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‘Ialodês’ dos nossos tempos homenageadas em festival

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Uma das discussões mais relevantes levantadas durante o evento foi sobre o não cumprimento da lei que determina o ensino das culturas afro e indigena nas escolas

Por Daniele Figueiredo* e Lucas Feitoza*, em 05/10/2022 às 10h38

Ialodê é um termo da língua Iorubá utilizado pelas mulheres que detém a posição de representar outras nos mais variados assuntos. A expressão, resgatada pela diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, emergiu no Festival Ecoar realizado no dia 24 de setembro no Museu de Arte do Rio (MAR). Ali, dezenas de pessoas participaram do debate sobre os 30 anos de fundação de Criola, organização não governamental (ONG) que luta pela defesa e promoção dos direitos das mulheres negras.

Entre as participantes do debate estavam a assistente social Adriana Santos, Beth Campos e Patrícia Evangelista, líderes comunitárias e representantes de Manguinhos. Mônica Sacramento, integrante da Criola, fez a intermediação.

O resgate do termo, faz referência às diversas maneiras de organização ancestral que tiveram relevância nas ações de resistência à escravização. Mais tarde foi sendo apropriado para a reafirmação da incidência das mulheres negras na política e nos diferentes espaços públicos.

Ausência do ensino afro

Mesa de debate fez parte do evento Ecoar! | Foto: Lucas Feitoza

Um dos problemas apontados no debate foi a não adoção da lei 11.645/2008, que garante o ensino das culturas afro e indigena nas escolas. Adriana Santos, admitiu que ainda não há uma aplicação efetiva da lei na educação básica, mas que todos devem buscar meios para que seja cumprida.

Mônica falou que homenagear o trabalho de Criola e debater as formas de mobilização realizadas pelas Ialodês dos nossos tempos são ações importantes para despertar o interesse das novas gerações. Adriana, emocionada por ser reconhecida como uma Ialodê, disse que o termo traz a responsabilidade de deixar um legado para as novas gerações: “está na hora de passar o bastão, são mais de quinze anos lutando pelos direitos da mulher negra” concluiu.

*Comunicadores da primeira turma do Laboratório de Jornalismo Maré de Notícias

Desigualdade no saneamento e falta de investimentos penalizam as favelas

Esgoto a céu aberto e problemas com o tratamento de água são comuns na Maré, assim como em outras regiões periféricas do Brasil

Por Daniela Lopes, Giulia Costa e Júlia Silva, em 04/10/2022 às 9h

No Dia Mundial da Água (22 de março) deste ano, o Instituto Trata Brasil (ITB) divulgou um relatório acerca do saneamento básico no país. De acordo com o documento, mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água potável e quase 100 milhões não têm coleta e tratamento de esgoto. O ITB é uma organização formada por empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do país. Além disso, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) indicam que cerca de 4 milhões de pessoas não contam com banheiros. 

No Rio de Janeiro, o índice de atendimento urbano com redes de esgoto em 2021 foi de 68,3%, o que revela uma insuficiência no sistema de saneamento básico do estado. Os serviços de assistência sanitária estão concentrados nos bairros privilegiados da capital, dessa forma, os moradores das favelas, onde, em sua maioria, o esgoto a céu aberto ainda é uma realidade, são impedidos de ter acesso a um saneamento básico de qualidade. 

Segundo Alaine dos Santos, de 40 anos, moradora da Vila dos Pinheiros, os problemas com o esgoto podem ser considerados crônicos. São recorrentes, segundo ela, os episódios de alagamentos e de esgoto a céu aberto em diversas localidades. Funcionária da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e formada em Administração pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Alaine sabe muito bem quais sãos as consequências de situações como essa. Ela afirma que medidas paliativas são tomadas exclusivamente por moradores e não por aqueles que, de fato, são responsáveis pela resolução desses problemas. “Eu não vejo nenhuma melhoria por parte da Prefeitura ou do Governo do Estado de forma efetiva. São os moradores que acabam tentando resolver pontualmente e depois de um tempo o esgoto está aberto de novo”, diz.

