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Mulheres em luta

Mulheres mães que tiveram seus caminhos atravessados por falhas políticas de segurança pública contam suas histórias sobre como resistem e dão novos rumos às suas vidas 

Maré de Notícias #110 – março de 2020

Flávia Veloso e Miriam Krenzinger

Nos últimos 20 anos a cidade do Rio de Janeiro vem sendo palco de vários movimentos e coletivos de mulheres – mães e familiares moradoras de favelas e da periferia – que se organizam na luta diária pelo acesso à justiça, à reparação e ao direito de preservarem a memória dos entes queridos que foram brutalmente feridos ou mortos em decorrência dos confrontos entre grupos armados – policiais, milícias e traficantes.

Frente à ausência de apoio das instituições governamentais, de reconhecimento das violações e dos danos causados por parte de agentes do Estado, algumas mulheres-mães têm se articulado para fortalecer a forma de lidar com as dores e os sofrimentos gerados pela violência institucional e violência das armas. Alguns desses grupos resistem há anos e servem de exemplos para outras mães e mulheres, como o Mães de Manguinhos, Movimento Moleque, Mães de Maio (SP), Mães da Maré, entre diversos outros coletivos que seguem na mesma luta.

Resistência e luta

E muitas mulheres, como Bruna e Mônica, (depoimentos em destaque) que lutam por memória, respeito e reparação, encontram diversas barreiras institucionais e resistências por parte dos agentes do Estado para acessarem a Justiça e o sistema de garantias individuais e sociais. Além do medo de se exporem, o descrédito nos órgãos da Justiça decorre, principalmente, da total falta de transparência das informações e de providências efetivas que poderiam/deveriam elucidar as violências sofridas por seus familiares.

Nesse cenário, destaca-se o projeto de Olho da Maré, uma iniciativa do eixo de “Segurança Pública e Acesso à Justiça” da Redes que  busca sistematizar dados sobre os confrontos bélicos que envolveram grupos armados e forças policiais. As informações são publicadas anualmente desde 2017 no Boletim “Direito à Segurança Pública na Maré”. O monitoramento busca dar visibilidade ao conjunto de violações de direitos fundamentais sofridas pelos moradores das 16 favelas do Complexo da Maré para, a partir disso, subsidiar o movimento das mulheres mães da Maré vítimas do Estado, bem como, pensar a implementação de políticas públicas que tenham como prioridade garantir da vida da população.

Vítimas de violações

  Os dados publicados nas quatro edições do Boletim, entre 2017 e 2020, revelam um quadro dramático sobre a violência armada e institucional que atinge nossos/as moradores/as: 132 pessoas foram mortas, 121 feridas. Nossas crianças ficaram 89 dias sem acesso às escolas e mais de 60 mil atendimentos deixaram de ser prestados nos 101 dias em que as unidades de saúde ficaram fechadas. Somente em 2019, houve 117 dias de tiroteios em diferentes partes da Maré, englobando os que ocorreram durante operações policiais ou em ações das redes ilícitas e criminosas.

As vítimas de letalidade violenta são, em maioria, jovens pardos e negros, representando 94% casos. Esta informação está diretamente correlacionada ao sofrimento de mães e mulheres familiares que perderam filhos, netos, irmãos ou maridos, num contexto em que não há garantia, mínima, do acesso  justiça e ao direito à segurança.

A luta ainda é delas

E vale ressaltar que,  mesmo nos casos de violações de direitos cometidas contra homens, geralmente, são as mulheres que buscam acolhimento e orientação psicossocial e jurídica junto a projeto Maré de Direitos[1] da Redes da Maré. Quando olhamos, ainda, para outras formas de notificações sobre violações de direitos fundamentais, identifica-se que são as mulheres registraram 58% das ocorrências.

