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Luta que vem de dentro

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Profissionais da saúde, moradores e instituições locais encaram a precarização de serviços psicológicos com iniciativas que promovem a saúde mental na Maré. O complexo de favelas enfrenta, ainda, a realidade de ser o território com mais casos de covid-19 no Rio de Janeiro.

Por Thaís Cavalcante em 06/10/2020 às 10h08

Esse texto é uma iniciativa #Colabora nessa Maré de Notícias, parceria entre o Projeto #Colabora e o Maré de Notícias.

Ruas vazias, mentes cheias. O medo de pegar coronavírus ocupa os pensamentos dos moradores da Maré com um enfrentamento ainda maior do que o resto da cidade, do país, do mundo. Outras ameaças cotidianas também atravessam a vida favelada, como o desemprego, a violência armada e a falta de direitos básicos. Para quem lida com questões psicológicas, a chegada da covid-19 fez os cuidados com a saúde mental serem ainda mais necessários. Seis meses depois, a flexibilização de atividades econômicas acontece, enquanto mais de 14 mil casos da doença são confirmados nas comunidades populares cariocas, segundo mapeamento do Painel Unificador Covid-19 Nas Favelas, divulgado no dia 5 de outubro. 

Os desafios dessa crise foram previstos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que tratou a pandemia não só como uma questão sanitária e humanitária, mas também de saúde mental. Cerca de 30% a 50% das pessoas que já estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica e psicossocial, como os moradores de favelas, têm mais chances de desenvolver algum sofrimento psíquico ou enfrentar agravamento dos sintomas.

Psiquiatra Carlos César atende no CAPS ‘Magal’ e atua na área de saúde mental do Complexo Maré há mais de cinco anos. (Foto: Gabriel Loiola)

Carlos César de Carvalho, psiquiatra do CAPS Magal, dá suporte em seis Clínicas da Maré e atua nas 16 favelas do complexo há mais de cinco anos. Ele afirma que os transtornos mentais são mecanismos de defesa que a mente desenvolve para lidar com determinadas situações. O alerta deve acontecer quando as sensações forem além do nível de proteção. “De maneira nenhuma sentir é um transtorno. Cada um vai ter um mecanismo para dar encaminhamento a esse sofrimento. Falar disso é um jeito importante de trabalhar essas questões”.

Anna Cláudia Neves, comunicadora de 45 anos e moradora da Salsa e Merengue, na Maré, lida com ansiedade, síndrome do pânico e depressão há três anos. Sem conseguir renovar a receita para comprar os remédios controlados, teve crises de abstinência. “Eu chorava e tremia. Só depois das reações entendi que era pela falta dos remédios. Não tinha como ir na Clínica da Família porque a prioridade era me proteger do coronavírus”, relata.

Ainda que a Anvisa tenha mudado as regras para facilitar o recebimento de remédios em casa e para os pacientes poderem comprar medicamentos em maior quantidade, na favela não funciona assim. As incertezas de Neves também foram motivadas pela situação local. A Maré é o território popular com mais casos confirmados de coronavírus do Rio, somando 1.667 (até 6 de outubro), número certamente subestimado pela subnotificação (a cada dez moradores, apenas três foram testados ou diagnosticados). Para se ter uma ideia, o Painel Unificador Covid-19 Nas Favelas do Rio de Janeiro, feito a partir de relatos de moradores e lideranças comunitárias, revela que entre suspeitos e confirmados são mais de 14.651 casos e 1.941 mortes. (05/10)

Aumento na procura de atendimento

A saúde mental, no Brasil, é um direito de todos os cidadãos, assim como o acesso aos serviços públicos. Para os moradores de favelas, o anseio é atravessado por violências diversas – racial, de gênero, policial – e pela falta de acesso a prerrogativas básicas. Esses fatores também são importantes para o surgimento e agravamento de transtornos. “O aumento na procura por atendimento, muitas vezes por ansiedade ou depressão, é consequência do estresse a mais que a população da Maré enfrenta, muito ligado a vulnerabilidade social e econômica”, explica Carlos Cesar. 

O acompanhamento em saúde mental para os mais de 140 mil moradores da Maré se dá pelas equipes de Atenção Primária da Clínica da Família. São elas: Augusto Boal, Jeremias Moraes da Silva, Diniz Batista dos Santos e o Centro Municipal de Saúde Américo Veloso. Boa parte dos atendimentos presenciais foi suspensa devido à pandemia, e a assistência nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) precisou ser adaptada para o formato remoto. “A gente tem a questão do distanciamento social, de não poder estar tão próximo, o uso da máscara às vezes nesse contato interpessoal é uma dificuldade. O CAPS funciona muito no coletivo, e esse contato durante a pandemia fica prejudicado, assim como a menor frequência dos pacientes indo ao serviço”, afirma Carlos César.

Uma alternativa foi oferecer serviços psicológicos por meio de canais digitais, que são permitidos por lei. Foi feito atendimento por telefone e online, além da reabertura de enfermarias de covid-19 exclusivas para pacientes. No CAPS Magal, por exemplo, o atendimento pelo WhatsApp e os grupos de discussão foram fundamentais para o acompanhamento. Carlos César conta que a solução alcança a muitos, mas não a todos. “Em algumas situações mais frágeis, as pessoas não têm acesso fácil ao telefone e à internet”. Assim, nos casos mais graves, o atendimento presencial foi mantido.

As estratégias de cuidado vão além de uma consulta. Os profissionais de saúde têm a liberdade de circular para visitas domiciliares, tentando manter a proximidade com os pacientes. Mas é insuficiente. A demanda aumentou durante a pandemia, mas o número de psicólogos, não. A 14ª edição do Boletim “De Olho no Corona!”, que abordou os impactos da crise sanitária na saúde mental da população da Maré, mostra isso. A necessidade de investimentos para a ampliação de atendimento psiquiátrico e psicológico é urgente. Principalmente quando o Sistema Único de Saúde (SUS) é a única alternativa.

Neves aguarda há dois anos na fila do Sistema Nacional de Regulação (Sisreg) para receber atendimento psiquiátrico em uma das Clínicas da Maré. Depois do tratamento, ela tem o desejo de começar a Faculdade de Psicologia. Enquanto esse momento não chega, dedica seu tempo e energia, junto com a irmã Simone Laur, no projeto Mentes da Maré, que beneficia cerca de 200 moradores, com apoio psicológico online e gratuito, desde março de 2020. Além de um suporte e acompanhamento diário  de 10 profissionais de saúde voluntários. Como forma de conscientização, no Setembro Amarelo, o projeto marcou os postes da favela com cartazes sobre ansiedade.

As tarefas do trabalho voluntário são feitas com um notebook emprestado, dois celulares e pacotes de dados. “A gente está indo mesmo pelo interesse, metendo a cara. Queremos manter o projeto depois da pandemia, pois haverá crianças e mães que vão precisar de ajuda. Mais do que isso, os próprios pacientes estão pedindo roda de conversa, quando tudo voltar a abrir”, conta.

Psiquiatra Carlos César e seus dois pacientes, em frente ao CAPS ‘Magal’ de Manguinhos, que também atende moradores da Maré. (Foto: Gabriel Loiola)

Historicamente vulneráveis

Iniciativas locais surgem como apoio social neste período, em que fica mais exposto o pouco investimento em saúde mental, desde que equipes de saúde sofreram atrasos de salário e demissões, em 2019. “A gente não vê uma mudança do poder público para reestruturar esses serviços. O contexto da saúde mental em termos de atendimento e de serviço já era precarizado antes da pandemia e incapaz de dar conta”,  atesta Luna Arouca, assistente social e coordenadora do Espaço Normal, projeto da Redes da Maré referência no atendimento à população em situação de ruas e usuários de drogas na Maré. Nesse cenário difícil, a Telemedicina SAS Brasil fortaleceu seus atendimentos online e gratuitos aos moradores de periferias do Rio de Janeiro e São Paulo. Já são mais de 4 mil consultas.

Moradores da Maré usam o WhatsApp para realizar atendimento médico e psicológico, de forma online e gratuita. (Foto: Gabriel Loiola)

“Quando falamos em saúde mental na favela, o diagnóstico e tratamento são importantes, mas não somente eles. É promovendo cidadania que se produz enfrentamento”, prega Thiago Melício, professor e psicólogo, atuante na assistência em periferias. “As políticas públicas são capazes de ofertar uma melhor estrutura de enfrentamento, para que as pessoas possam acessar as políticas de assistência, de justiça e de educação. São elas que vão formar essa rede de cidadania”. Carlos César concorda. “A gente consegue provocar uma mobilização, para melhorar a vida das pessoas em torno da busca da realização dos sonhos e de sentidos para a vida”.

Só foi possível pensar em alternativas depois da reforma psiquiátrica, em que os pacientes tiveram leis e políticas de regulamentação para tratamento humanizado. Antes, as pessoas eram limitadas às suas condições. Com a luta antimanicomial, os pacientes são o foco.

O que não diminui o valor que devemos dar ao cuidado. O projeto Mentes da Maré, por exemplo, inspira a criação de iniciativas parecidas no Complexo do Alemão e na Rocinha. Dentre os desafios, Neves cita o preconceito. “Gente pobre tem problema mental sim, não é doença de rico. O trabalho exige mais da gente, a vida exige mais da gente. E a ideia é que eles [pacientes] fiquem confortáveis em saber que, perto deles, alguém que se importa”.

A prática da valorização da vida vem de profissionais da saúde, moradores e instituições locais, diariamente, ainda que com pouco investimento. Vem das iniciativas e atividades online, da distribuição de itens de higiene, cestas básicas e outras práticas de cuidado com cada mareense. Com as ruas cheias, a luta continua vindo desse mar de gente. 

Iniciativas gratuitas de apoio a saúde mental na Maré:

Telemedicina SAS Brasil – Atendimento psicológico online 

  • WhatsApp: 21 99272-0554

Espaço Normal – Espaço de Redução de Danos

  • Telefone: 21 3105-4767

Instituto Yoga na Maré – Aulas de yoga online

  • Instagram: @yoganamare

Mentes da Maré – