendo que geralmente não há consequências.

“Esse é um dos motores da brutalidade policial mas é também um dos motores da corrupção policial. No momento em que você se sente completamente livre para dispor de forma ilimitada sobre a vida das pessoas, também se sente livre para poder negociar a vida das pessoas, vira uma questão “monetária”. Parte importante da corrupção entre os policiais também está associada a essa não responsabilização dos abusos cometidos”, observa o especialista.

Segundo Hirata, a possibilidade do indivíduo de reivindicar os seus direitos e questionar as falhas dos governantes e das instituições é parte essencial da democracia e, muitas vezes, ausente do cotidiano das favelas cariocas. “Quando você tem uma suposta democracia que falha a todo momento de cumprir o requisito mínimo, isso resulta em uma reação de envenenamento total das instituições. As pessoas precisam confiar no Estado para que ele funcione de forma adequada. Toda vez que há uma grave violação dos Direitos Humanos e isso não não tem consequência, a pessoa passa a desacreditar nas instituições e isso é muito ruim para o conjunto da democracia”, pontua.

Essa falta de confiança nas instituições, com o passar dos anos, se torna um problema cada vez mais difícil de resolver. “A política do medo é a característica fundamental do autoritarismo. Ela é lubrificante nas engrenagens da militarização e o medo não é um bom conselheiro, sobretudo na área de segurança pública”, pondera Daniel, que arremata:

“É um grande problema, por exemplo, comparar abusos policiais com abusos de grupos civis armados. Os policiais dizem que o tráfico de drogas age violentamente e, por isso, eles também agem assim. Porque o contexto do Rio é violento e os grupos armados matam policiais, barbarizam, enfim. Mas esse tipo de comparação estabelece um tipo de equivalência entre grupos armados e forças policiais. É muito problemático, pois dos grupos armados a gente não pode esperar nada, mas aqueles que representam o Estado, a Justiça, têm que cumprir a lei”.

Conheça a história do mineiro que foi um dos primeiros distribuidores do Maré de Notícias

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Daniele Moura

Lucas Frederico Brandão nasceu em Diamantina, cidade do interior de Minas, passou por São Paulo e, desde 2017, vive na Maré. Foi um dos primeiros frequentadores do Espaço Normal, projeto da Redes da Maré referência no atendimento de pessoas em situação de rua e usuários de crack e outras drogas pelo viés da redução de danos. Com um jeito integrador e brincalhão, Lucas logo chamou a atenção não só da equipe de plantão, mas também dos frequentadores do local, com uma postura de liderança nos processos e dinâmicas que se produziam ali. Uma das primeiras ações de maneira espontânea que se envolveu foi com a produção da comida compartilhada com os frequentadores do Espaço a partir de doações. Lucas se tornou uma figura carimbada na cozinha. “Minha vida foi totalmente transformada, cheguei sem perspectiva, desacreditado, todo enrolado cheio de problema, bem desorientado. Não foi fácil, muita gente lutou pra que eu ficasse frequentando o Espaço”, desabafa.

Com uma postura pró ativa, integradora e coletiva, logo começou a participar de outras atividades oferecidas como a “Roda dos Normais” – uma conversa semanal  da equipe com os usuários para uma troca sobre a convivência – o que acabou o levando a ser um mobilizador no chamado para novos pessoas a frequentarem o local. 

No Espaço Normal, a convivência é pautada pelo cuidado,  autonomia e diálogo, e Lucas, de maneira orgânica, começou a  se relacionar com a equipe e com  os usuários a partir desses pontos que a convivência estabelece. “A gente se sente numa família, se sente acolhido, abraçado, compreendido”, afirma o rapaz

O primeiro contato de Brandão  com o jornal foi como assistente de design, em 2018. “Na época do estágio no jornal eu tive uma redução maior de danos, fazia uso de crack e hoje não faço mais”, comenta Lucas reforçando a importância da metodologia usada no trabalho do Espaço Normal. 

No início de 2019, Lucas começou a trabalhar como distribuidor do jornal, num projeto chamado Entre Bicos, que gera renda para os frequentadores do espaço. “O jornal foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida, eu era um perdido. É um dinheiro digno, devolve valores, o jornal acredita nas pessoas que eram invisíveis. Para mim esse trabalho é muito mais que distribuir. Eu não saio na rua apenas para distribuir o jornal, ele representa muito para minha vida, tem um significado muito grande, não é um simples jornal, não é apenas percorrer ruas e vielas, e levar a realidade do  território para pessoas que não tem noção do que se passa na frente delas. Conheci muitas pessoas, me sinto orgulhoso de poder andar nas 16 favelas, me sinto cria, e conheço a Maré melhor que muitos mareenses.”