Desafio para a saúde coletiva

A falta do tratamento sanitário é uma ameaça à saúde pública. E a desigualdade penaliza as áreas mais pobres. O relatório “Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras” elaborado pelo coletivo Movimentos, organização de jovens de diferentes favelas, mostra como a falta de acesso a direitos básicos acentuou os efeitos da pandemia de covid-19 nas comunidades do Rio. Segundo o documento, as favelas da cidade sofrem com insegurança hídrica e sanitária que, juntas, foram responsáveis pela alta taxa de contaminação pelo coronavírus. Além disso, a falta de tratamento de esgoto e de acesso à água tratada também contribuem para a propagação de outras doenças, como dengue, zika, febre amarela e chikungunya. 

Por que as favelas não têm saneamento básico de qualidade?

A precariedade do sistema de saneamento básico nas favelas brasileiras tem como uma de suas raízes a falta de investimentos em redes de esgoto até os anos 1990. Foi somente em 1992, com a criação do Programa de Saneamento para Populações em Áreas de Baixa Renda (Prosanear); e o Programa de Saneamento para Núcleos Urbanos (Pronurb), dois programas do governo federal; que se começou a expandir os sistemas de tratamento de esgoto e abastecimento de água nas favelas. 

Um outro obstáculo para o estabelecimento de um sistema sanitário de qualidade nessas regiões é a forma de ocupação nas favelas. Vielas estreitas, pavimentação irregular e o exponencial aumento da população dificultam a implementação de redes de esgoto e água.

Descaso

Com 140 mil habitantes distribuídos em 16 favelas, a Maré é maior que a maioria dos municípios do país. Mas apesar de diversas promessas ao longo dos anos, poucas medidas efetivas foram tomadas. Alaine Santos afirma sentir na pele diariamente as consequências desse descaso. Ela relata que a maioria das caçambas de lixo foram concentradas na porta de sua casa, no final da rua onde mora. Com isso, passou a conviver com o lixo, ratos e pombos ao redor da própria residência.

“Embora os garis da Comlurb venham limpar todos os dias, a quantidade de lixo é tão grande que fica uma montanha nas caçambas, e ainda tem lixo até a metade da rua. A concentração de caçambas aqui prejudicou muito os moradores, pois é uma quantidade de ratos absurda, muito pombo e muita sujeira. É muito desconfortável e desesperador”, expõe. 

Outra questão que faz parte da rotina dos moradores é a falta de água. A chegada do verão torna-se um problema na vida de Alaine dos Santos, pois a ineficiência do abastecimento a obriga a pegar água nos vizinhos ou acordar de madrugada para ligar a bomba, por exemplo, “Quando chega o verão é desesperador, ter que acordar uma, duas, três da manhã para conseguir ligar a bomba e muitas vezes, mesmo assim, não conseguimos encher a caixa porque não tem água na rua”, relatou.

Esses problemas afetam diretamente a qualidade de vida na Maré e outras regiões que sofrem com os mesmos problemas. Como resultado da marginalização, estigmatização e do racismo, essas comunidades convivem com questões inimagináveis em áreas nobres da cidade. Nesse sentido, Alaine comenta: “sabemos que existem outras áreas no Rio que às vezes tem uma insegurança sanitária ainda pior do que na Maré, mas se compararmos com os bairros mais estruturados, vemos que a Maré não é colocada como igual, é sempre marginalizada. A gente ouve tanto falar que a Maré é um bairro, mas vemos que muito do que tem nos bairros hoje, a Maré não tem”.

Lixo e outros problemas

A Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) é a responsável por recolher o lixo no Rio. Embora o trabalho pareça funcionar bem em alguns locais, a situação nas favelas é bem diferente. Os moradores da Maré reclamam do serviço de forma recorrente. Na Carta de Saneamento da Maré, de 2020, elaborada por moradores, ativistas ambientais e especialistas, o problema com a coleta de lixo foi um dos tópicos em destaque.

Em matéria publicada no ano passado no Maré de Notícias, Marcos Willian, gerente da Comlurb na Maré explicou que a região era atendida como uma subdivisão da estação de Ramos e que o problema era o número insuficiente de tratores. Este ano, a assessoria da Comlurb respondeu que mantém uma gerência dentro da Maré exclusivamente para o atendimento das 16 comunidades. E que recolhe diariamente entre 230 e 250 toneladas. 

A coleta de resíduos domiciliares e do lixo público é realizada de segunda a sábado em dois turnos. E nos domingos em regime de plantão para atender a demanda de grandes concentrações de pessoas, como os bailes funk, etc. Segundo a empresa, a região é atendida por uma equipe composta por 76 garis, que trabalha com apoio de sete caminhões compactadores e dois satélites – veículos mais estreitos que têm mais facilidade para acessar becos e vielas, além de quatro mini tratores.

Em relação aos contêineres de lixo que transbordam frequentemente, a Comlurb afirmou que estes são limpos duas vezes por dia. E que atende o conjunto de favelas com o serviço de combate a vetores, que já realizou 34 intervenções este ano. A Comlurb fez também apelo aos moradores para que os resíduos sejam dispostos de forma ordenada, respeitando as orientações da gerência local e que evitem contratar carroceiros ilegais para a retirada de entulho. Os moradores devem recorrer ao serviço de remoção gratuita. A solicitação pode ser feita pela central de atendimento via WhatsApp da Prefeitura (3460-1746).

Quem protege o Meio Ambiente?

O problema do lixo se relaciona diretamente com a falta de preservação ambiental. Boa parte dos resíduos não são corretamente descartados e acabam nos valões. Os canais, que além do lixo recebem esgoto sem tratamento, se tornam assoreados e, em período de cheia, transbordam e invadem as casas dos moradores. 

O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) informou que atua na região para limpar e desassorear rios e canais. Como exemplo, citou a remoção de 2.900 metros cúbicos de sedimentos em um trecho de 450 metros do Canal da Rua Darci Vargas, no Parque União. O serviço foi iniciado em 6 de abril e finalizado em 10 de agosto.

Além das medidas de limpeza, o Inea informou que instalou eco barreiras na foz dos principais rios e canais da região da Maré. O objetivo é reter os resíduos sólidos flutuantes (impedindo que cheguem à Baía de Guanabara), para destinação ambiental adequada. Segundo dados da instituição, as barreiras, que estão posicionadas na foz dos canais da Vila dos Pinheiros, Baixa do Sapateiro, Nova Holanda, Rua Darcy Vargas e na foz do Rio Ramos, recolheram 438 toneladas de lixo entre janeiro e maio deste ano. Outra iniciativa do Inea é a mobilização de ações de educação ambiental, com o objetivo de capacitar jovens do Parque União para que se tornem líderes ambientais em sua região. Os resultados dos monitoramentos do Inea e outras informações estão disponíveis no site do Inea.

Uma velha promessa

Em conjunto com o lixo e a questão ambiental, o saneamento básico e a distribuição de água se somam aos desafios da população. O Censo Maré de 2013 já mostrava essa realidade ao estimar que 151 domicílios não tinham acesso a rede de água e 8.300 não usavam filtro ou água mineral. Em relação ao saneamento, 42 queixas foram recebidas sobre o serviço nas 16 favelas, entre as regiões sinalizadas, a Nova Holanda liderava o número de reclamações. 

Após a privatização da Cedae, a empresa Águas do Rio, pertencente à companhia Aegea, assumiu a responsabilidade sobre o abastecimento de água e tratamento de esgoto em boa parte do estado, comprando dois blocos dos 4 divididos para leilão. Entre as regiões adquiridas está todo o conjunto de favelas da Maré. Entramos em contato com a assessoria da Águas do Rio mas não obtivemos resposta.

Entre os projetos herdados pela Aegea estão a despoluição da Baía de Guanabara e a estruturação de um sistema de saneamento para os bairros do entorno, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG)  e Plano de Saneamento Ambiental dos Municípios no Entorno da Baía de Guanabara (PSAM). Pouco se sabe sobre o atual andamento dos projetos, o que se observa é que a situação na baía tem se tornado cada vez mais preocupante. De acordo com texto publicado na Casa Fluminense, entidade formada em 2013 por ativistas, pesquisadores e cidadãos: “(…) são necessários no mínimo 20 anos de ações ininterruptas, em diferentes frentes de trabalho, que podem amenizar os efeitos da degradação ambiental desse ecossistema.”

UniFavela inicia novo projeto para educação de base na Maré

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Além de atuar focada no desenvolvimento infantil, objetivo da nova iniciativa da instituição é auxiliar a trajetória de mães solo

Por Samara Oliveira, em 03/10/2022 às 9h

Após 4 anos trabalhando com educação de jovens e adultos através de pré-vestibular comunitário, com o objetivo de impulsionar o ensino superior dentro do conjunto de favelas da Maré, a UniFavela agora direciona também seu foco para a educação de base. UniLetrinhas é a mais nova aposta da instituição socioeducativa que, além de focar nas demandas do desenvolvimento infantil, tem o objetivo de auxiliar as famílias de mães solo. 

