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Profissão artista: desafios nas trajetórias de artistas independentes e LGBTQIAPN+

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De acordo com a pesquisa Marégrafia os artistas do território são, em sua maioria, negros, com menos de 30 anos e sem renda individual ou limitada a menos de dois salários mínimos

Vitor Felix

Segundo a pesquisa feita com 70 artistas do território, menos de 3% desses trabalhadores conseguem manter as despesas familiares somente com o subsídio dos trabalhos artísticos e precisam de outras fontes para complementar a renda. Mais da metade dos entrevistados pela pesquisa se declarou LGBTQIAPN+, o que adiciona mais uma camada aos desafios já apresentados. Se a arte é meio de expressão e de diálogo com o público, muitas pessoas LGBTQIAPN+ enfrentam dificuldades nesses diálogos. Apesar disso, esses artistas constroem seus trabalhos com qualidade, rompem as barreiras do cotidiano e expõem suas criações da maneira que é possível, com olhos abertos para a realidade a sua volta.

Produtores, cantores, musicistas, atores, DJs, dançarinos, escritores, artistas visuais, técnicos de som e luz, há uma grande variedade de profissões no campo das artes em que os trabalhadores sobrevivem por meio de muitas estratégias, com pouca ou nenhuma garantia.
O cenário da pandemia escancarou ainda mais esses obstáculos, e nas favelas a dificuldade é ainda maior, já que muitas festas e manifestações culturais (como os bailes funk) são constantemente criminalizadas e não recebem apoio financeiro ou de logística para acontecer.

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Independência

Profissionais independentes são aqueles que contam apenas com seus próprios recursos ou não estão vinculados a grandes gravadoras, galerias, editoras, empresas ou selos. A independência traz, sem dúvida, a sensação de liberdade criativa, mas pode estar ligada também à insegurança e à incerteza.


O cenário da empregabilidade no Brasil revela a imensa parcela de pessoas sem trabalhos formais, que dedicam sua força de trabalho em serviços e novas modalidades autônomas. Nesse grande universo de brasileiros e brasileiras na luta para manter as contas em dia, os artistas conhecem bem o cenário e não é de hoje. Para os profissionais das artes e trabalhadores da cultura, a formalização do trabalho é um desafio antigo.

Profissão artista

Êlme Peres, de 23 anos, é um dos personagens que desafia este cenário. Cria da Vila dos Pinheiros, ele é ator, cantor, compositor, MC, poeta slammer, percussionista e “o que mais a arte propor”, como ele mesmo se definiu. Começou a trabalhar na arte em projetos do território, como o Percussão Maré e o Entre Lugares, onde se formou em música e teatro. Com o tempo, a paixão pela arte só aumentou, ele formou uma banda com outros artistas musicais mareenses e atuou em diversas peças teatrais até criar o Coletivo Afro Maré, com outros atores e atrizes.

Maré de Notícias(MN): Como você percebe a juventude na Maré que decide trabalhar com arte?
Êlme Peres: Acho muito interessante essa galera que cresceu junto comigo e decidiu fazer da arte seu meio de sobrevivência, mesmo não sendo fácil, ainda mais para nossos corpos favelados. Entendo que é uma forma de expressar tudo o que a gente passou na nossa infância, na adolescência, as injustiças da sociedade e do sistema. A arte é um canal por meio do qual podemos nos expressar. Conheço artistas de várias favelas aqui da Maré e vários têm essa pegada.

MN: Para você, o trabalho de um artista independente é entendido como uma profissão?
ÊP: Eu sou autodidata em todas as áreas artísticas que pratico. Muitas empresas e instituições da sociedade, em geral, não credibilizam a arte de pessoas com formações parecidas com a minha. Para mim, a favela em si é uma forma de academia intelectual. E mesmo pessoas que têm diploma acadêmico são descredibilizadas em vários espaços porque são faveladas.

MN: É possível hoje em dia viver apenas de arte?
ÊP: Na minha vivência, eu preciso recorrer a um plano B para me manter, porque aqui na Maré somos muitos/muitas/muites e, por mais que haja projetos para artistas, eles não abrangem todo mundo. Muitas vezes precisamos abdicar de um trabalho artístico para realizar outro que vai gerar renda. Então é uma luta constante, até chegar um dia que poderemos dizer “eu vivo só da arte”.