Carismático, ele acabou se tornando um elo forte entre o que se ouve nas ruas da Maré e o que se conversa na redação do Jornal para pautar novas matérias. “O que a grande mídia  produz é completamente distorcido do que de fato acontece aqui dentro. Eu penso que os moradores deveriam dar muita importância  a isso que é entregue a eles, eles devem enxergar  valor  nesse jornal. Através do jornal foi construída muita coisa, foi mudada muita coisa, e desconstruído valores que a gente trouxe. A gente tinha um problema com um síndico que nunca deixava a gente entrar no prédio e aí teve uma matéria sobre síndico e depois que ele leu a gente pode entrar e entregar o jornal para os moradores do prédio.

Junto com Lucas na distribuição estão Valdemir Gomes da Cunha Júnior, Jonathan Ribeiro Da Cruz, Cristiane dos Santos, Vagner Moreira Pires, Ricardo Heleno Mendes Cruz, Antônia Valéria Lins e Silva, Pedro de Oliveira, Yasmim Emmanuel Duarte,  Thuany Vieira Nascimento e Lenny Aquino. “O jornal é uma redução de danos muito grande pra muita gente, é lindo acompanhar a evolução dos meus colegas, eu convivia com muitos na rua e hoje vê-los trabalhando, mudando a vida é demais. A pena que isso é feito pela ONG e não pelo governo”, finaliza com a crítica construtiva que lhe é característica.

Evento reúne profissionais para um bate-papo sobre saúde

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Daniel Soranz deixa pasta municipal e se encontra com profissionais da saúde na Maré.

No início de abril, 11 secretários municipais foram exonerados. Entre eles, Daniel Soranz, que agora pode disputar um cargo público nas próximas eleições, algo que ainda será definido na convenção do Partido Social Democrático (PSD), o qual se filiou. O professor, pesquisador da Fiocruz, médico, doutor e mestre em saúde pública participou de um evento na Maré que marcou a sua despedida da secretaria. Em seu lugar assumiu o presidente do Instituto Municipal de Vigilância Sanitária, Vigilância de Zoonoses e Inspeção Agropecuária (Ivisa-Rio), Rodrigo Prado.

O local escolhido para a reunião de despedida ao cargo municipal foi o Bar do Russo, ao pé do Morro do Timbau. O evento realizado na noite da última segunda-feira (18/04), e reuniu mais de 200 profissionais de saúde, que acompanharam o secretário para agradecer, além de fazer um balanço de como foi tratada a pasta na Maré. Soranz também salientou que ficou feliz de fazer parte do time da saúde que lutou contra o vírus do covid-19. “Foi uma gestão em conjunto com os profissionais cariocas, na qual todos entraram para a história. Quero um dia voltar para a Fiocruz e andar de cabeça erguida”, avalia.

O ex-secretário fez questão de afirmar que não vai misturar o seu trabalho na saúde com a pretensão política. “A saúde não pode ser trocada por voto. Saio com a consciência tranquila, pois ninguém assumiu cargo na secretaria em troca de apoio político e nenhum funcionário entrou por indicação e sim currículo e processo seletivo, não houve apadrinhamento”, comenta. 

Cintia Mariano, gerente do Centro Municipal de Saúde (CMS) Nagib Jorge Farad, em Jardim América, esteve no evento por ter trabalhado em unidades da Maré. “Sempre é bom um bate papo sobre saúde. É preciso discutir a pasta, pois a Maré tem o seu diferencial e não pode aceitar um pacote pronto de saúde, pois os moradores sabem de suas necessidades”, diz. O seu colega da Clínica da Família Ministro Adib Jatene, na Vila dos Pinheiros, Valter Luiz, que atua como agente de saúde, analisou como uma boa gestão da secretaria. “Estamos vencendo uma pandemia, por isso espero que o próximo presidente da república indique Daniel como ministro da saúde”, expõe. 

Ao final, o ex-secretário falou com o Maré de Notícias. “A saúde municipal ainda tem muitos desafios. Estamos longes de chegar num patamar desejado. Iniciamos uma melhora que foi a reposição de equipes e reformas de unidades como o CMS Vila do João. O mais difícil é termos duas unidades federais no entorno da Maré, que atendia essa população, com as emergências fechadas. Essa é uma meta que os governantes precisam resolver, para recompor o Sistema Único de Saúde”, explica. Ele mandou um recado para os mareenses. “Agradeço por confiarem na vacina e se protegerem, só dessa forma foi possível diminuir as medidas de restrição. Agora é o momento de tomar a dose de reforço, que na Maré só atingiu 65%. Não podemos naturalizar os problemas e nem querer que apenas um governo traga todas as soluções. Mas com o empenho da sociedade, como a Maré que tem uma história de esforço e união, chegaremos num melhor sistema de saúde”, finaliza.

Consumo de pescados aumenta em favelas mareenses e eleva gastos

Apesar do aumento, o consumidor não se afasta do costume de comer peixe.

Por Letícia Moser, Aline Valério e Hélio Euclides. Em 19/04/2022, às 14h50.

A Semana Santa, festa da igreja em que se comemora a Páscoa, é um dos períodos mais importantes para os cristãos. O costume de comer peixe resiste até os dias de hoje e é ligado a uma forma de praticar o jejum e a abstinência, indicada pela Igreja Católica como prática de devoção. Uma tradição que ultrapassa gerações, sendo comum neste período a multiplicação de barracas em diversas favelas, para venda de pescado e a aglomeração de consumidores, mesmo depois do feriado.

“É um tempo de abstinência, mas também devemos praticar o jejum e a caridade com os mais necessitados. Comer peixe na Semana Santa faz parte da prática e devoção cristã”, comenta Carmem Fragoso, integrante do Santuário São Paulo Apóstolo e Nossa Senhora da Paz, no Parque União.

Peixe vira alimento salgado

A inflação para o mês de março apresentou uma alta de 1,62%, representando a maior variação para este período desde 1994, e um acúmulo de 11,30% nos últimos 12 meses. Observa-se assim uma alta geral nos custos de vida da população brasileira: O Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE) informou através do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) que, de acordo com a variação mensal relativa a março de 2022, houve um aumento de 6,57% no preço do gás de botijão. Seja o peixe cozido, frito ou assado, as refeições na Sexta-Feira Santa e domingo de Páscoa foram mais caras que no passado. 

Seguindo a tradição de não consumir carnes vermelhas, os peixes ganham posição de destaque e o seu preço aumentou de acordo com a demanda. No mês passado os pescados apresentaram uma alta de 0,87% no país. O bacalhau, que é no geral o ingrediente mais utilizado, principalmente no domingo de Páscoa, teve alta de 1,46% no estado do Rio. Este ano ocorreu a substituição na mesa dos brasileiros por opções de peixes mais baratos. Outros ingredientes secundários utilizados nas receitas, como o tomate e a cenoura, no âmbito nacional apresentaram respectivamente altas de 27,22% e 31,47%. Outro componente popular das refeições pascais, a batata inglesa, mostrou uma alta de 11,92% no estado. 

Nesse período é comum o crescimento do número de pontos de venda de pescados. Na Maré, multiplicou-se o número de mesas espalhadas pelas favelas. Em alguns casos, são pescadores que aproveitaram a grande procura para aumentar a remuneração e se desviaram dos atravessadores. Porém, a maioria foram de feirantes que vendem o produto em dias específicos e mudaram a rotina para a venda diária. É o exemplo de Anderson Sena, que há mais de 15 anos vende peixe. No dia a dia, tem seu ponto na feira da Rua Teixeira Ribeiro, no Parque Maré, aos sábados. “A semana passada foi muito boa para nós. O grande problema foi o aumento de preço no Ceasa. Isso acarretou que acabamos repassando o preço elevado ao consumidor”, diz. 

Sena destaca que os peixes que tiveram maior aumento foram a corvina, tilápia e o filé de linguado. Na sua barraca, o peixe tilápia custava R$ 17,99. Apesar dos preços elevados, a tradição persistiu. “Para escapar do aumento comprei o bacalhau no início do mês. Mas o peixe para sexta-feira foi adquirido só na véspera, para ir à mesa fresquinho”, conta Josefa Maria, moradora do Morro do Timbau. Com a diminuição do poder aquisitivo do consumidor, o que poderia ser descartado, vira alimento. É o que aconteceu com a cabeça dos pescados, que era descartada e que também foi colocada para a venda. O preço apresentado da cabeça do salmão foi de três unidades por R$ 20,99. 