De acordo com os cartórios de registro civil, levando em conta somente os quatro primeiros meses do ano, mais de 56.931 crianças foram registradas sem o nome do pai

“É muito importante falar que no nosso território existem poucas iniciativas que trabalham com crianças de modo gratuito. Colocamos essa proposta de trabalhar com filhos de mãe solo justamente pra ter uma assistência na conjuntura familiar dessa criança. Acima de tudo vamos acompanhar o desenvolvimento não só dentro da nossa instituição, mas dentro da escola que ela está matriculada na maré”, afirmou o coordenador geral Laerte Breno, em live que anunciou os alunos contemplados da nova iniciativa.

Além do pré-requisito de serem filhos de mãe solo, os alunos devem ter de 6 a 10 anos e estarem matriculados em escola da Maré. A primeira turma, considerada pelos organizadores como uma turma teste para ampliação da iniciativa, iniciou as aulas no último dia 17/09. 

No entanto, de acordo com a coordenadora Suelen Martins, há expectativas positivas para a continuidade do projeto. “Em janeiro abriremos novas vagas, não temos o número exato ainda, pois dependemos da renovação do financiamento do projeto ser estendido e ampliado, para saber quantas crianças poderemos acolher. Até este momento, podemos garantir que mais 10 vagas serão abertas no primeiro semestre de 2023. Mas estamos trabalhando bastante e confiantes de que conseguiremos abrir mais que isso”, contou. 

Conquistando o mundo 

Em maio deste ano, a UniFavela conquistou o prêmio “Sim à Igualdade Racial 2022”, organizado pelo Instituto de Identidades do Brasil, o ID_BR. A premiação é considerada a maior do Brasil no reconhecimento de iniciativas engajadas com essa temática.

Em maio deste ano, a UniFavela conquistou o prêmio ‘Sim a igualdade racial 2022’ | Foto: Victor Vieira

Agora integrantes da instituição estão retornando do Chile após representarem o Brasil na categoria B do Prêmio Ibero-americano em Educação e Direitos Humanos que reconhece o trabalho de instituições que desenvolvem programas educacionais para crianças. Além de terem sidos indicados à premiação, os integrantes viveram uma imersão de dois dias com seminários conhecendo iniciativas de outros países. 

“Ser indicado a um prêmio dessa magnitude, com apenas 5 anos de atuação, ao lado de projetos e instituições que tem muito mais tempo de estrada que a gente é algo inesperado, mas ao mesmo tempo não é. Sabemos o quanto a educação popular é importante e o quanto trabalhamos para cumprirmos o papel que nos cabe enquanto instituição, então é também um processo de afirmação desse trabalho”, comemorou. 

Para Suelen, a sensação é de dever cumprido para a instituição, que se propõe a implementar políticas de educação pública que enfrentam os processos de descaso: “Ter uma ONG favelada sendo reconhecida internacionalmente por esse trabalho é a certeza de que a educação popular tem papel importante e essencial na luta por direitos e acesso a esses direitos. Estamos muito felizes e orgulhosos dos nossos estudantes e colaboradores, tanto os educadores quanto os voluntários que atuam nos processos administrativos. Nossa família é muito potente”.

Falta de comprovante de residência ainda é barreira para parte dos mareenses

Com as dificuldades encontradas para comprovar endereço, moradores de favelas e periferias têm percurso mais complicado para tirar título de eleitor

Por Luiz Menezes*, em 01/10/22 às 8h

O direito ao voto de forma direta, secreta e com valor igual para todos foi promulgado pela Constituição de 1988, que restaurou os direitos políticos dos brasileiros, após 24 anos de ditadura militar. Acontece que, atualmente, ainda há um enorme número de pessoas que não conseguem exercer sua cidadania por meio do voto. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o país conta com mais de 156 milhões de eleitores aptos a votar em 2022. O que os dados omitem são as dificuldades que alguns brasileiros encontram para emitir e regularizar o título de eleitor. A razão é o elevado número de documentações exigidas pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), como o comprovante de residência. O documento é algo simples em outras zonas da cidade, mas ainda é difícil para uma parcela significativa dos moradores de favelas e periferias. 