MN: Como é ser um artista LGBTQIAPN+ e favelado?
ÊP: Na minha adolescência eu fui me empoderando como uma pessoa preta e, junto disso, me entendi como uma pessoa não-binária. É mais uma camada, não só para a minha arte, mas também da vida. Muitas vezes é necessário falar sobre isso para que eu seja respeitado dentro da minha identidade de gênero. A gente pode festejar, mas sempre que houver oportunidade de falar sobre esse ponto de vista, das pessoas LGBTQIAPN+, é necessário dialogar. Por mais que seja chato explicar isso em 2024, se a gente não explicar e dialogar sobre isso, como as pessoas não vão entender?

MN: Você entende a arte com uma função didática?
ÊP: Sim, eu vejo a arte também como uma forma de educação. Nas minhas poesias transmito uma mensagem, então é uma forma de fazer o público entender muitos assuntos.

MN: O que você projeta para o futuro?
ÊP: Na Maré há muitos projetos para pessoas pretas, para mulheres, para pessoas LGBTQIAPN+, então esses vínculos precisam estar mais próximos, para cada vez crescerem mais. É importante que a gente comece a se ver mais como uma coisa só, independentemente da localização. Quanto mais unidos os coletivos estiverem, isso vai elevar mais a voz de todo mundo. O trabalho de Êlme está disponível em seu perfil no Instagram (@elmeperes) e no perfil do Coletivo Afro Maré (@coletivoafromare). Lá o público pode encontrar suas composições musicais, poesias e performances das quais ele faz parte.

PERFORMANCES – A CORPA EM MOVIMENTO

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Maré de Notícias #156 – janeiro de 2024. Edição especial resultado do projeto Cores Marés, apoiado pelo Fundo Positivo.

Affonso Dalua

A Corpa em Movimento‘ é um manifesto imagético com performances e instalações, aprofundando a ideia da corpa LGBTQIAPN+ como ato político de intervenção e resistência nos territórios de favelas e periferias. A pesquisa é um aprofundamento do meu trabalho de fotoperformance LGBTQIAPN+ favelada e vem sendo costurada desde 2019, com o Projeto Eeer, o Entidade Maré, até chegar à exposição solo PERFORMANCES.

A ideia é de uma corpa maresia, que se movimenta pelo tempo e coloca a corpa em reflexão sobre os diversos atravessamentos da vida LGBTQIAPN+ hoje. A experiência do olhar de uma sociedade cisheteronormativa, encruada de uma visão seca, como deserto, sem o afeto úmido, molhado pelo mangue de uma Maré de 140 mil mareenses.

Mergulhar nas águas da Maré é mergulhar nas memórias da minha avó, Luiza Maria. Nascida em 1930, ela chega acompanhada do meu avô, Cirilo Moreira, no ano de 1965: retirantes nordestinos que aportam em uma Maré ainda sob as águas. 

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São as memórias do meu pai, nascido em 15 de setembro de 1967, dentro da palafita, em que a separação entre ele, ainda molhado da barriga de sua mãe, e as águas do mangue, eram as madeiras que cobriam o chão do barraco! 

Das mesmas águas que deram vida ao meu pai e a milhares de outros mareenses, nasce hoje PERFORMANCES – A CORPA EM MOVIMENTO.

CORPA FESTA – O MOVIMENTO DAS LAJES

‘A Corpa em Movimento’ é um manifesto imagético com performances e instalações, como ato político de intervenção e resistência (Foto: Affonso Dallua)

Na maioria das experiências LGBTQIAPN+, a família é o primeiro espaço a negar a nossa existência, por isso essas corpas se unem, formando outros laços, outras casas, movimentos de afeto e coletividade que direcionam a pesquisa para as águas que molham o todo.

Esse todo chamamos de ‘Clube das Gatinhas‘: uma explosão de liberdade, afeto e muita chacota que faz das águas, ruas, becos e vielas de uma Maré em movimento, um lugar seguro para ser resistência. 

Acredito que uma corpa sozinha é só um copo vazio no meio do deserto, mas uma corpa em coletivo, é uma Maré.

A CORPA SEGUE SE MOVIMENTANDO
A CORPA SEGUE SE MOVIMENTANDO

A CORPA SEGUE SE MOVIMENTANDO

‘Operação verão’ e a segurança pública racista do Rio de Janeiro

Policiais abordam menores de idade desacompanhados e sem identidade, ação abre debate sobre direito à cidade

Lucas Feitoza e Samara Oliveira

“Daqui do morro dá pra ver tão legal o que acontece aí no seu litoral” diz a letra da música ‘Nós vamos invadir sua praia’ da banda Ultraje a Rigor. A melodia lançada em 1985, há quase 39 anos, ainda se mantém atual. Com a chegada do calor o número de pessoas nas praias aumenta. Pessoas de diferentes partes da cidade e da região metropolitana com o mesmo objetivo: garantir seu espaço na areia e aproveitar um dia de sol.

Entretanto, os registros de violência nas praias de Copacabana chamaram a atenção nos noticiários no início do verão. E na tentativa de combater os crimes cometidos próximo as orlas a Secretaria de Ordem Pública (SEOP) realiza a “Operação Verão”. Em nota a pasta informa que além de atuar no ordenamento e fiscalização de ambulantes que trabalham nas praias os agentes também reforçam o patrulhamento nas orlas e apoiam o policiamento “na abordagem de jovens que vão às praias sem a presença de um responsável e que estão sem documentos.”

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Racismo por trás da ‘segurança pública’

A ideia é que com a atuação dos agentes nos ônibus, jovens infratores sejam detidos. Mas como diferenciar? A pesquisa “Elemento Suspeito” (2022) realizada pelo Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC) mostra que nos transportes públicos 71% dos usuários são negros, e embora representem 48% da população carioca, 68% dos entrevistados dizem que já foram abordados a pé ou de andando de moto.

Andar sem documento é crime?

Questionamos a secretaria porquê a operação aborda principalmente menores de idade sem documento de identificação, já que segundo a defensoria pública, andar sem documento não configura crime. Entretanto, até o fechamento desta matéria a Secretaria de Ordem Pública não respondeu.

Segundo a cartilha da campanha Somos da Maré, Temos Direitos, organizada pelo Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré uma pessoa não pode ser detida ou criminalizada pela falta de documento de identificação. A dica dada à pessoa que está sendo abordada é identificar-se de forma clara e se possível digitar o número do CPF ou identidade, que facilita na identificação. Outra recomendação é filmar a ação.

Em 2017 o projeto de lei (PL) 6.6667/16 de autoria do deputado Bacelar (na época filiado ao PTN-BA e hoje filiado ao PV) tentou tornar o porte de documento de identificação obrigatório inclusive para menores de idade. A punição para quem não estivesse portando o documento poderia variar de multa até apreensão de um a seis meses em alguns casos. Porém o PL foi retirado pelo autor.

A juíza Lysia Maria da Maria da Rocha Mesquita, da 1ª Vara da infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, proibiu em dezembro (11/12) a apreensão de menores sem flagrantes. Entretanto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) revogou a proibição na mesma semana (16/12). Notícia que foi comemorada pelo governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, que chama a Operação Verão de “abordagem preventiva”.

Para a socióloga e cientista social Raquel Machado, ações como essa celebradas e implementadas pelo governo do Estado caracterizam um modelo de segurança pública racista e repressor para pobres e negros. 

“Isso pode ser visto nas rotineiras e violentas operações policiais, na má utilização das tecnologias na segurança, nas abordagens policiais seletivas, e assim por diante. Durante os verões, os governos estadual e municipal têm se orgulhado das ações da ‘Operação Verão’. Esta é mais uma forma de cercear a circulação dos moradores das periferias, ferindo sua cidadania e o direito à cidade”, afirma Raquel que também é coordenadora de pesquisa do projeto “Drogas: quanto custa proibir” do Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC).

Ao analisar a influência direta da Operação Verão sobre o direito à cidade para indivíduos negros e periféricos, Raquel destaca que essa medida vem de um padrão histórico de marginalização de pessoas negras de baixa renda nos centros urbanos. Agravando a situação, essa prática recebe respaldo legal, permitindo sua repetição todos os anos.

“É o racismo que faz com que todas nós, pessoas negras, sejamos alvo da suspeição do Estado”, enfatiza.

Como mudar?

O uso de câmeras corporais em agentes de segurança em todo o Brasil tem garantido redução de violações e violências. Raquel também vê com uma das soluções para mitigar os impactos do racismo nessas ações, mas ressalta “é necessário que haja a garantia do uso correto pelos agentes e a fiscalização das imagens por parte das autoridades.”