Na segunda-feira (18/04), todos os pontos de venda de pescado estavam fechados. Foi um dia de descanso para os vendedores e também de comemoração pela boa vendagem. Francisco de Assis, que comercializa peixe há 40 anos na Rua Teixeira Ribeiro estava em clima de festa, bebendo uma cervejinha. “Foi uma boa semana. Vendemos muito cará, pescadinha, xerelete e albacora. Só não foi melhor pois o aumentou muito o preço e consumidores reclamaram e pediram descontos, algo que não foi possível conceder. Acredito que os preços ainda vão continuar nas alturas, por motivo de não haver uma fiscalização”, conclui.  

(*)  Letícia Moser, Aline Valério são estudantes universitárias vinculadas ao projeto de extensão Laboratório Conexão UFRJ, uma parceria entre o Maré de Notícias e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Expo Favela reúne mais de 30 mil pessoas em São Paulo

Evento contou com divulgação de pesquisa e muitos debates sobre empreendedorismo nas favelas

A primeira edição da Expo Favela, evento inédito que conectou empreendedores da favela com investidores de outras partes da cidade, organizada pela Favela Holding, aconteceu no final de semana dos dias 15, 16 e 17 de abril, no World Trade Center (WTC) em São Paulo.

A feira contou com cerca de 36 horas de programação, com público aproximado de 33 mil pessoas, em uma média de 11 mil por dia, circulando nos três dias de encontro, gerando diversas oportunidades de negócios, além de selecionar 10 projetos, entre os 300 expostos no Golden Hall, para participar do reality show, “Expo Favela – O Desafio”, uma produção da Favela Filmes com a Rede Globo, que será exibido na emissora aos sábados.

O evento foi aberto com a divulgação da pesquisa inédita realizada pelo Data Favela sobre o empreendedorismo nas favelas. (acesse clicando aqui.) Os dados foram apresentados por Celso Athayde e Renato Meirelles. Além da pesquisa, o encontro contou com diversas conferências com personalidades e empreendedores como: Luiza Helena Trajano, Thelma Assis, Emicida, Alok, entre outros.

“Quando idealizei a Expo Favela, já imaginava que seria grande. Porém ver o evento acontecer foi mais do que eu podia prever. A favela tem o empreendedorismo como sua principal característica de sobrevivência. Proporcionar a conexão dos incríveis empreendedores que temos em diversas favelas do Brasil com os investidores do asfalto foi fantástico. É só o começo! Para as próximas edições vamos ser ainda mais ousados. Favela não é carência, favela é potência”, diz Celso Athayde, idealizador da Expo Favela.

No último dia a música, abordada como ferramenta de geração de oportunidades, deu o tom da feira. O produtor Kond, o rapper Dexter e o DJ Alok participaram de conferências para um teatro lotado.

Fotos: Douglas Jacó

Favelão: Jornalismo Comunitário à frente de seu tempo

Jornal da década de 1980 guarda a memória da comunicação política das favelas do Rio de Janeiro e da resistência da população dos territórios contra as remoções.

Por Tatiana Lima  em 18/04/2022. Publicado originalmente em 31/03/2022 por RioonWatch.

“Quem mora nas favelas ou bairros populares do Grande Rio, muito cuidado pra não serem mais uma vez enganados. Fiquem de olhos bem abertos, pois vão aparecer certos deputados, vereadores e candidatos a governador querendo se aproveitar da nossa situação de pobreza pra ganhar votos às nossas custas. Pra melhor reconhecer esses falsos políticos, vamos denunciar aqui o que eles prometem e quase sempre não cumprem, quais os seus deveres, o que é política e qual a importância do voto.”

Editorial ‘Os Políticos Nas Favelas’, 1ª edição, novembro de 1981 do jornal Favelão

O texto que você acabou de ler é um fragmento de um jornal comunitário. Faz parte da nota jornalística: “Os políticos nas favelas“. Questões atuais como a crise de representatividade política, o uso eleitoreiro e a manipulação do voto da população das favelas já se faziam presentes no texto publicado em novembro de 1981, na primeira edição do jornal Favelão—A Voz dos Favelados.

O impresso narra a memória da comunicação política das favelas e mostra como, há pelo menos 40 anos, os moradores lidam com o eleitoralismo. O Favelão foi uma das experiências do movimento de comunicação popular no Rio de Janeiro na década de 1980 que chamou atenção do historiador e jornalista Marco Morel.

Em 1986, ele publicou o livro O Jornalismo Popular nas Favelas Cariocas, onde faz uma análise do jornalismo “construído por mãos anônimas”. “À primeira vista (ou numa visão já condicionada) um jornalzinho feito por favelados pode parecer uma miniatura mal feita de um grande jornal… Mas é bom que se diga: por trás destas folhinhas pode estar, viva e palpitante, a história de um povo”, ressaltou Marco.