Os dados e, assim como, os depoimentos demonstram a relevância dos movimentos das Mulheres-familiares-Mães que ao criarem espaços de partilha de trajetórias singulares, que ao mesmo tempo são muito similares, sensibilizam outras mulheres a aderirem às suas lutas por mais justiça. De forma coletiva, as mulheres unidas ficam mais fortalecidas para fazerem os registros e denúncias das violências sofridas (por familiares) e do genocídio, em curso, de jovens moradores da Maré.  As três narrativas indicam o quanto o território dominado pelo confronto das armas, que fere e deixa marcas permanentes nos seus locais de moradia e nas suas famílias, pode ser também o território da solidariedade, da ajuda mútua, da convivência acolhedora que possibilita reviver a presença de quem partiu gerando memória, respeito também fortalecimento para si. Segundo Bruna Silva,“ juntas somos mais fortes. Não merecemos o fim que nossos filhos tiveram. Merecemos viver com dignidade. Todas as vidas importam isso é pelo que a gente briga”.

E é, justamente, por meio da troca de afetos com outras mulheres que também passaram pela mesma situação, que Mônica consegue se fortalecer:  “O que te faz não enlouquecer de vez, não se internar dentro de casa, não se suicidar ou se deixar morrer, é a companhia das outras, a força das outras que têm a mesma dor que você, que passa pelas mesmas violações. Essa troca me ajuda a equilibrar minha saúde mental, me faz pensar que eu posso de alguma forma continuar a viver. Você pode passar um batom, fazer as unhas, o cabelo, pode sorrir, sair para dançar, ter um relacionamento, pode viver, ter momentos felizes, mesmo com essa dor”, observa Mônica.

Os três depoimentos a seguir de mães tiveram filhos vitimados pela violência do Estado ilustram suas dores e suas lutas.

Sete meses sem conseguir atendimento médico

Laurizete Pereira dos Santos há mais de sete meses tenta fazer com que seu filho consiga tratamento médico. Tudo começou em julho de 2019 quando Isaac foi ferido por uma bala, durante uma operação policial na Baixa do Sapateiro, na Maré, que atingiu sua coluna e o sistema digestivo, fazendo com que ele perdesse força das pernas e abrindo um grande ferimento na barriga. Isaac teve o sistema digestivo operado e ficou internado por duas semanas no Hospital Evandro Freire. Desde então, o rapaz vem sendo tratado em casa por Laurizete. Os cuidados da mãe conseguiram que o ferimento fosse cicatrizado, mas a recuperação de Isaac parece ainda distante.  Impossibilitado de andar, fazer esforços e com o sistema digestivo lesionado internamente, Laurizete vive para cuidar do filho: “Depois que isso aconteceu com ele, fiquei três meses com os hormônios desregulados por causa do estresse. E minha luta tem sido sozinha, porque o pai e o irmão dele saem para trabalhar. Nossa vida mudou. Eu passo madrugadas acordada com ele, porque muitas vezes não consegue dormir. Meu sono vem, mas eu preciso estar ali cuidando dele”. (Laurizete Pereira dos Santos, moradora do Parque Maré)

Todas as vidas importam

Bruna Silva, em 2018, perdeu seu filho Marcos Vinícius, de 14 anos, durante uma operação policial na Maré. O garoto estava a caminho da escola, quando foi alvejado por um tiro disparado por um agente da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE). O caso repercutiu nas mídias e a mãe de Marcus Vinícius decidiu não se calar, iniciando uma trajetória de trabalhos e ações na área da segurança pública.

Bruna escolheu a luta também para preservar a memória do filho, junto a uma rede de apoio com outras mães e mulheres: “A gente se enterra em casa quando enterra um filho, automaticamente a gente morre com ele. Mas eu digo que é preciso que a gente viva, resista. A maneira que eu encontrei de não adoecer foi dando suporte a essas mães que passam pela mesma situação” . (Bruna Silva, ativista do Coletivo Mães da Maré)

“Primeiro você destrói o humano, para depois justificar o corpo no chão”

Rafael da Silva Cunha tinha 15 anos quando foi apreendido pela polícia e levado à 4ª Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), na Avenida Presidente Vargas, por ter cometido um ato infracional. Rafael foi condenado a cumprir medidas socioeducativas no Centro de Socioeducação Dom Bosco na Ilha do Governador. Foi nesse momento que a luta de sua mãe, Mônica Cunha, começou. Após a primeira entrada, Rafael passou mais três vezes pelo sistema socioeducativo do Estado. Aos 20 anos, Rafael foi morto pela polícia quando já estava rendido. Nessa época, Mônica decidiu criar uma rede informativa com o objetivo de conscientizar outras mães sobre os direitos de seus filhos menores de idade em conflito com a lei. Assim nasceu o Movimento Moleque, que existe até hoje. (Monica Cunha- líder do Movimento Moleque)

Da Maré para Tóquio

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Morador da Nova Holanda consegue bolsa para estudar em universidade do Japão em 2020

Ana Clara Alves e Jonatas Magno

Os cursos preparatórios e pré-vestibulares comunitários espalhados pela Maré tem preparado moradores a ingressar em instituições de excelência há anos. Com isso, vem aumentando o número de moradores da Maré em colégios Federais e Estaduais, assim como nas instituições de ensino superior. Um deles é Matheus Motta, 18 anos, morador da Nova Holanda. Ele fez preparatório para o 6º ano e foi aprovado no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), estudando no colégio de aplicação até o final do ensino médio, em 2019. Recentemente foi aceito na Universidade de Estudos Estrangeiros de Tóquio, a Tokyo University of Foreign Studies (TUFS), onde será bolsista ao longo dos quatro anos de ensino.

Matheus sempre estudou na rede pública de ensino e o que o motivou a tentar o curso no Japão foi a vontade de estudar no exterior. Apesar do interesse no campo das ciências humanas, ele não sabia qual faculdade iria fazer. Ao tomar conhecimento que o curso na TUFS abrangia a sua área de interesse, uniu essa certeza com a vontade de estudar fora e iniciou o processo seletivo para concorrer à vaga. Em Tóquio, ele vai cursar Estudos Japoneses, além de adquirir fluência em japonês para que ele possa se comunicar no país. A proposta é que a UERJ reconheça o diploma dele com base nas disciplinas eletivas que forem escolhidas.

Percurso 

A longo de sua trajetória estudantil, Matheus sofreu dificuldades que qualquer outro morador periférico sofre, como lidar com uma realidade naturalmente opressora analisando a questão da violência. Isso porque, por mais que estudasse fora da Nova Holanda, ele ficou impossibilitado de sair de casa antes de alguma operação começar, perdendo dias de aula. Apesar disto, percebe que essa dificuldade não pode se comparar a de moradores que estudam dentro da Maré, e que quase toda semana tem suas aulas paralisadas por conta de operações. Ele acredita que seu diferencial para os outros moradores da comunidade foi o acesso a informações e as oportunidades que teve. Enquanto estudava na Maré, passou por testes e conseguiu ingressar em um preparatório, conhecido atualmente como Instituto Apontar, que o auxiliou no ingresso em escolas de excelência. Isso o possibilitou entrar no CAp-UERJ, onde recebeu uma educação de qualidade e o fez crescer como estudante e cidadão. 

De início, os pais de Matheus ficaram bastante receosos com o fato do filho ir estudar no Japão. Após reunião no colégio com uma pedagoga e um aluno que já participou do projeto, eles ficaram mais tranquilos. Antes de embarcar para Tóquio,  ainda deu tempo para ele dar mais orgulho para sua família ao passar para Jornalismo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Matheus não sabia de fato o que queria, mas escolheu Jornalismo por considerar que fala bastante, gostar muito de contar história, se achar bastante comunicativo e gostar de escrever também. Por já ter feito a primeira fase da prova, resolveu fazer a específica também e acabou conseguindo ingressar, mas por agora, a sua escolha será estudar no Japão. 

