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Betto Gomes, estilista da Vila do João, é referência em moda Slow Fashion

Dono de um atelier criativo e sustentável na Vila do João, Betto Gomes e sua equipe costuram um caminho de oportunidades que tornam possível o protagonismo favelado – também – no mundo da moda

Maiara Carvalho*

“Aqui é um atelier de moda com ‘M’ maiúsculo, dentro da Maré”. É o que diz Betto Gomes, estilista da Vila do João que faz questão de trazer seu território como fonte de criatividade na hora de produzir suas roupas. Entre linhas, tesouras e agulhas, Betto e sua equipe, formada inteiramente por mulheres, costuram um caminho de oportunidades que tornam possível o protagonismo favelado – também – no mundo da moda.

Cobiçado por diferentes perfis do mercado, o estilista já estampou capas de revistas, vestiu desfiles da São Paulo Fashion Week e as parcerias com empresas do setor não param de chegar! Recentemente, lançou sua mais nova coleção nomeada “Maré de Encantos”, inspirada pelo desejo de resgatar memórias do Conjunto de Favelas da Maré. Usando tecidos que normalmente são descartados por grandes fábricas têxteis, Betto consegue ressignificar cada pedaço, transformando-as em roupas de grife. É o chamado Slow Fashion, que ele garante ser mais do que um modo de produção, mas é, conjuntamente, seu estilo de vida.

Betto diz que sempre esteve envolvido com a arte. Quando mais novo, fazia aulas de teatro, e lá já observava a importância do figurino no processo criativo para transmitir uma mensagem, ainda que sem nenhuma palavra. Daí nasceu sua paixão.  No entanto, confessa ter balbuciado na hora de escolher qual caminho profissional seguir, justamente por enxergar a dificuldade de pessoas periféricas na hora de se inserirem no mercado de trabalho. Mas, atrevido que era, acreditou no seu sonho e decidiu que faria a faculdade de Designer de Moda. 

Formado há mais de 10 anos,  o estilista participou de diversos concursos da sua área. Em 2011, foi convidado para o reality do programa “Xou da Xuxa”, o que deu ainda mais certeza de que estava fazendo um bom trabalho. Alguns anos depois, foi chamado para o “É de Casa”, programa da Rede Globo, onde pela primeira vez entendeu que havia se tornado uma referência positiva do seu território

Eu nunca tive vergonha de ser de onde sou, mas omiti por muito por muito tempo para não sofrer preconceito. Mas, na chamada do programa que participei eu já era ‘o estilista da Maré’, foi aí que percebi a importância do meu lugar

Quando decidiu que abriria um espaço para produzir suas peças autorais, ela foi pensada inicialmente para ser fora da comunidade. Hoje, Betto não só se orgulha de ter um atelier na Vila do João, como também sonha em abrir sua primeira loja na localidade. Para ele, é importante que os moradores se aproximem  da sua arte e desmistifiquem a ideia de que moda e favela são incompatíveis.

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O que nós fazemos aqui é costura de alto padrão, nenhum atelier do mundo tira o que nós fazemos aqui

Trabalho em coletivo

Com uma equipe formada por quatro mulheres, o estilista salienta que o Slow Fashion designa um olhar reflexivo enquanto produz. Para além da busca sobre a origem do tecido a se usar, é importante o entendimento de que as máquinas não trabalham sozinhas, e ali existem pessoas que precisam viver. “As peças são feitas por mulheres que, além de costureiras, são donas de casa, algumas ainda têm seus filhos para criar. E infelizmente, ainda vivemos numa sociedade que entende que a mulher não tem valor comercial, então quando elas decidem trabalhar, elas acabam fazendo dois trabalhos”. 

Toda produção é pensada em coletivo, e em cada uma existe uma troca de saberes até chegar a um produto final. Ele vem com a ideia, mas são suas meninas quem dão a direção: “Se eu tiver dúvidas eles me orientam, quando posso também ajudo e dou minha opinião”, diz Dona Edileuza, parceira há nove anos das “ideias malucas” de Betto.