Capa de julho de 1984, edição nº 18
Capa de julho de 1984, edição de número 8

Favelão foi uma experiência de comunicação popular plural e complexa. Com doze páginas e tiragem de 3.000 exemplares, era um jornal “feito por favelados para favelados”. Desafiava-se a ser um veículo que representasse a “voz” das diversas favelas do Rio de Janeiro.

Fundado pela Pastoral de Favelas e lideranças comunitárias, o jornal surgiu da necessidade concreta de lutar contra a remoção do Morro do Vidigal, em 1978. A resistência dos territórios e das lideranças comunitárias contra as tentativas de remoção das favelas do Rio de Janeiro foi uma bandeira de luta dessa experiência popular e comunitária de comunicação, bem como o combate ao racismo e à violência policial contra “favelados”.

Foi criado pela Pastoral em novembro de 1981. Contudo, apesar do envolvimento da Igreja Católica, todos os textos e ilustrações publicadas eram produzidos exclusivamente por moradores de favelas.

Devido à legislação da época, Favelão contava com assessoria profissional da jornalista Gilda Vieira—já falecida, responsável pelo jornal juridicamente. Segundo o ilustrador Damião Silva, integrante da equipe do jornal, o papel da jornalista era realmente de apoio técnico.

“Ela não escrevia as matérias, mas ajudava a organizar a diagramação. As matérias eram das próprias pessoas das comunidades, dos representantes que participavam do vicariato”, relatou Damião em depoimento à pesquisa Experiências em Comunicação Popular no Rio de Janeiro Ontem e Hoje: Uma História de Resistência nas Favelas Cariocas, realizada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).

O estudo se inspirou no mapeamento feito por Marco Morel das experiências de jornalismo nas favelas da Zona Sul do Rio na década de 1980. Organizada por Claudia Santiago, a obra traz o registro de 40 experiências em comunicação popular nas favelas da Zona Norte, SulOesteBaixada Fluminense e Niterói, tornando-se referência no debate sobre a comunicação comunitária do Rio de Janeiro.

De acordo com pesquisa do NPC, o auge das experiências de comunicação e educação popular no Brasil aconteceu no contexto da chamada “abertura lenta, gradual e segura” da Ditadura Militar, na segunda metade da década de 1970 e início dos anos 1980, sendo o jornal Favelão um dos diversos exemplos da organização popular nas favelas. “Nesse período, surgiram vários movimentos sociais, principalmente articulados pela ala progressista da Igreja Católica [ligada aos ideias da Teologia da Libertação] que resistiram ao autoritarismo e à exploração do governo militar”, explica a jornalista e historiadora Cláudia Santiago.

Favelão destacava-se por apresentar características gráficas diferentes do restante da imprensa da favela na época, que, em geral, era impressa no mimeógrafo. Financiado pela Fundação Ford, em convênio com a Arquidiocese do Rio, Favelão era um jornal impresso em gráfica e contava com diagramação profissional. A verba chegava até o jornal repassada pela Igreja através da Pastoral de Favelas.

A Voz dos Favelados pelo Direito à Favela

Luta contra remoção no Morro da Baiana, Complexo do Alemão, edição nº 1.
Luta contra a remoção do Morro da Baiana, no Alemão na edição de número 1

O protagonismo da construção, produção e distribuição do jornal era todo dos moradores de favelas. Trazia uma linguagem “extremamente de vanguarda”, analisa Marco Morel. A frente do seu tempo, a equipe em plena ditadura militar, debatia assuntos da política nacional, movimento negrocultura afrogênero, além da resistência das favelas contra as remoções e a luta por acesso a direitos como águasaneamento básicoeducação e transporte público.

Em tempos de forte repressão política, fazia-se disputa de narrativa sobre as favelas do Rio de Janeiro através da comunicação comunitária. A partir, por exemplo, do forte caráter de identidade do jornal, usava-se o termo “favelado” para seu slogan: “a voz dos favelados”. O sentido e a carga moral da palavra estavam sendo disputados pelo jornal.

À época, a palavra “favelado” já começava a deixar de ser usada para designar apenas “aquele que vive em favela“, conforme consta no dicionário Michaelis, passando a ser usada socialmente e associada na mídia com um valor de sentido discriminatório, usado em situações pejorativas e negativas, expressando o racismo estrutural e o preconceito social da sociedade brasileira.