Perguntado sobre um sonho, Matheus não conseguiu pensar em algo material. Ele só espera que daqui a quatro anos esteja de fato se formando, feliz, com a certeza de que fez a escolha certa e que tenha conhecido não só o Japão, mas também o mundo, e tido contato com várias culturas que resultaria num crescimento pessoal. 

A Maré em números

Segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), contou-se 135.989 moradores na Maré, incluindo a favela Marcílio Dias. Já o Censo Maré, realizado três anos após o do órgão estatal, fez o levantamento de 139.073 pessoas. 

Devido à mobilização de organizações locais e ao movimento Maré Que Queremos – uma parceria da Redes da Maré com diversas organizações das 16 favelas, incluindo associações de moradores -,  a oferta de escolas de educação infantil e de ensino fundamental na Maré aumentou. Hoje o território tem 44 escolas, mais que o dobro de 2013, época da realização do censo. Esses espaços oferecem de creche ao ensino médio em um complexo chamado “Campus Educacional da Maré”.

Dentre os habitantes das favelas, 6.302 (6%) dos entrevistados não sabem ler ou escrever, sendo 3.356 (6,2%) mulheres e 2.925 (5,8%) homens. Além disso, os dados do Censo apontam que entre os moradores do Complexo da Maré, 11.145  (8,01%) nunca frequentaram a escola e 74.359 (53,47%) não chegaram a completar o Ensino Fundamental. Dos 25.866 que concluíram o ensino fundamental, apenas 835 não deram continuidade no ensino médio. E apenas 1334 habitantes ingressaram no ensino superior. 

A intensidade do “maternar” periférico

Maré de Notícias #110 – março de 2020

Jessica Pires: recente mãe da Mariá, comunicadora popular e jornalista do Maré de Notícias

Que a maternidade é uma das experiências mais intensas que uma mulher pode viver, é fácil imaginar. Mas a intensidade e os desafios que uma mulher periférica experimenta ao decidir viver essa relação são muitos. E nem tenho a pretensão de, aqui, dizer quais são todos eles, porque para começar, como qualquer outra relação, aprendi que cada história de mãe é especialmente única.

Poderíamos começar falando sobre como a sociedade naturaliza a quase total responsabilidade da criação para as mães, e isso vai muito além da questão da natureza humana de gestar, amamentar… Durante todo este processo e quando o bebê chega, as responsabilidades estão em diversos âmbitos e os impactos para a vida da mãe são muitos, e, decididamente, diferentes daqueles que um homem passa. O cansaço e a responsabilidade são físicas, emocionais e mentais. Dizer que isso não é igual para os genitores, mesmo quando estão dispostos a tentar, já me parece redundante.

Sobre qual aspecto podemos chamar mais a atenção, ressalto que é como todo esse universo de novidades atravessa as mães periféricas e faveladas. Se numa relação na qual existem privilégios como uma licença maternidade considerável, carga horária flexível para retorno ao trabalho, vagas suficientes em creches e acesso à informação, isso tudo é intenso, imagine para quem conta, muitas vezes, com apenas uma outra mulher?

De acordo com os dados do Censo Populacional da Maré, começamos pela declaração da maternidade, que é mais expressiva que a paternidade. Outro dado que chama a atenção é que, entre as pessoas que são consideradas responsáveis pelos domicílios na Maré, 30,3% são mulheres maiores de 15 anos. Além de 19,1% que o fazem de forma compartilhada. Isso quer dizer que, praticamente a metade das mulheres com 15 anos ou mais, é a pessoa responsável por domicílios na Maré. E considerável parte delas também são mães.

Quando se tem um vínculo empregatício formal, a mulher tem direito a, pelo menos, quatro meses de licença-maternidade garantida. A licença-maternidade surgiu no Brasil em 1943 com a CLT, inicialmente com um tempo ainda menor e com o pagamento sendo feito pela própria empregada. Na Constituição Federal de 1988, passamos a ter a garantia de 120 dias (quatro meses). Em contraponto, a mesma Constituição define uma licença-paternidade de cinco dias. Ou seja, o desequilíbrio é constitucional.