Maré é bairro: 30 anos de lutas e mobilizações

Lei Municipal que instituiu o conjunto de favelas da Maré em bairro completa 30 anos neste 19 de janeiro

Por Henrique Silva, coordenador do Núcleo de Memórias e Identidades da Maré (NUMIM), projeto da Redes da Maré

Maré é bairro: há 30 anos, um capítulo importante na história da Maré foi escrito. Com o decreto da LEI Nº 2119, de 19 de janeiro de 1994, o Conjunto de Favelas da Maré tornou-se formalmente um bairro da cidade do Rio de Janeiro: o bairro Maré. A partir disto podemos pensar coletivamente sobre: O que essa mudança de status significou para os moradores da Maré?

Com mais de 80 anos de histórias, o Conjunto de Favelas da Maré tem passado, desde os primeiros núcleos de habitação entre a Praia de Inhaúma e o Morro do Timbau até a atual formação territorial, por um processo contínuo de resistência e luta por direitos dos seus moradores, buscando a permanência  e a melhoria da qualidade de vida.

A fim de refletir sobre essa e outras questões, ao longo de 2024 o Jornal Maré de Notícias irá produzir uma série de reportagens disponíveis aqui no formato digital, mas também no nosso impresso, sobre os 30 anos de formalização deste território como bairro. Para isso, recorreremos ao passado a fim de compreender o impacto dessa lei no conjunto de favelas nessas últimas três décadas.

Ao longo das matérias, serão abordados temas como raça, gênero, educação, cultura, saúde, urbanização, segurança pública, entre outros, com o intuito de enfatizar a luta política em disputa por um lugar na cidade. Acompanhe!

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As mulheres são as principais protagonistas das mobilizações desse território. | Foto: arquivo Redes da Maré

O contexto político anterior à Lei

No fim dos anos 70 o Brasil iniciava um processo de reabertura política que culminou no fim da ditadura militar (1964-1985). Esse longo período foi marcado pela ausência da participação popular nas decisões políticas, tais como em processos eleitorais, tendo sido realizada somente em 1989 a primeira eleição direta para presidente. No entanto, é importante lembrar que é neste momento de redemocratização que surgem algumas iniciativas de políticas públicas com foco em favelas1, contribuindo assim,  para a inserção desses espaços em programas governamentais futuros.

Na Prefeitura do Rio, por exemplo, foi criada em 1979 a Secretaria de Desenvolvimento Social, que era chamada muitas vezes de  “prefeitura dos favelados” pelo fato de ser a secretaria com maior entrada nas favelas por conta das políticas públicas implementadas nas áreas de saneamento, educação e saúde em território de favelas comportando projetos como o de Mutirão2, que realizava desde obras de saneamento a construção de creches comunitárias nas favelas e na área da Saúde a construção de consultórios odontológicos.

No governo do Estado, na primeira gestão de Leonel Brizola (1983-1987), também houveram alguns programas com foco na favela, como os projetos de saneamento promovidos pelo PROFACE3 da CEDAE e “Cada Família um Lote”, voltado principalmente para processos de regularização fundiária. 

A promulgação da Nova Constituição em 1988 no Congresso Nacional, corroborou com a aprovação constitucional da lei que reduzia de 20 para 5 anos o tempo necessário para se obter o direito de posse dos terrenos com até 250 metros quadrados utilizados para moradia, o que em alguma medida respaldou a maioria da população que vivia nas favelas no Rio de Janeiro naquele momento, tendo em vista que esta lei assegurava a posse do terreno especificamente para cidadãos que não tinha onde morar.

Neste período, houve ainda a inclusão da LEI COMPLEMENTAR Nº 16, DE 04 DE JUNHO DE 1992, que trazia no “Art. 44 – III – não remoção das favelas; IV – inserção das favelas e loteamentos irregulares no planejamento da Cidade com vista à sua transformação em bairros ou integração com os bairros em que se situam”,  no plano diretor da cidade do Rio de Janeiro de 1992.