A representação estética das favelas também estava no título do jornal, que trazia ilustrações de barracos dentro de cada letra. A escolha do nome do impresso, segundo Damião Silva, em entrevista para o NPC, foi feita consultando em reuniões lideranças de favelas, entre elas Diquinho, do Complexo do Alemão.

Favelão começou entre 1981 e 1987, sendo distribuído por lideranças comunitárias a preço simbólico ou, muitas vezes, gratuitamente a moradores de favelas, de beco em beco, ainda sob a sombra da ditadura civil-militar.A ideia era levar o acesso à informação aos moradores de favelas por meio da própria favela, sem preconceito social e com uma linguagem popular.

“Para você que está me segurando, me lendo e talvez, se perguntando ‘que bicho será esse?’ gostaria de lhe dar algumas dicas. Nasci agora para as comunidades, mas já estou há meses na barriga da minha mãe. A minha mãe é uma equipe de pessoas composta de muitos favelados, dois jornalistas e um estudante de história. Quando nasci, fiquei todo orgulhoso de saber que muita gente me esperava. Aliás, soube que eu andava na cabeça de muito líder batalhador, esses caras que estão sempre lutando para melhorar a vida das favelas. Outra coisa que a mãe me contou foi que ela queria um nome muito bonito para mim. Aí ela saiu perguntando a uma porção de gente que faz reunião nas favelas, que nome eu devia ter. O nome que mais colou foi o que me deram e, antes mesmo de eu nascer, as pessoas já me chamavam de Favelão. Confesso que fico todo arrepiado quando ouço meu nome falado pelos meus amigos. Um abraço para vocês.”

Editorial ‘O que sou?’, 1ª edição, novembro de 1981

Capa de janeiro de 1983, edição nº 9
Capa de 1983, edição de número 9.

A experiência comunitária e popular do jornal Favelão segue até hoje sendo um registro da ação política de moradores de favela seja pela representação, pelo registro histórico do protagonismo da voz de favelados, pelas denúncias ou pela linguagem. Favelão dá aula de engajamento social nos 26 exemplares publicados. Traz registros das lutas realizadas por favelados pelo direito à favela.

A denúncia pelo direito à favela está presente em editoriais, notícias de despejo e sobre a cultura da favela no Favelão. Eram comuns também os relatos em primeira pessoa. Parte desses relatos também revelam as mudanças do próprio território da cidade do Rio de Janeiro e como essas transformações atravessavam o cotidiano dos moradores:

“Eu vim para essa favela em 20 de julho de 1937. Passei muita dificuldade. Não tinha água, não tinha luz, não tinha caminho. Lutei muito e com dificuldade para criar meus filhos. A água era ‘pegada’ na Rua Gustavo Sampaio, era um bondinho que trazia para a gente. Não existia o fogão a gás, era fogão a lenha, lenha que se apanhava na Siqueira Campos numa obra que existia. Eu mesma ia buscar. Meus filhos todos estudaram até os 14 anos, pois não havia condições de estudar. O horário era à noite e foram para a oficina, aprender uma profissão.

Não tenho queixas da favela. Aqui foi onde eu lutei com dificuldade e venci… Ainda trabalho, tenho patrões que são muito bons para mim. Venci porque tive muito apoio e coragem, meus vizinhos são meus parentes, nunca chorei sozinha. A associação do morro também, me deu muito apoio, todos os presidentes do morro, sempre me ajudaram e com nenhum deles tive problemas. Sou agradecida, do meu coração, a todos daqui da favela onde eu vivi, chorei e amei.”

‘Minha Vida na Favela’, texto por Leopoldina Torquato Farias, de 68 anos, moradora do Chapéu Mangueira, na 2ª edição, 26 de novembro de 1981

Da Luta pela Constituinte ao Direito de Respirar

Favelão se fixa em uma época de efervescência política, com diferentes forças históricas em disputa para ocupar lugares na recente democracia brasileira. Neste contexto, que ainda tinha como pano de fundo uma forte concentração de mídias, o jornal gritava pelo direito à moradia através da luta pelo direito à terra—demonstrando uma compreensão ampla sobre território e moradia.

Formado por moradores que integravam diferentes partidos (PCBPDTPT, entre outros), o jornal não apenas abordava as eleições da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), como também os momentos de abertura política do país. Chegou a ser apreendido na gráfica duas vezes, sob a alegação do governo de que o veículo estaria desvirtuado dos objetivos de um jornal de favelas.

O endereço oficial do jornal era Parada de Lucas, na Zona Norte da cidade, mas as reuniões do jornal rodavam de favela em favela. No editorial da edição nº 2, o caráter comunitário da elaboração do jornal é apresentado. O “menino” que se torna a cara da voz do jornal (em todo editorial publicado) avisa como acontece a construção das pautas.