E esse é o cenário de relações de trabalho formais, regulamentadas pela CLT. Quando essa não é a realidade, a mulher muitas vezes conta com outras mulheres para poder voltar à sua rotina de trabalho – o que acontece com muita frequência na Maré. São às avós, vizinhas, amigas ou cuidadoras remuneradas que dão conta de dedicar a atenção aos bebês, bem antes do que seria ideal ou recomendado.

O retorno à rotina de trabalho precoce também envolve uma questão delicada e importante até mesmo para a saúde pública: muitas mães acabam deixando de amamentar mais cedo que o recomendado. A Organização Mundial da Saúde recomenda o aleitamento exclusivo até os seis meses e, segundo estudos, também da OMS, a amamentação quase universal poderia salvar mais de 800 mil vidas, anualmente, sendo a maioria de crianças com menos de seis meses de vida, além do custo alto que a inclusão de fórmulas para alternativas ao leite materno no orçamento dessas mães.

Apesar de a Prefeitura do Rio afirmar ser uma de suas prioridades o aumento do número de vagas em creches públicas, não é a realidade que se vê na prática. Detalhe é que uma das metas do Plano Nacional de Educação (em vigência desde 25/06/2014 e estabelece diretrizes, metas e estratégias para os próximos 10 anos da Educação brasileira) é universalizar a Educação Infantil na Pré-escola.

O fato é que a mulher periférica atravessa, de forma muito mais intensa, os desafios gigantes e nada românticos nesta trajetória.  E apesar de ser ela, sermos nós, literalmente, geradoras da base da sociedade, a escolha de se ter condições, políticas públicas ou iniciativas privadas para fortalecer esse processo, definitivamente, não é nossa. 

Dica: O Espaço Casulo, um espaço para troca de ideias e de atividades com enfoque na mulher, tem uma Roda de Gestantes que acontece mensalmente. A próxima Roda será XX com o tema: XX. O objetivo é a troca de informações acerca de temas sobre gestação e maternidade, relatos, dúvidas e conversas. O Espaço Casulo fica na Av. Guilherme Maxwell, 79 – 2º andar (Rua da Passarela 7, em cima da academia).

“Me ensinaram que éramos insuficientes. Discordei. Pra ser ouvida, o grito tem que ser potente.” (Mc Carol e Karol Conka)

Maré de Notícias #110 – março de 2020

Andreza Jorge: “Cria” da Maré, Mestre em Relações Étnico-Raciais e Coordenadora da Casa da Mulheres da Maré

No dia 8 de março se comemora o Dia Internacional da Mulher, uma data-símbolo para a luta das mulheres. A data faz parte do calendário de mais de 100 países, sendo nomeada de  “dia internacional” pelas Nações Unidas, com o propósito de lembrar as conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres, independentemente de divisões nacionais, culturais, econômicas ou políticas. Esta data, que tem como objetivo pensar na especificidade do ser mulher, ao se “internacionalizar” pode nos conduzir a um equívoco muito corriqueiro: a universalização da categoria mulher.

Pensar sobre o que significa “ser mulher” é um exercício que precisa ser praticado sobre olhares muito diversos. Todas nós partilhamos algo concreto que é a afirmação de gênero, sendo cis ou trans, uma mulher que se afirma como mulher deve ser respeitada sobre esse posicionamento, porém existem muitos marcadores que nos colocam em diferentes lugares nessa sociedade: O que significa em uma sociedade estruturalmente racista ser uma mulher negra? O que significa em uma sociedade estruturalmente cisheteronormativa* ser uma mulher trans? O que significa em uma sociedade estruturalmente desigual, dividida em classes sociais, ser uma mulher favelada? A partir desses questionamentos é possível refletir acerca de alguns desafios postos para nós, mulheres, entendendo que não estar diretamente implicada em alguma dessas causas não nos isenta do compromisso político e, principalmente de empatia e escuta aberta, para a construção de um mundo possível para todas as mulheres.  Ser mulher e ser favela!