Por fim, em 1993, com o início da gestão de César Maia na prefeitura do Rio, foi  criado o GEAP – Grupo Executivo de Assentamentos Populares do Regularização de Loteamentos, propondo seis programas, a saber:  Regularização Fundiária e Titulação; Novas Alternativas; Morar Carioca; Morar Sem Risco e Favela-Bairro. Importante destacar que a experiência adquirida das equipes de trabalho, que atuaram dentro das favelas nos primeiros programas supracitados durante o período de reabertura política, foi crucial para criação desses novos programas com o foco em favela, resultando posteriormente na criação da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Secretaria Municipal de Habitação no ano de 1994.

Contexto no conjunto de favelas da Maré anterior à lei

Em 1979, o Governo Federal, por meio do Projeto RIO, anunciou que “acabaria” com as 6 favelas na Maré: Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda, Parque Maré, Baixa do Sapateiro e Morro do Timbau, gerando medo e incerteza entre os moradores sobre uma possível remoção. Essa situação levou à rápida organização das associações de moradores das 6 favelas e à criação da CODEFAM para defender os direitos da comunidade.

Nos primeiros encontros da CODEFAM com o governo, representado por Mário Andreazza, o ministro do interior que liderava o Projeto Rio, ficou esclarecido que apenas as famílias em situação mais precária, vivendo nas palafitas à beira da Baía de Guanabara, seriam transferidas para os novos conjuntos habitacionais do projeto: Vila do João (1982), Conjunto Esperança (1982), Vila do Pinheiro (1983) e Conjunto Pinheiro (1986). Para as áreas semi-urbanizadas, a promessa era de urbanização e saneamento total.

A derrota do ministro Mário Andreazza nas prévias de seu partido para ser candidato à presidência em 1985 impactou na continuidade das obras de urbanização e saneamento, resultando em paralisações e falta de verba. No entanto, a luta pela urbanização foi somada à atuação da Associação de Moradores da Favela Nova Holanda, que teve a primeira eleição direta na favela com a vitória da Chapa Rosa, contribuindo para pressionar os governos a continuarem as obras. Durante os oito meses de paralisação das obras às associações do conjunto de favelas da Maré liderados pela Associação de Nova Holanda, elaboraram um relatório anexando fotos e um abaixo-assinado contendo mais de 11 mil assinaturas exigindo a liberação de verbas para a continuidade das obras, que foram concluídas apenas no final de 1991.

Atualmente o conjunto de Favelas da Maré conta com 16 favelas, mas no ano de 1994, no momento da criação do Bairro Maré haviam 13 favelas no território, porque os conjuntos de Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (1997) são posteriores a lei de 1994 da criação do Bairro.

A Favela de Marcílio Dias se soma politicamente ao Conjunto de Favelas da Maré, no entanto, é importante ressaltar que formalmente, este território não faz parte da área delimitada no decreto que foi usado como base para a lei de 1994.  O DECRETO Nº 7980 DE 12 DE AGOSTO DE 1988 da criação da XXX RA da Maré afirma que, 

Delimita a XXX Região Administrativa – Maré “Da Baía de Guanabara, na Foz do Canal do Cunha, seguindo pelo leito deste até a Avenida Brasil, por esta (incluído apenas o lado par, excluindo o Viaduto de Manguinhos) até a Rua Pirangi; daí, pelo prolongamento do alinhamento desta, até a Baía de Guanabara e, pela orla, ao ponto de partida.” 

Com essas informações sobre as mudanças que ocorreram no território, especialmente na área de habitação, ao considerarmos o número 139.073 de habitantes (Censo Maré, 2013), em comparação com os 71.579 registrados em 1988 (Censo da Universidade Federal do Rio de Janeiro), percebemos que a população dobrou em três décadas. Apesar do aumento populacional, ao longo desses 30 anos, não houveram investimentos governamentais significativos em renovação e atualização da infraestrutura capaz de acompanhar esse crescimento demográfico, resultando na óbvia defasagem e insuficiência nos serviços de água e esgoto, por exemplo.

O que faz da Maré um bairro?

Ao falarmos de um bairro, palavras como formalidade e cidadania vêm à mente, uma vez que este reconhecimento legal traz consigo (ainda que teoricamente) estratégias e soluções para a garantia de direitos. No entanto, por que esse pensamento não é imediatamente associado às favelas?