O crochê é um forte elemento na construção das roupas, e essa é a especialidade de Lu (attelie_da_lu), que periodicamente realiza trabalhos junto ao amigo, quem conhecera durante um curso de especialização. Já as irmãs Ivonete e Lusineide trabalham no ateliê há um ano, e ressaltam a diferença das suas outras experiências como costureiras: “Trabalhamos em muitas fábricas, mas aqui foi uma novidade. É muito diferente você trabalhar com a criatividade, e não só produzir sem parar […] A gente coloca a roupa no manequim e vai olhando se precisa de um toque a mais. Quando vê o brilho nos olhos dele (Betto), a gente sabe que deu certo.”

Maré Cheia: de Peixes e Encantos

Refletindo sobre sua trajetória, Betto se deu conta que não teve uma referência falando sobre moda dentro da Maré, mas agora pretende preencher parte dessa lacuna e fazer do seu território um espaço de pesquisa, mas também de resgate ancestral. Para isso, iniciou há um ano a coletânea “Maré Cheia”, que posteriormente viraria uma trilogia junto a “Maré de Peixe” e “Maré de Encantos”.
Em seu primeiro ato, as ideias surgiram a partir da estética visual da Maré antiga: água da Baía, palafitas e barracos. Para o segundo, a colônia de pescadores da Marcílio Dias foi a grande inspiração, a fim de evidenciar a cultura local. Neste mês de novembro, Betto finalizou seu terceiro ato em evento realizado no Museu da Maré, a convite da ECO Moda Rio. Partindo da obra renascentista de Botticelli, “Nascimento da Vênus”, a coleção dialoga com a fluidez das águas do mar, por onde emerge a deusa em sua concha.

Assim como as pérolas encontradas nas conchas, Betto revela a reação defensiva dos moradores da Maré, que mesmo em meio a dificuldades, não deixam de brilhar.

(*) Maiara Carvalho é estudante de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e faz parte do projeto de Extensão Conexão UFRJ com o Maré de Notícias.

Casos de Tuberculose aumentaram em todo o Brasil e populações vulneráveis são as mais afetadas

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O conteúdo desta matéria é elaborado pela Comunicação Institucional do Hospital Israelita Albert Einstein com o objetivo de levar boa informação de saúde de qualidade para a população da Maré.

No Brasil, a tuberculose esteve sob controle até 2017, mas nos últimos anos, os índices voltaram a aumentar. Segundo o Ministério da Saúde, o número de mortes de infectados passou de 2.720 mil em 2022 para 80 mil em 2023. O Estado do Rio de Janeiro teve a terceira maior incidência de casos da doença em 2023, com ​​18.210 registros, e a segunda maior taxa de mortalidade do país no mesmo ano. 

Contágio

As bactérias que causam a tuberculose (Mycobacterium tuberculosis, também conhecido como Bacilo de Koch) são espalhadas quando uma pessoa infectada tem tosse ou espirra. Isso porque partículas contaminadas podem ser liberadas no ar.  Daí, ao serem inaladas por outra pessoa, ocorre a infecção.

Membros da família ou colegas de trabalho da pessoa infectada têm maior risco de transmissão da doença. “O contato persistente com pessoa bacilífera aumenta o risco de transmissão. Uma pessoa infectada pode contaminar outras dez”, afirma o médico infectologista Helio Bacha, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Prevenção e diagnóstico

Por ser uma doença altamente infecciosa, a tuberculose representa um grande desafio para os profissionais de saúde. Para combater a proliferação, o primeiro passo é manter a vacinação em dia de todos os recém-nascidos com a BCG intradérmica, recomendada nas primeiras 12 horas de vida após o nascimento do bebê, ainda na maternidade, para prevenir a infecção na infância. Não há vacina para adultos.

Para detectar a doença, é preciso fazer um exame chamado baciloscopia, além da cultura de escarro nos pacientes sintomáticos respiratórios, com tosse há mais de três semanas. “São exames gratuitos disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil inteiro”, explica o infectologista Helio Bacha. 

O médico alerta ainda que: “nem todo mundo que tem o bacilo desenvolve a doença. Dentre as pessoas infectadas, apenas 6% a 8% das pessoas irão evoluir para a doença. Ou seja, 92% das pessoas infectadas não farão doença ativa. No Brasil, um terço da população está infectada pelo bacilo da tuberculose”.

A melhor forma de prevenção é notificar os casos, fazer busca ativa de pacientes com suspeita da doença, além do diagnóstico e tratamento precoces. A boa notícia é que a tuberculose tem cura, já que o tratamento costuma ser altamente eficaz.

“Trabalhamos agora para controlar a tuberculose até 2030 como meta de saúde pública no Brasil e no mundo”, afirma o especialista.

Tratamento

Os pacientes com sintomas manifestos precisam de um tratamento que pode durar até oito meses e deve ser seguido rigorosamente, para garantir que a bactéria não se espalhe. Ele é feito em casa, com medicamentos orais distribuídos gratuitamente pelo SUS. 

O processo é dividido em duas fases principais. Na inicial, são prescritos medicamentos para eliminar as bactérias ativas. Essa etapa dura aproximadamente 2 meses. O período seguinte é de manutenção para prevenir uma nova infecção. Esta fase dura de 4 a 6 meses. O período exige que o paciente tenha monitoramento médico, boa alimentação e evite o consumo de álcool e outras drogas.

O cumprimento rigoroso do tratamento é essencial para a cura, o que representa um desafio para as populações vulneráveis, que muitas vezes apresentam resistência devido ao preconceito ou dificuldade para seguir as orientações médicas. Mas, é muito importante seguir o tratamento à risca.

População mais atingidas

A incidência de tuberculose é maior entre pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica, em todo o mundo. No Brasil, isso inclui os moradores de favelas e periferias, população carcerária, pessoas em situação de rua, indígenas e quilombolas, pessoas que usam drogas, pessoas LGBTQIA+, idosas, com deficiência, trabalhadores informais, migrantes, entre outros. Ou seja, uma parcela grande da população.

Essas pessoas, que já sofrem preconceito pela própria condição, também precisam enfrentar o preconceito da doença e muitas vezes a dificuldade de ter acesso aos serviços de saúde, até mesmo os gratuitos.

O preconceito é frequentemente causado pela falta de conhecimento, e o combate à ele começa pela informação e empatia. A doença não é culpa da pessoa, mas sim uma condição médica que pode afetar qualquer um.

“Em poucos dias após o início do tratamento, o paciente já deixa de ser bacilífero, ou seja, não pode mais transmitir a doença às outras pessoas”, garante  o infectologista Helio Bacha.

Onde procurar ajuda?

O Conjunto de Favelas da Maré conta com seis clínicas da família que acolhe pacientes de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, seja para diagnosticar casos quanto para a pessoa iniciar o tratamento 

Acesse o Mapa da Saúde na Maré no QR code abaixo e tenha mais informações sobre as unidades.

Migrantes africanos preservam a origem e criam novas expressões culturais na Maré

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Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Dentro do bairro Maré, existe um outro bairro: o Bairro dos Angolanos. O local abriga a comunidade migrante no território que, de acordo com o Censo Maré (2019), conta com 278 moradores estrangeiros. A maioria absoluta desses migrantes são angolanos: 195 pessoas.

Segundo o Censo Maré, o número pode ser ainda maior e, dos africanos, ainda se destacam no território, pessoas oriundas de países como Moçambique, Quênia, Congo, Cabo Verde e Gana. Esses moradores são responsáveis por preservar a cultura do continente berço do mundo e por criar novas conexões inspiradas no encontro entre África e Maré.

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional para Migrações (OIM), define hoje o migrante como qualquer pessoa que se mude ou se desloque através de uma fronteira nacional ou internacional, independentemente do estatuto legal da pessoa, do movimento ser voluntário ou involuntário, das causas do movimento ou da duração da estadia. Em 2017, o número de migrantes alcançou os 258 milhões no mundo.

Porta do Brasil

Mario Alexandre, de 42 anos, é presidente do núcleo Maré da União de Angolanos no Rio de Janeiro (Unaerj), e vive no território há 28 anos. “Viemos a busca de um sonho, de uma vida melhor, de estudos, e hoje já tem angolanos aqui que são avós. Eu criei minha família aqui”, conta. 

Mario é turismólogo e, embora tenha visitado outros pontos do Brasil, o local para ele é especial. “A Maré abriu as portas pra gente conhecer a sociedade brasileira. Dizem que a Maré só tem violência, mas não é isso. Fomos recebidos de braços abertos. É um povo hospitaleiro que tem quase a mesma cultura do povo angolano: gosta de festa, tem uma gastronomia forte, um povo sorridente, apesar de tudo”.  