“Para ficar mais por dentro, todo mês eu estou com o meu pessoal fazendo uma reunião numa favela diferente, aí é muito bacana porque os moradores daquele local passam a colaborar também com a minha gente, principalmente a turma que faz jornal em favela. Assim, já estamos funcionando numa sala em Parada de Lucas, já houve uma reunião de pauta no morro do Galo e outras vão pintar.”

fragmento do editorial Tô nas bocas, publicado em dezembro de 1981
Capa edição nº 4
Capa da edição de número 4

Apesar dos riscos, o Favelão também tocava em assuntos polêmicos e tabus sociais. Do direito da mulher até a violência policial, em forma de conto, prosa ou diretamente denunciando as violências sobre corpos favelados em relatos pessoais em primeira pessoa, Favelão era garantia do direito à voz, à cidadania e à ação política:

“Estou descendo a favela a fim de ir pro Leblon. O mormaço está esquentando e a promessa é de tempo bom. Que vontade de ir à praia, mas eu não sou de transação. Tenho família pra bancar e eu mesmo sou patrão. Esqueci os documentos, mas não posso voltar não. Está em cima do horário e o lucro é muito bom. Nisso sobe a polícia. Mão na cabeça negão. Tira tudo do bolso e vai jogando no chão. Fale pouco e baixo pra não ganhar um bofetão. Aqui quem fala é a gente e não queremos sugestão. E em primeiro lugar deixe eu ver a sua mão. Mas eu moro na favela e estou indo pro Leblon. Pergunte para as pessoas. Obtenha informação. Deixe um garoto ir buscar minha documentação. Você já falou demais cale a boca negão. Soldado, leve-o daqui tranque-o no camburão. Vamos apresentar serviço, pois é nossa obrigação. Subir a favela e descer sem ninguém com a nossa turma não!”

trecho do conto Você é suspeito, por Marcão do Vidigal, publicado em novembro de 1983

De acordo com Célia Fernandes, secretária da Pastoral de Favelas e participante do projeto do jornal como moradora de favela, a linha editorial partia das necessidades do povo da favela. Em depoimento para o livro do NPC, ela comenta: “Era muito fácil com a botina o policial meter o pé e entrar [nas casas]. Por isso, era no jornal que a gente colocava o que sentia, vivia e sofria”.

O jornal traz o registro histórico sobre a violência policial e o genocídio da população negra e de favela há 40 anos. A edição publicada em dezembro de 1981, revela a repressão ao direito da favela de protestar contra a violência policial, mas também mostra como a violência de Estado é uma realidade nas favelas mesmo dentro de um estado democrático:

“Recentemente, Francisco Gilmar de Souza foi estupidamente assassinado por um policial na favela da Rocinha. Este é um caso dramático que vem se juntar a tantos outros: a menina Marcia foi baleada na saída da escola na favela da Mangueira; Amauri da Conceição foi morto por um tiro de escopeta no Vidigal. As comunidades reagem, mas os fatos são arquivados. No caso do Vidigal, o boicote ao corpo do Amauri no Instituto Médico Legal, obrigou [a favela a fazer] caravana em ônibus com faixas e cartazes.”

Capa de dezembro de 1981, edição nº 2
Capa de 1981, edição de número 2

Passadas quatro décadas, muitos outros homens favelados como Gilmar e Amauri foram mortos pela Polícia Militar do Rio de JaneiroMarcus Vinicius no Complexo da Maré; Jonathan Lima, na Favela de Manguinhos; e Amarildo de Souza na Rocinha são alguns dos seus nomes. Também existem outras meninas como Marcia da Mangueira: Maria Eduarda, morta dento da escola na favela de Acari, e Ágatha Félix, assassinada ao lado de sua mãe dentro do transporte público no Complexo do Alemão.

No Rio de Janeiro, há 40 anos a polícia mata todos os dias moradores de favelas. Inclusive, bebês ainda no ventre da mãe, como aconteceu com Kathlen Romeu, no Complexo do Lins, grávida de 13 semanas.

Na ocasião da morte da mãe e do bebê, um levantamento feito a partir dos dados do Instituto Fogo Cruzado mostrou que 681 mulheres foram atingidas por disparos no Grande Rio entre 2017 e junho de 2021. Do total, 15 foram baleadas grávidas, com oito delas morrendo. Dos dez bebês baleados ainda na barriga das suas mães apenas um sobreviveu.