No Censo realizado no conjunto de favelas da Maré (2019), temos o dado de que a população feminina no território é de 51%, se unirmos esse dado ao pensamento da autora norte-americana Angela Davis (2016), que afirma que “raça, classe e gênero entrelaçados,  juntos, criam diferentes tipos de opressão. Classe informa a raça; raça informa a classe.” Ao dizer que classe informa a raça e raça informa a classe, estamos falando sobre uma realidade de mulheres negras que ocupam as classes mais baixas na sociedade, ou seja, com essa informação temos um retrato sobre a maioria das mulheres faveladas.

Com isso, muitos desafios nos colocam em diferentes pontos de partida do que é “ser mulher”; a partir do meu ponto de vista sendo uma mulher negra, da Maré, mãe, trabalhadora e estudante, consigo vislumbrar que muitos avanços foram realizados em favor das mulheres, mas ainda precisamos continuar a lutar por direitos básicos de existência.

Se há alguns anos, aqui, na Maré, tínhamos uma urgência atrelada à sobrevivência para se obter garantias mínimas (como água e luz), a nossa resposta sempre foi uma luta feminina e um protagonismo visível para o avanço dessas condições locais, hoje, temos um foco na garantia do direito à Segurança Pública e no desejo de enfrentar normas rígidas de gênero, que nos impediram de realizar sonhos pessoais que não estejam necessariamente relacionados ao que se espera de uma mulher na sociedade. Queremos acessar direitos, queremos que nossos filhos não sejam vistos como alvo de um sistema falho de segurança, queremos ter o direito de ir e vir, queremos ter o direito de trabalhar e estudar, queremos ter direitos de sonhar e realizar sonhos.

Neste Dia Internacional da Mulher, o meu desejo é que todas as mulheres possam ter a chance de refletir sobre suas próprias vidas e tenham suas histórias e experiências respeitadas, como parte de uma construção coletiva, cujo objetivo maior é seguir produzindo um legado para as mulheres que ainda virão… Na Maré, eu desejo que todas as mulheres possam conhecer e se orgulhar das histórias de mulheres que construíram e constroem esse lugar, se orgulhar da trajetória destas mulheres que fazem parte da sua linhagem familiar, suas bisavós, suas avós e mães e tias, entendendo o quão mais desafiador era ser mulher em outros tempos e, somente assim, unirmos forças para alcançar um objetivo comum: uma vida cheia de realizações para todas as mulheres da Maré!

* Cisgênero (Cis) é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero de nascença”. No âmbito dos estudos relacionados ao gênero humano,ocisgênero é a oposição do transgênero (Trans), pois este último se identifica com um gênero diferente daquele que lhe foi atribuído quando nasceu. [Conforme http://www.significados.com.br/]

Uma onda chamada Hip Hop

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Os elementos que formam a arte e a cultura negra se expressam no movimento musical

Hélio Euclides

Terra, água, ar, e fogo são elementos clássicos da natureza. No hip hop, os elementos básicos são o DJ, o MC, a dança e o grafite. Eles formam os quatro pilares que compõem esse estilo de cultura popular. Há 10 anos o Maré Skills vem dando continuidade à expansão do hip hop na Maré e fora dela. São jovens que trabalham a dança e arte nas ruas e em competições. 

Douglas Barreto, de 30 anos, morador da Nova Holanda, é o fundador do grupo de hip hop chamado Maré Skills, onde a palavra em inglês skills significa habilidades. Tudo começou quando em 2010, no evento Rios Black, realizado na Lona Cultural Municipal Elza Osborne, em Campo Grande. Nesse evento, o grupo ganhou todas as modalidades e levou o prêmio Fazendo a Diferença no hip hop. Na época, um amigo fez um vídeo da dança e na legenda identificou-os como Maré Skills, ou seja, um batismo na tela.