Yannick Emanuel, de 22 anos, conta que a família chegou ao Brasil em 2014, para morar em São Paulo, mas ele veio para a Maré por influência do irmão. 

“Minha mãe sempre frequentou o Brasil e já tinha essa vontade de morar aqui. A maior diferença que senti ao chegar na Maré foi ter uma comunidade angolana fisicamente mais perto. A agitação, o bairro noturno e com bastante movimentação, parece muito com Luanda”, revela. Hoje, ele trabalha como secretário e assistente de produção na Areninha Herbert Vianna.

Similaridades

A influência cultural do continente africano aparece no Brasil com a chegada dos navios que traficavam pessoas escravizadas. Estima-se que mais de 5 milhões de pessoas foram forçadas a atravessar o oceano Atlântico e, a maioria delas, era da região onde hoje estão os países de Angola e da República Democrática do Congo. 

Em diversos aspectos, é possível observar as similaridades entre as culturas, como a gastronomia, a música, a dança e a religião. O samba, ritmo musical brasileiro conhecido mundialmente, têm raízes do semba, ritmo dos povos bantu. Atualmente, o semba resiste e é um dos ritmos mais ouvidos em Angola.

Capoeira Maré

Outro traço africano da cultura africana e “abrasileirado” é a capoeira, trazida pelos povos de Congo-Angola. A Capoeira Angola, conhecida como capoeira mãe, é praticada em vários pontos da Maré. 

O educador angolano Marco Rabi, de 26 anos, conta que teve o primeiro contato com a capoeira ainda em Angola. Hoje, ele dá aulas para crianças em escolas municipais da Maré. A atividade é uma iniciativa da Luta Pela Paz e da Prefeitura do Rio de Janeiro. 

“Dar aulas para crianças da pré-escola é interessante. Elas são muito genuínas, puras e espontâneas. Elas têm maior facilidade de receber, maior predisposição para aprender do que os adultos”, afirma. 

Embora a capoeira seja patrimônio histórico e esteja na identidade brasileira, Marco revela um dos principais impasses. “O pessoal correlaciona a capoeira com a religião e esse é um dos maiores desafios que a gente tem. É um trabalho árduo explicar para os responsáveis, mas é dessa forma que a gente consegue trabalhar.  Porque as crianças querem participar, mas o responsável fala que ‘não, que a capoeira é de religião de matriz africana’ e, por isso, não pode fazer”, explica.

Recomeços

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, em novembro de 1975, estreitando os laços diplomáticos entre as duas ex-colônias portuguesas. No mesmo ano, Angola sofreu com o início da guerra civil que acabou apenas em 2002. A guerra, que gerou milhões de refugiados, foi o principal motivo da migração angolana para o Brasil, na década de 1990.

Mario Alexandre conta que além da guerra, outro fator influenciou o fluxo migratório. “Se por um lado tinha a guerra, por outro também tinham as novelas brasileiras que passavam em Luanda, a capital, e mostravam a beleza das praias do Rio de Janeiro. Era um paraíso, e quem não quer morar no paraíso enquanto seu país está em guerra?”, diz.

Racismo à brasileira

A cultura brasileira era exibida para as famílias angolanas, mas a realidade era diferente das relações retratadas na TV. Mário relembra a violência sofrida pelos migrantes na Maré no fim dos anos 1990, quando o então governador Anthony Garotinho, acusou os angolanos de treinar grupos civis armados com táticas de guerra.

“Viemos fugindo da guerra. Quem vem fragilizado de Angola, a última coisa que quer é se associar a qualquer tipo de violência. Viemos por uma vida melhor, por oportunidades e não para causar mais guerra”, relembra Mário.

Na época, o diretor da Associação dos Angolanos no Rio, Francisco Cruz, caracterizou as falas do governador como ”racistas e preconceituosas”. Em 12 de fevereiro de 2000, a então vice-governadora, Benedita da Silva, se encontrou por sua própria iniciativa, com o cônsul de Angola no Rio de Janeiro, Ismael Diogo da Silva e, pediu desculpas em nome do governo.

Os anos passaram, mas pouca coisa mudou. Em 2022, o congolês Moïse Kabagambe foi brutalmente assassinado em um quiosque na Barra da Tijuca. O jovem foi espancado até a morte e, além dos agressores, foi constatada a presença de pessoas assistindo o crime, sem intervir. Os três acusados estão presos e aguardam a data do julgamento.