“Em regra, a falta de endereço pode prejudicar o acesso a direitos e que por isso, há a necessidade de reconhecimento dos locais ditos ‘informais’ pelo município. Na Maré, há ruas não receberam nomes oficiais. Neste caso, onde não houver comprovante de residência, pode-se utilizar uma declaração feita a próprio punho para tirar o título de eleitor”, explica Maurício Dutra, pesquisador e articulador do Eixo de Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré.

Acontece que o comprovante de residência de próprio punho não é possível para 6.302 pessoas, entre 15 anos ou mais, que não tiveram acesso a alfabetização, como mostra o Censo Populacional da Maré, divulgado em 2019. 

Simone Soares (42), mãe, comerciante e moradora da Nova Holanda, é uma das pessoas que refletem esse número de pessoas não alfabetizadas. “Eu não consigo escrever um comprovante de residência de próprio punho. Quando eu preciso de um comprovante consigo com a associação de moradores”, diz.

É nesse cenário que as associações de moradores atuam com o serviço de emissão de comprovante de residência. “Aqui na associação custa R$ 5. Quando a pessoa não tem como pagar não deixamos de fazer. O valor cobrado pelo comprovante é utilizado como uma ajuda de custo. Pagamos os funcionários que trabalham com a gente e as despesas administrativas”, relata Gilmar Rodrigues Gomes Junior, o Juninho (41), presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda. 

O líder comunitário ressalta que uma parceria com a Prefeitura seria importante para expandir o fornecimento dos comprovantes de residências de forma gratuita. O serviço varia de R$ 5 a R$ 30, dependendo da associação. “As associações devem oferecer esse serviço porque estamos mais próximos dos moradores, mas a Prefeitura deveria ajudar a gente com um suporte financeiro e estrutural mínimo, para àqueles que não conseguem pagar também tenha acesso”, cobra. 

Imagem do modelo de comprovante de residência da Associação de Moradores da Nova Holanda | Foto: Luiz Menezes

Cidadania Insurgente 

“A falta de documentação é um tema transversal, que dialoga com a exclusão e a desigualdade tão marcantes na sociedade brasileira. Em geral, são pessoas pobres ou muito pobres, de baixa escolaridade. Também se relaciona com o racismo e o machismo estruturais”, relatou Fernanda da Escóssia, autora do livro “Invisíveis”, em entrevista para o jornal O Povo, em outubro de 2021. 

A Maré é reconhecida oficialmente como bairro desde 1994, mas não tinha seus endereços reconhecidos pelos órgãos oficiais até receber parte significativa dos moradores. Sem comprovação de residência, muitas pessoas ainda não conseguem ter acesso aos direitos básicos garantidos pelo Estado. Tal situação evidencia a fragilidade da democracia brasileira, se pensar que é por meio deste que se escolhe os representantes políticos do país. 

O conjunto de favelas da Maré, com cerca de 140 mil habitantes, possui massa eleitoral com possibilidade de eleger prefeitos de diversas cidades do Brasil, como Maricá, por exemplo.

Para Shyrlei Rosendo, coordenadora do Eixo de Direitos Urbanos e Socioambientais da Redes da Maré, garantir o direito ao endereço dos moradores foi o que motivou a instituição a construir o Guia de Ruas da Maré (2014). “Fizemos a cartografia na Maré, e quando estávamos nesse processo, vimos que muitas das ruas não eram reconhecidas pelos órgãos oficiais e nem tinham CEP. Dentre os objetivos do Guia de Ruas está incidir junto ao poder público para que os moradores tenham direito ao endereço.”

Daniel Wicke no mutirão do título de eleitor na Nova Holanda | Foto: Luana Santana

É o caso de Hélio Flauzino (69), cozinheiro e morador da Marcílio Dias, uma das 16 favelas da Maré, conhecida por Kelson. Ele só conseguiu regularizar seu título de eleitor por conta do mutirão realizado pela Empresa Poética, coletivo de jovens que busca promover ações de impacto, e a Associação de Moradores da Nova Holanda. “Se não fosse pelo mutirão que me ajudou a escrever um comprovante de residência a próprio punho, não iria conseguir votar esse ano”, desabafa Hélio, não escondendo a felicidade e gratidão pela ajuda que recebeu. 

Daniel Wicke (22), estudante de direito e orientador jurídico, esteve à frente dos mutirões realizados na Maré que atenderam, segundo ele, cerca de 300 pessoas diretamente. “Nossos mutirões aconteceram nos dias 09, 22 e 28 de abril. Atendemos em média 300 pessoas no total. Foi um sucesso, tivemos uma procura muito maior do que conseguiríamos atender”, avalia. 