O relatório anual do Instituto Fogo Cruzado em 2021 revelou que mesmo com ADPF 635 em vigor, o Grande Rio teve 4.653 tiroteios/disparos de arma de fogo. Ao todo, 2.098 pessoas foram baleadas (1.084 mortas e 1.014 feridas), sendo 64% (1.342) dos baleados atingidos durante ações/operações policiais nas favelas.

A reportagem Violência Nas Favelas, publicada no Favelão, retrata a realidade ainda atual da violência nos territórios. O texto denuncia a opressão do Estado nas favelas em plena ditadura militar. Um trecho do artigo afirma: “A injustiça social matou recentemente Gilmar. Quantos serão precisos [morrer] para que o povo tenha direito à Justiça?”

O questionamento foi escrito por um morador de forma não identificada pelo jornal. O que mais choca é que a pergunta feita pelo Favelão há 40 anos também foi feita no Twitter pela vereadora Marielle Franco um dia antes de ser assassinada.

Guardião da Memória e Registro dos Fatos Sociais das Favelas

Os jornais impressos de forma geral são os detentores da memória oficial. Registram os marcos sociais de uma época. Esse é mais um dos motivos da importância dos jornais impressos de favelas.

Capa edição de Janeiro de 1985, edição nº 18
Capa de 1985, edição de número 18

O estudo Experiências em Comunicação Popular no Rio de Janeiro Ontem e Hoje: Uma História de Resistência nas Favelas Cariocas do NPC e seu levantamento de dados despertou uma constante preocupação com a memória da comunicação comunitária das favelas. Encontrar antigas edições do jornal Favelão pareceu ser quase tão impossível quanto é manter nos dias atuais a circulação de jornais impressos em favelas.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro guardam um ou três exemplares, por exemplo, do jornal Favelão e de outros jornais de favelas. No caso do jornal Favelão nem a Pastoral das Favelas tinha mais os arquivos disponíveis. Isso porque em 2003, todo o arquivo do jornal foi perdido quando diversas frentes das pastorais da Arquidiocese do Rio foram desarticuladas. Só foi possível acessar os exemplares digitalizados do Favelão pelo Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (CPV). Quase todas as edições do jornal podem ser acessadas por lá.

Com mais de 70.000 páginas de documentos digitalizados, o acervo é uma ação estratégica de preservação da memória da luta dos trabalhadores produzidos nas décadas de 1970, 1980 e 1990 e de jornais comunitários, de movimentos sociais de base das favelas do Rio de Janeiro e do movimento negro.

O jornal teve um papel crucial em denunciar o racismo nos anos de 1980 e demonstrar como a ditadura militar tratava as favelas. Uma das reportagens mais impactantes, segundo Célia, foi publicada em outubro de 1982. No artigo, o jornal trouxe uma foto feita por Luiz Morier, publicada originalmente no Jornal do Brasil em setembro de 1982, com a legenda: “Os homens eram conduzidos ao camburão como escravos”.

A publicação do Jornal do Brasil causou indignação e o Favelão reagiu através da publicação do artigo Em 1888, 1982 Querem o Negro na Cozinha. O título fazia referência à libertação dos escravos no Brasil, em 1888, e debatia a suposta democracia racial no Brasil em 1982, passados 94 anos entre a abolição da escravidão e a foto publicada no Jornal do Brasil. Para Célia, fazer aquela edição foi de uma coragem incrível:

“Não era simples falar de violência policial, de qualquer violência na favela. Tinha que botar a cara. A gente tinha medo sim, mas sonhava com liberdade.” — Célia Fernandes

Favelão ainda está aí, mas diferente

Artigo 'Em 1888, 1982 Querem o Negro na Cozinha'
Artigo “Em 1888, 1982 querem o negro da cozinha.”

Apesar do Favelão seguir em atividade em formato impresso, de acordo com informação do Almanaque da Comunicação Sindical e Popular do Rio de Janeiro, o projeto original com participação ativa e protagonista dos moradores de favelas chegou ao fim na edição nº 26, em 1986.

O motivo foi o fim do apoio financeiro da Fundação Ford, além de mudanças nas diretrizes da linha editorial do jornal. “Não se sabe ao certo o número de tiragens do jornal Favelão“, conforme informação levantada pelo NPC em 2021.

A última edição do Favelão a qual tivemos acesso foi em novembro de 2015. O jornal era publicado em quatro páginas—uma folha de A3 dobrada ao meio—e tinha distribuição extremamente irregular.