Longo caminho

Para Mario Alexandre, há um longo caminho a se percorrer quando se trata de políticas públicas para migrantes negros: “O que é difícil no Brasil é a violência com pessoas negras. O mercado quer aparência, né? Aparência branca. Essa parte do país foi um choque muito grande”, desabafa.

De acordo com dados da Polícia Federal, vivem mais de 42 mil migrantes de origem africana no Brasil, e o número aumenta a cada ano. Entretanto, somente em 2023, foi inaugurado um Centro de Atendimento e Referência para Imigrantes (CRAI), no Rio de Janeiro, uma parceria entre a Prefeitura e a Community Organised Relief Effort (Core). A  organização, criada pelos atores de Hollywood Sean Penn e Ann Lee, atua em países com populações em vulnerabilidade.

O turismólogo Mario Alexandre reforça a importância da atuação das associações em apoio aos migrantes: “O Brasil tem barreiras muito difíceis causadas pelo racismo. Na Unaerj, nós atuamos com diversas parcerias para cursos profissionalizantes, oportunidades de trabalho, jovem aprendiz, matrícula escolar para filhos de angolanos, EJA, ou seja, estamos atuando de frente para melhorar a vida dos angolanos que estão aqui”, conta.

Em 2016, os 193 estados-membros da ONU adotaram a Declaração de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes (A / RES / 71/1), reconhecendo a necessidade de uma abordagem abrangente para a migração. O documento reconhece a contribuição positiva dos migrantes para o desenvolvimento sustentável e inclusivo e compromete-se a proteger a segurança, a dignidade, os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos os migrantes, independentemente de seu estatuto migratório.

Memórias que constroem identidades e resistência

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Valores civilizatórios afro-brasileiros marcam construção do Bairro Maré

Edição #166 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Henrique Silva

Segundo o Censo Maré (2019), dos quase 140 mil habitantes, 61,2% se autodeclaram pretos ou pardos. Ou seja, a Maré é negra. Das comunidades, a Nova Holanda abriga a maior população autodeclarada preta, com 2.558, 18,5 % dos moradores. 

A educadora Azoilda Trindade desenvolveu o conceito de “valores civilizatórios afro-brasileiros”, uma reflexão sobre as contribuições culturais, éticas e filosóficas das populações afrodescendentes para pensar a formação da nossa sociedade. Os valores civilizatórios afro-brasileiros são princípios e práticas culturais que foram transmitidos e preservados pelas populações afrodescendentes no Brasil, originários dos povos africanos e adaptados ao contexto brasileiro. 

Esses valores são fundamentais para a compreensão das contribuições africanas à formação da identidade nacional brasileira, especialmente no campo da cultura, espiritualidade, sociabilidade e resistência. Esses valores também foram importantes para construção do território da Maré e vamos abordar alguns deles a seguir. 

Educação, oralidade e comunidade

A relação entre educação e cultura afro-brasileira é evidenciada em uma matéria de 1984 do jornal O Globo, intitulada: Escola também ensina a ler com atabaques e tamborins. A professora Ivanise Amorim, da Escola Nova Holanda, notou que alunos considerados “especiais” não se adaptavam aos métodos tradicionais de ensino, revelando frustração com a cartilha oficial. 

A professora viu na cultura do samba, especialmente, o exemplo do bloco Mataram meu gato, fundado na mesma favela, uma oportunidade para se aproximar desses alunos. Ivanise decidiu integrar a música ao processo educativo, e essa abordagem permitiu uma expressão mais natural, reforçando a conexão emocional e espiritual dos alunos com o aprendizado. A iniciativa promoveu também a oralidade e a coletividade, por meio do compartilhamento de histórias e práticas culturais, conceito presente na mandala dos valores civilizatórios afro-brasileiros, organizados por Azoilda.

Saúde e resistência

Na edição de abril do Maré de Notícias, destacamos a história de José Carlos, ex-presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda e o primeiro presidente do conselho distrital da CAP 3.1, nos anos 1990. Em entrevista ao jornal O Povo, em novembro de 1999, ele discutiu as atividades planejadas para o 20 de Novembro daquele ano. 