Para ele, o motivo da imensa procura é por conta das diversas exigências que esses processos apresentam. Além de nem todos saberem manusear aparelhos tecnológicos e terem internet. “Emitir e regularizar o título de eleitor é um procedimento que poderia ser feito por qualquer pessoa pelo site “título.net”. Acontece que muitas pessoas não possuem celular ou computador. Muita gente não tem nem internet aqui na favela. Quando tem, ainda encontram muita dificuldade por conta de tantos documentos exigidos, em especial o comprovante de residência que muitos não tinham no dia”, analisa.

Os usuários que buscavam por esse serviço também tinham características em comum. “A maioria das pessoas que atendemos eram moradores da Maré, mas que vinham de outras regiões, principalmente do Nordeste”, finaliza o jovem. 

Mutirão de regularização e emissão do título de eleitor na Nova Holanda | Foto: Luana Santana

*Comunicador da primeira turma do Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias

Crescimento da violência política se reflete no cenário de apreensão com as eleições

Estudo aponta que campo político é marcado por altos índices de violência especialmente na Baixada Fluminense

Por Hélio Euclides, em 30/09/2022 às 17h44

Na noite de 14 de março de 2018, a cidade do Rio de Janeiro viu a interrupção da vida de uma mulher que lutava pela justiça racial, por uma política de segurança pública e pelos direitos humanos. A vereadora Marielle Franco teve sua trajetória interrompida por 13 tiros que atingiram o veículo, matando também o motorista Anderson Pedro Gomes. Até hoje, familiares, amigos e apoiadores lutam por justiça, para saber o mandante da morte de Marielle. A violência política não parou aí, em diversas partes do estado do Rio de Janeiro há ameaças e mortes. Pensando nisso, na terça-feira (27/09), foi lançado o levantamento Violência Política na Baixada Fluminense e na Baía de Ilha Grande.

Depois de Marielle, as violências não terminaram. Foram diversas ameaças, entre elas contra a deputada federal Talíria Petrone, a deputada estadual Erica Malunguinho, a primeira mulher trans eleita em uma assembleia legislativa, o vereador transexual Thammy Miranda, a vereadora paulistana Erika Hilton e a vereadora Benny Briolly, a primeira travesti eleita por Niterói. 

De acordo com o Observatório da Violência Política e Eleitoral (2022), formado por pesquisadores do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), o Brasil registrou, nos últimos três anos, 1209 casos de violência política. Se em janeiro de 2019, quando teve início o governo Jair Bolsonaro, foram contabilizados 47 casos, em junho de 2022, ocorreram 214, o que representa um crescimento de 335% nos casos desse tipo. Quando comparados os números de casos de violência contra lideranças políticas no país nos primeiros seis meses de 2022 com o mesmo período do último ciclo eleitoral, o pleito municipal de 2020, também se verifica um aumento: os registros tiveram um acréscimo de 17,4%. Apenas em 2022, foram 45 homicídios.

O próximo domingo, dia 2 de outubro, é marcado pelas eleições presidenciais mais acirradas dos últimos tempos. Os dados levantados pela pesquisa evidenciam um cenário de insegurança, tanto para pessoas públicas quanto para a população em geral. Segundo um levantamento do Observatório da Violência Política e Eleitoral da Unirio, na primeira metade de 2022, foram registrados 214 casos de violência contra lideranças políticas. Além disso, uma pesquisa do Datafolha, divulgada no dia 14 de setembro, aponta que 67,5% dos brasileiros afirmam que temem ser vítima de violência política.

Duas regiões com a mesma violência

A cada 45 dias, um político é assassinado na Baixada Fluminense. É o que apontam os dados da pesquisa Violência Política na Baixada Fluminense e na Baía da Ilha Grande, analisados entre janeiro de 2021 e junho de 2022. O estudo foi desenvolvido por pesquisadores do Observatório de Favelas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Witwatersrand (WITS), da África do Sul, com apoio da Fundação Heinrich Boll e da Open Society Foundations. O levantamento analisa diferentes modalidades de violência política e lista uma série de recomendações para combater os processos de violência política instalados nas regiões estudadas.