O grupo já levou a cultura da favela em diversos palcos, alguns fora do Estado, como em São Paulo, Belo Horizonte, Belém e Macapá. Mas eles gostam mesmo das terras da Maré. “Nosso objetivo é passar positividade, mas é uma música de protesto. A grande mídia só fala de operação policial, de que todos os moradores da favela são cúmplices da ilegalidade. Por que não divulgar o bom daqui?”, questiona Douglas.

O coletivo formado por 10 jovens lembra de um evento que foi um marco, o Ativa Breakers 2008, realizado no Bar do Zé, no Largo do Centenário, no Morro do Timbau, que reuniu vários membros de outros coletivos. Outra festa é a Roda de Rima, no Parque União. O Maré Hip Hop, evento que aconteceu em duas edições, 2007 e 2018. O grupo sonha em transformar o Maré Hip Hop em um acontecimento anual. 

Desde o início o grupo tem uniforme, o que ajuda ao chegar no evento, estufar e bater no peito que todos são da Maré. A capital paulista reúne os maiores eventos de hip hop e eles participaram do Atari Funkers. “Quando chegamos, eles não sabiam que o Rio tinha hip hop, que usava a referência musical do James Brown e Ed Motta”, comenta. 

Para Douglas, a música e o ritmo mudam com os anos, mas as pessoas continuam dançando. Para alguns, o estilo trap, que reverencia a ostentação, está em evidência no momento. “Entendo que o mais importante é compartilhar a música, trazer lembranças a favela e fazer pensar. Resgatar a história da Maré é uma volta ao tempo. Um exemplo é lembrar do Talk Sessão B Girls, um evento de hip hop exclusivo para as mulheres, uma ação de inclusão”, destaca.

Ele não fica parado, leciona dança na Coordenadoria de Artes e Oficinas de Criação (Coart), na UERJ. Além disso, criou uma marca de estampa, a marca Rebobinar. Uma das camisas do grupo traz a engenharia das casas da favela, as palafitas. “Não dá para viver da dança, só sobreviver. Mas precisamos resistir pois estamos na era da terapia. O mundo hoje é voltado para a ansiedade e depressão, está complicado e delicado esse momento. A favela precisa ter aula de cultura urbana. Isso pode ser libertador, ajudar o jovem a encontrar um rumo”, conclui.

Como começou esse estilo de vida

O Hip Hop começa em meados dos anos 1970, na Jamaica e com os afro-americanos da cidade de Nova Iorque, mais precisamente no sul do Bronx, com MCs. O diferencial era o acréscimo da rima à batida. 

Uma década depois, chega ao Brasil como uma febre chamada Break Dance. O filme de 1983, Flashdance, ajudou a expansão. Outro marco das telonas foi Beat Street, um longa-metragem muito importante para o movimento. O estilo chamava atenção com pessoas vestidas com roupas coloridas, óculos escuros, tênis de botinha, luvas, bonés e os boombox, os enormes rádios gravadores. Essa fórmula ajudava o jovem a mostrar os primeiros passos. 

São mais de 40 anos de uma cultura de autoestima do jovem negro, que vivia nas periferias da cidade e precisa encontrar sua identidade cultural dentro de uma sociedade de preconceitos. Após tantos anos o hip hop se reinventa, mas continua com seus raps formando a essência de denunciar as injustiças vividas pelos pobres das periferias das grandes cidades.

Na Maré, o movimento dá os primeiros passos no Parque Rubens Vaz, em 1996, era o palco dos grupos, o point do hip hop na quadra. Hoje apesar de não tocar tanto nas rádios, Douglas garante que o hip hop está forte, com o estilo passinho, que chama atenção da nova geração e o tradicional Underground.