O ativista exemplificou os valores civilizatórios afro-brasileiros de resiliência e resistência ao organizar um evento no Dia da Consciência Negra na quadra da escola de samba Gato de Bonsucesso. José Carlos enfatizou a participação de grupos de música afro-brasileira e levantou a questão da saúde da população negra, mencionando as necessidades específicas dessa comunidade. Sua iniciativa não apenas promoveu a cultura afro-brasileira, mas também integrou os temas cultura e saúde enfatizando a luta por melhores condições de vida.

Corporeidade LGBTQIA+

A corporeidade da pessoa negra é representada de diversas maneiras, destacando a relevância da história do Conjunto de Favelas da Maré e do bairro Maré. Neste contexto, a população LGBTQIA+ se revela como parte fundamental da identidade favelada, e a intersecção com a raça confere ao povo negro um papel significativo na construção do território.

Os shows Noite das Estrelas, promovidos pela comunidade LGBTQIA+, sobretudo,por pessoas transexuais nos anos de 1980 e 1990, são exemplos notáveis de materialização dos valores afro-civilizatórios de resistência, corporalidade e axé. Os eventos eram integrados aos movimentos culturais populares do território, como bailes funks e festas juninas, principalmente nas favelas Nova Holanda e Rubens Vaz.  

Com o tempo, esses eventos ganharam espaço próprio e se expandiram por todo o território da Maré, e além. Graças a um trabalho de pesquisa realizado pelo coletivo Entidade Maré, em 2020, foi possível nos debruçarmos sobre essas histórias. 

Ancestralidade e tempo circular

A ancestralidade é um elemento fundamental na construção da identidade coletiva e pessoal na cultura afro-brasileira, a valorização e o respeito pelos ancestrais são centrais. A ancestralidade estabelece uma conexão com a história, com a origem e valores transmitidos pelos antepassados, influenciando a forma como se vive e se entende o presente.

A narrativa do Entidade Maré destaca como as vivências e lutas de corpos LGBTQIA+ negros no conjunto de favelas, ao longo das décadas, fazem parte de uma linhagem ancestral que transcende laços sanguíneos, sendo transmitida por meio da memória, da arte e da resistência. 

As histórias de figuras como, Derley, que era pai de santo, e outros artistas e lideranças LGBTQIA+ ,conectam-se com as gerações atuais como Dominyck Marcelina e as irmãs Lino. O trabalho honra e expande o legado, reforçando a continuidade e fazendo do tempo, não uma linha contínua, mas um círculo que abraça diferentes gerações. 

Vale ressaltar que, durante o processo de pesquisa para a construção do acervo de matérias jornalísticas sobre o Conjunto de Favelas da Maré, não foi encontrado nenhum registro nos jornais dos anos 1980 e 1990, referente aos shows da Noite das Estrelas

Esse fato reforça o preconceito histórico contra a população trans, preta e favelada, mas também sublinha o papel da memória comunitária. O esforço do coletivo Entidade Maré em resgatar e evidenciar essas histórias é um exemplo importante da resistência e preservação dessa memória.

Avançar em coletivo

Em uma entrevista realizada nos anos 1980 pela associação de moradores da Nova Holanda, durante a luta dos moradores do Duplex (Tijolinho) por novas moradias de alvenaria, Maria Poubel, figura histórica das lutas da Maré, descreveu como a comunidade se uniu para exigir melhores condições de vida.  No trecho transcrito do vídeo do projeto Coopman, dona Maria, conta como foi esse dia:

“Ah, essa luta nossa foi muito demorada, mas valeu a pena a gente lutar por ela, porque nós fomos na Caixa Econômica, e saímos daqui com as crianças. A comunidade, um bocado da comunidade. Teve gente que não tinha nem dinheiro. Porque nós ficamos lá o dia todo, não tinha dinheiro. A gente com fome, às crianças com fome e, o que tinha a mais, comprava um pão e dava pra outra criança que não tinha e pra mãe, que não tinha levado nada pra criança comer. E assim foi uma luta incrível. A gente ainda não conseguiu tudo não, mas ainda vamos conseguir muito mais”.
A ação destaca o valor civilizatório afro-brasileiro da coletividade, evidenciado na solidariedade e na ajuda mútua entre os membros da comunidade. A vida comunitária, a solidariedade e o compartilhamento são valorizados, refletindo uma visão de mundo que prioriza o coletivo em detrimento do individualismo. Ao mesmo tempo, a luta persistente por moradia digna reflete os valores de resiliência e resistência, com a comunidade permanecendo firme diante das adversidades e nutrindo a esperança de conquistar mais no futuro.

Terminamos por aqui esta série de reportagens que celebra as memórias da construção do bairro Maré. Em janeiro deste ano, o Conjunto de Favelas completou 30 anos e, ao longo dos últimos meses, foram abordados temas centrais como a construção do território. Encerrar essa série com foco na racialidade do conjunto, só comprova a espiritualidade, mas também o marco civilizatório afro-brasileiro como uma dimensão integradora da vida.

Por que a ADPF DAS favelas não pode acabar

Por De Olho na Maré

A ADPF 635, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é um importante instrumento jurídico para garantir os direitos previstos na Constituição e tem como principal objetivo a redução da letalidade policial. Por essa razão, ficou conhecida como ADPF das Favelas, porque incide exatamente nos territórios mais vulneráveis que são os mais impactados pelas operações policiais, que deveriam ser exceção, mas viraram rotina.

Além de ter sido construída com participação popular e da sociedade civil organizada, ela trouxe resultados práticos na direção da redução da violência policial e, o mais importante, criou parâmetros para que a atuação do Estado na área da segurança pública seja fiscalizada. Mas para a consolidação dessas mudanças tão fundamentais para garantir o direito à segurança pública é necessário que a ADPF continue a valer e seja cada vez mais aprimorada. É nesse contexto que se dá a importância do julgamento desse tema, que teve sua primeira sessão no dia 13 de novembro.

Além de ter sido construída com participação popular e da sociedade civil organizada, ela trouxe resultados práticos na direção da redução da violência policial e, o mais importante, criou parâmetros para que a atuação do Estado na área da segurança pública seja fiscalizada. No Rio de Janeiro, de 2019 a 2023, houve redução de 52% no número de mortos em decorrência da ação das polícias. 

Mas para a consolidação dessas mudanças tão fundamentais para garantir o direito à segurança pública é necessário que a ADPF continue a valer e seja cada vez mais aprimorada. É nesse contexto que se dá a importância do julgamento desse tema, que teve sua primeira sessão no dia 13 de novembro.

 De 2017 a 2023, o contexto político e acontecimentos pontuais influenciaram as estatísticas e comportamentos das operações policiais. Na tabela abaixo, há alguns desses marcos e hipóteses para essas variações ao longo dos anos. 

AnoVariação do Número de Operações PoliciaisContexto Político e Fatores Relevantes
2017Subiu 41%Olimpíadas e GLO (garantia da lei e da ordem) no governo Luiz Fernando Pezão
2018Caiu 61%Ação Civil Pública (ACP) – Maré
2019Subiu 143%Cenário Político: agenda eleitoral do Governo Wilson Witzel
2020Caiu 64%Pandemia / ADPF das Favelas
2021Subiu 25%Flexibilização das medidas da ADPF 635
2022Subiu 35%Ano Eleitoral: campanha de Cláudio Castro, baseada na segurança pública
2023Subiu 143%Continuidade do paradigma no governo estadual

Esses dados demonstram como diferentes eventos e contextos podem ter impactos variados nas operações policiais na Maré. Por exemplo, a queda significativa em 2018 e 2020 podem estar relacionadas às ações judiciais no campo da segurança pública. A primeira,  a Ação Civil Pública (ACP) da Maré que aconteceu no Tribunal de Justiça do Rio, primeira ação judicial coletiva que versa sobre segurança pública em uma favela brasileira.  Inspirada na ACP da Maré, acreditamos que a ADPF das Favelas e suas restrições no período da COVID-19 impacta na redução dos números em 2020 . 

A análise dos dados revela uma particularidade marcante em 2023: apesar do aumento no número de operações policiais na Maré em relação ao ano anterior, houve uma redução drástica na letalidade dessas operações, como mostramos no texto publicado na semana passada. Esse fenômeno contraditório sugere uma mudança, ainda que mínima, na abordagem da segurança pública na região, indicando uma possível priorização de estratégias do uso progressivo da força.

Essa dinâmica pode estar relacionada à busca da sociedade civil pela abertura de espaços de escuta e trocas sobre como se dá a atuação do Estado na favela.