De acordo com o estudo, dos 31 casos de violência política mapeados, 28 foram cometidos na Baixada Fluminense e três na região de Ilha Grande. Destas, 23 foram praticadas com o uso de armas de fogo e 12 foram execuções sumárias, todas na Baixada. As demais foram estas: atentados contra a vida, ameaça, invasão de espaço político, depredação de espaço político, violência política de gênero, e disparo de arma letal contra manifestação política no período.

O município líder em número de casos de violência política foi Duque de Caxias que contabilizou 10 ataques, seguido por Nilópolis com quatro ocorrências. Logo atrás vem as cidades de Nova Iguaçu, São João de Meriti e Itaguaí. A expansão das milícias nestes territórios tem influência direta nos casos de violência política analisados. Dos 31 casos de violência política mapeados, 13 foram cometidos em áreas de milícias, nove deles foram execuções. 

É importante destacar que, para além dos casos de violência política quantificados pelo estudo, as entrevistas realizadas mostraram que há um conjunto de violências mais estruturais que atingem principalmente mulheres negras na política. As mulheres entrevistadas relataram diversos casos de agressões físicas e verbais, ameaças, intimidações, violência institucional e violência política de gênero e raça.

O estudo usou como metodologia o levantamento de casos de violência política em jornais, pesquisas complementares na internet, entrevistas e monitoramento e análise das mídias sociais de políticos que atuam na área da segurança pública nas regiões estudadas. 

A pesquisa apresentou, por fim, um conjunto de recomendações direcionadas aos Ministérios Públicos Eleitorais, ao Poder Legislativo, aos Tribunais de Contas e aos Partidos Políticos para a reversão dos processos de violência política instalados, especialmente nas regiões estudadas, Baixada e na Baía da Ilha Grande. Entre elas, destacam-se:

  1. Coibir o discurso de ódio e de incentivo à violência por parte de políticos em quaisquer meios, principalmente em casos de violência de gênero e raça;
  2. Estabelecer mecanismos de proteção à vida de políticas/os ameaçadas/os de morte, priorizando mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+;
  3. Organizar grupos de trabalho participativos especialmente dirigidos para a discussão e prevenção da violência política no estado do Rio de Janeiro, com foco nas regiões da Baixada Fluminense e da Baía da Ilha Grande.
  4. Criar estruturas especializadas nas casas legislativas para a prevenção de violência política e proteção de parlamentares ameaçadas/os de morte;
  5. Ampliar e refinar mecanismos de controle que garantam que os recursos públicos, principalmente municipais, não sejam utilizados para fins de clientelismo eleitoral;
  6. Estimular a participação de pessoas negras, mulheres e LGBTQIA+ dentro dos diretórios dos partidos;
  7. Reprimir práticas sexistas, misóginas, racistas e LGBTQIA+fóbicas no cotidiano das práticas partidárias.

Uma eleição sem manifestação por voto

Um caso de grande repercussão foi o de Marcelo Arruda, guarda municipal e tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT) em Foz do Iguaçu, no Paraná. Marcelo foi morto durante sua festa de aniversário que tinha como tema o PT e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Um policial penal federal, que se identifica nas redes sociais virtuais como apoiador de Jair Bolsonaro, invadiu armado o lugar onde a festa ocorria e disparou contra o aniversariante enquanto gritava o nome do presidente. Apesar das claras evidências, a Polícia Civil do Paraná concluiu em inquérito que o crime não teria sido motivado por hostilidade política.

Uma jornaleira, moradora de Ramos, que prefere não se identificar com receio de represália, disse que não revela o seu voto. “Quando me perguntam sobre quem vou votar, acabo omitindo a verdade e menciono um candidato que não está bem nas pesquisas. Desconfio que alguns radicais de verde-amarelo andam armados”, conta. 

As ofensas verbais são recorrentes nessa eleição. Luiz Costa, professor na Maré, já recebeu ofensas de responsáveis de alunos e parentes quando descobrem que sua opção é por voto em candidatos progressistas. “Quando recebo fake news e aviso que a notícia é comprovadamente falsa, vem as ofensas. Outro dia, dois bolsonaristas tomavam cerveja e tinha um homem caído ao chão próximo. Perguntei se o rapaz precisava de ajuda e quase apanhei. Eles xingaram um palavrão e disseram que trabalham o dia todo e ninguém pergunta como estão. E debocharam, mandando levar o rapaz para casa”, lamenta.