Uma das razões se dá pelo fato de que historicamente os territórios de favelas são considerados espaços informais dentro da cidade, como é o caso da Maré. Tendo em vista que essa construção em torno da ideia de informalidade, ao longo dos anos, consolidou o estigma em torno da palavra “favela” como lugar de violência e pobreza que persiste até os dias de hoje no imaginário das pessoas, inclusive nos próprios moradores destes territórios devido aos processo estruturais e sistêmicos que  impõem uma normalização para as violações de direitos.

Segundo os dados do Censo Maré,  62,1% dos moradores do conjunto de favelas da Maré se autodeclaram negros e mais da metade da populacão é composta por mulheres (51,0%). Considerando que as práticas culturais, ancestrais e de produção de conhecimento local são capazes de fornecer insumos para a compreensão da realidade deste território, é fundamental estabelecer diálogos sob esses pontos de partida para a construção de políticas públicas que estejam conectadas a essas vivências, possibilitando uma maior efetividade.

Uma recente pesquisa realizada pela UERJ sobre o cenário político nacional, aponta que pessoas negras ocupam 10,5% dos cargos de Secretários estaduais e 29,7% de Mulheres (de todas as raças). No caso da câmara dos vereadores do Rio, na última eleição (2020), considerando o total de 51 cadeiras, apenas 11 são ocupadas por pessoas autodeclaradas negras e destas, apenas 5 são mulheres.

A falta de diversidade nos cargos de gestão pública explicita a ausência de representatividade identitária e social que é fundamental para formulação de Políticas Públicas que sejam condizentes e fundamentadas em experiências concretas de pessoas que vivem a realidade dos territórios de favela.

Portanto, para além da implementação de uma Política Pública é preciso manutenção, acompanhamento, avaliação e representação socialmente engajada dentro dos espaços de poder e tomada de decisão. Como destacado acima, por muitos anos, através da organização, conhecimento e luta dos próprios moradores, muitas vezes traduzidos em iniciativas sociais locais, possibilitaram a concretização de inúmeras políticas públicas em benefício do território, como as lutas por uma moradia digna, acesso a água e luz, que remontam o histórico de muitas favelas da Maré, chegando até alguns exemplos recentes dessa incidência política popular, como a campanha Vacina Maré em 2021 durante a pandemia de COVID-19..

Por fim, ter o status de bairro tem um significado não somente simbólico, mas também prático dentro da estrutura social e na efetivação das políticas públicas, então nesse caso a Maré é um bairro que precisa ser encarado como tal já que o Conjunto de Favelas da Maré é parte integrante da cidade.

Foto: Douglas Lopes
  1.  Até o começo dos anos 80 o governo brasileiro tinha como uma das principais políticas de urbanização da cidade a remoção compulsória de favelas.
    ↩︎
  2.  O Projeto Mutirão, foi criado com atribuições explícitas de intervir na realização de obras de melhoramentos em favelas, colocando a urbanização na agenda do município, remunerando trabalhadores locais ainda que de forma embrionária. 
    ↩︎
  3.  PROFACE – Programa de Favelas da CEDAE/RJ, cujo objetivo era implantar os serviços de saneamento básico nas comunidades faveladas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
    ↩︎

Racismo ambiental: a urgência de falar sobre e executar políticas de combate

Flavinha Cândido*

Nos últimos dias, a polêmica em torno do conceito de racismo ambiental assumiu uma nova complexidade no cenário carioca, agravada pelas intensas chuvas que provocaram alagamentos em diversos bairros e municípios do estado. Nesse contexto, a atuação da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, se tornou crucial ao trazer à tona a discussão por meio da divulgação de um vídeo nas redes sociais. Na gravação, Anielle não apenas evidenciou as marcas palpáveis dos alagamentos nas comunidades mais afetadas, mas também lançou uma reflexão crucial ao questionar a predominância racial nesses locais.

A ministra não está inventando o termo racismo ambiental. Ao contrário, ela está destacando a existência de uma realidade muitas vezes negligenciada. Ao levantar a questão da cor predominante nas áreas impactadas, Anielle Franco busca chamar a atenção para a interseção entre fatores raciais e ambientais, reconhecendo a existência de disparidades sistêmicas que afetam desproporcionalmente comunidades socialmente marginalizadas. No entanto, sua iniciativa não foi recebida unanimemente, encontrando resistência por parte daqueles que, de maneira equivocada, contestam a existência do racismo ambiental.