Por que a ADPF 635 ainda é essencial para a segurança das favelas

A ADPF das Favelas permanece fundamental para a segurança das favelas do Rio de Janeiro e de outras regiões urbanas do Brasil onde a violência policial é a característica principal das intervenções policiais. No contexto de uma democracia ainda jovem e marcada por uma herança autoritária, o Brasil enfrenta o desafio de alinhar as normas legais que regem a atuação policial com práticas profundamente enraizadas de uso excessivo da força por parte do Estado. A ADPF das Favelas busca justamente conter esse tipo de abuso, ao promover maior fiscalização sobre as operações policiais e estabelecer limites para o uso da violência estatal, especialmente nas favelas, onde o impacto é devastador e os direitos humanos, frequentemente, negligenciados.

Além de estabelecer esses limites, a ADPF das Favelas exige a implementação de planos de redução da letalidade policial e o fortalecimento de mecanismos de controle externo das forças de segurança. Essa medida é um marco na tentativa de transformação do modelo de segurança pública, que, historicamente, utiliza operações policiais agressivas como principal estratégia de combate à criminalidade. Essas operações não apenas falham em resolver problemas estruturais de segurança, mas também reforçam o ciclo de violência e insegurança, colocando em risco a vida de milhares de pessoas que vivem em áreas de maior vulnerabilidade.

A ADPF 635 conseguiu diminuir os índices altos de letalidade policial no Rio de Janeiro e na Maré desde 2019, embora o número de operações na Maré tenha crescido muito nos últimos dois anos. Entretanto, ainda há um longo caminho para que ela seja implementada de forma plena, não apenas como diretriz legal, mas também na prática cotidiana das forças de segurança. A mudança de paradigma dentro das polícias se faz necessária para que o respeito aos direitos humanos e a proteção das vidas dos moradores de favelas se tornem prioridade. Contudo, ainda enfrenta barreiras significativas. Por essa razão, essa jornada de transformação não pode ser interrompida agora. A continuidade da ADPF 635 é essencial para impulsionar reformas estruturais no sistema de segurança pública e para reafirmar o compromisso com um modelo que valorize a dignidade e os direitos de todos e todas cidadãos desse país, independente de sua cor e local de moradia.

Iniciativa Negra realiza primeira formação sobre racismo e drogas na Redes da Maré 

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“Não existe recorte racial porque a raça está no centro”

A frase é de Dudu Ribeiro, co-fundador da Iniciativa Negra, organização que promoveu uma formação sobre Justiça Racial e Políticas sobre Drogas, na quinta-feira (14). Os próximos encontros acontecerão até 2025 (presenciais e on-line) e fazem parte do projeto Caminhos Normais/Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD), do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

O objetivo dos encontros é fomentar o diálogo sobre como o racismo impacta diretamente na criação de políticas públicas e na perpetuação da guerra às drogas. A realização é do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, e do Eixo de Direito à Saúde em parceria com a Iniciativa Negra.

Sobre o primeiro encontro

Dudu Ribeiro e Nathália Oliveira, co-fundadores e diretores executivos da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas que, desde 2015, atua no campo dos Direitos Humanos e na Políticas sobre Drogas.

Durante a manhã, os tecedores da Redes da Maré, outras organizações convidadas e parceiros do Espaço Normal foram recebidos com um café da manhã na Areninha Cultural Herbert Vianna. A Casa Preta da Maré, também um dos equipamentos da Redes, foi o local escolhido para a segunda parte do bate-papo.

Os temas discutidos foram: os impactos da guerra às drogas na vida dos moradores de favela e periferia; a história da criminalização das drogas no Brasil e no mundo; racismo estrutural e desigualdade social no Brasil.

“A formação com a Iniciativa Negra nos traz muitas reflexões sobre a relação entre política de drogas e racismo, principalmente por trazer essa discussão para dentro de um território favelado. Nós, enquanto moradores da Maré, precisamos pensar e nos colocarmos enquanto atores principais que sofrem diversas violações de direitos por conta da guerra às drogas. Acredito que, quanto mais a gente falar e dialogar sobre esse assunto, mais a gente vai se empoderar e defender os nossos direitos”, explica Vanda Canuto, coordenadora do Espaço Normal, equipamento do Eixo de Direito à Saúde.