Essa reação contraditória destaca a urgência de aprofundar o entendimento sobre o racismo ambiental, mostrando que, longe de ser uma invenção recente, é uma realidade profundamente enraizada que remonta às décadas de 1970 nos Estados Unidos. Anielle Franco não apenas destaca a problemática, mas também enfrenta o desafio de educar e sensibilizar uma sociedade que muitas vezes nega ou minimiza a existência dessas disparidades. Assim, sua atuação se torna um catalisador para uma discussão mais ampla e informada sobre as interseções entre raça e meio  ambiente, que são fundamentais para avanços significativos em políticas públicas e conscientização social.

A utilização do termo racismo ambiental remonta ao trágico episódio da contaminação química em Love Canal, Niagara, Nova York, em 1978, quando moradores de um conjunto habitacional descobriram que suas residências foram construídas próximo a um canal aterrado com resíduos químicos industriais e bélicos. Esse evento catastrófico nos Estados Unidos despertou a atenção para a interseção entre questões ambientais e raciais, revelando a disparidade na distribuição de riscos e recursos. No Brasil, os primeiros casos de justiça e racismo ambiental começaram a ser denunciados no final da década de 1980, desmistificando a ideia de uma invenção recente e evidenciando uma realidade que ganhou maior visibilidade atualmente, em parte, devido à longa omissão das questões de racismo no país.

No Brasil, os primeiros discursos sobre justiça climática e racismo ambiental começaram a ser pronunciados no final da década de 1980. Ao contrário do que se pensa, a utilização do termo racismo ambiental não é uma construção recente, mas sim uma realidade profundamente enraizada que remonta a décadas passadas, evidenciando a persistência histórica desta problemática, contudo, trata-se de uma realidade que ganhou proeminência no século XXI, em razão, em parte, da prolongada negligência em relação às questões de racismo no país, destacando a relevância atual do fenômeno.

Fundamental é ressaltar o mito da democracia racial, uma concepção forjada por “intelectuais” brasileiros nos séculos XIX e XX, que Abdias Nascimento e outros pensadores questionam de forma incisiva. Abdias Nascimento, em particular, empenhou-se ao longo de sua vida na desmistificação do racismo velado no país, constituindo-se como uma figura central na denúncia das raízes profundas desse problema. Seu ativismo não apenas desafiou a narrativa ilusória de harmonia racial, mas também serviu como um alicerce para evidenciar a urgência imperativa de políticas públicas que abordem as áreas vulneráveis e combatam as estruturas discriminatórias enraizadas na sociedade

A doutora em Ciências Sociais, Lays Helena Paes e Silva, ressalta que o racismo ambiental está intrinsecamente ligado à distribuição injusta de recursos e problemas ambientais. Ela questiona:

“Pergunte a si mesmo, onde vive a maioria da população negra? Quais são os bairros mais afetados pela poluição, contaminação e falta de acesso à energia? Essa injustiça distributiva tem uma forte dimensão racial, histórica e frequentemente negada”

Ao questionarmos onde reside a maioria da população negra e quais bairros são mais afetados pela poluição, contaminação e falta de acesso à energia, percebemos uma injustiça distributiva profundamente enraizada, muitas vezes negada e historicamente marcada por uma dimensão racial e classista.

O racismo ambiental é uma realidade muitas vezes negligenciada, mas que tem implicações profundas na vida de regiões tidas como “marginalizadas”. Para promover mudanças significativas nessas áreas, é essencial vocalizar o termo racismo ambiental.

Entender o racismo ambiental como uma realidade que vai além de meros desastres naturais é crucial. Ele é evidenciado nas regiões mais desfavorecidas do Brasil, como favelas, periferias, quilombos e comunidades ribeirinhas, locais habitados majoritariamente por pessoas de baixa renda, pretas e até abaixo da linha da pobreza, que enfrentam de maneira mais intensa as consequências dos eventos climáticos extremos, pois não há prevenção feita pelo poder público.

A invisibilidade do racismo ambiental perpetua a desigualdade, impedindo o reconhecimento e a compreensão generalizada dessa questão crucial. Dar visibilidade ao termo é o primeiro passo para mobilizar a opinião pública, sensibilizar autoridades e criar um ambiente propício para a implementação de medidas eficazes.

Visibilizar e conscientizar a sociedade sobre o racismo ambiental é o primeiro movimento para a criação de políticas públicas transformadoras. Ao conscientizar a sociedade e envolver as pessoas que são cotidianamente afetadas, pode-se cobrar de maneira mais decisiva o lapso de interesse dos governantes em promover um ambiente mais justo e sustentável.

A falta de investimento em infraestrutura nessas regiões torna-se uma das principais falhas nas políticas públicas, perpetuando o ciclo do racismo ambiental. A ausência de prevenção, saneamento básico adequado e estratégias de resposta a desastres contribui para a vulnerabilidade dessas populações que não têm nenhum privilégio.

No âmbito do poder executivo, políticas públicas simples, como infraestrutura básica, habitação adequada, planejamento urbano igualitário, educação ambiental e conscientização, resposta a desastres e empoderamento comunitário, são fundamentais. Essas políticas corrigirem as falhas existentes, exigindo um compromisso renovado com políticas públicas mais justas, distribuição equitativa de recursos e investimentos significativos em infraestrutura e serviços para todas as regiões.

É fundamental construir um futuro com ato preventivo em relação às sociedades mais atingidas. Isso é categórico para quebrar o ciclo do racismo ambiental. Isso exige não apenas conscientização, mas a implementação urgente de políticas públicas que atendam às necessidades específicas dessas áreas, fazendo justiça às populações muitas vezes esquecidas pelo poder público e que sempre sofrem as grandes consequências da falta de investimento.

*Flávia Cândido é Assessora Parlamentar, Professora de Língua Portuguesa e Literaturas no Pré vestibular Comunitário Estudando Pra Vencer e formada em Letramento Racial no Instituto Ayó

Férias? É na Maré! Confira atividades para as crianças durante férias escolares

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As colônias de férias espalhadas pela Maré oferecem diversas opções para proporcionar experiências enriquecedoras aos pequenos durante o recesso escolar

Reportagem adaptada de Gabriela Anastácia originalmente publicada no Jornal Meia Hora na coluna do PerifaConnection

Quem é mãe, pai e cuidador de uma criança sabe como é desafiante o período das férias escolares. O que fazer para entreter as crias nesse período? Haja criatividade! Diante dessa árdua tarefa, a busca por atividades torna-se essencial para manter a energia e a curiosidade das crianças em alta. Atividades gratuitas espalhadas pela Maré não apenas proporcionam novas experiências, mas também abrem portas para um universo culturalmente diversificado, contribuindo para um crescimento dos pequenos exploradores.

Sair do convencional se revela um tesouro de descobertas para as famílias. A quebra da rotina tradicional permite não apenas que as crianças se divirtam de maneira única, mas também as incentiva a desenvolver habilidades e interesses diversos. Além disso, as famílias têm a chance de estreitar laços com a comunidade, criando vínculos que vão além do período de férias.

Neste cenário, as colônias de férias espalhadas pelo Conjunto de Favelas da Maré oferecem diversas opções para proporcionar experiências enriquecedoras aos pequenos durante o recesso escolar. A seguir, apresentaremos algumas alternativas emocionantes para preencher o tempo ocioso das crianças, garantindo a diversão e muitas descobertas.

Areninha Cultural da Maré – R. Evanildo Alves, s/nº – Maré

Programação de 22/01 a 26/06, com contação de histórias, oficina de trança, piscinaço e muito mais. Confira a programação completa aqui. As inscrições vão do dia 18 ao dia 20/01, de 13h às 17h, na Areninha. 

Vila Olímpica Seu Amaro – R. Tancredo Neves, s/n, Bonsucesso.

Programação de 16 a 26/01. Atividades a serem divulgadas aqui. Inscrições na própria Vila Olímpica. Atividades são voltadas para crianças acima de 6 anos. É necessário levar um documento de identificação da criança e um telefone de contato para garantir a vaga.

Arena Carioca Dicró – Parque Ari Barroso – Entrada pela, R. Flora Lôbo, s/n – Penha Circular

Programação de 23/01 a 02/02 com apresentação circense, sessão de cinema, brincadeiras, jogos, TikTok. As inscrições serão feitas diretamente na recepção da Arena Dicró do dia 16/01 ao 21/01.

Galpão Bela Maré – Rua Bitencourt Sampaio, nº 169, Entre as passarelas 9 e 10 da Avenida Brasil

Programação até dia 27/01 com oficinas de musicalidades e slammers, banho de piscina, leitura e contação de histórias. Confira a programação completa aqui.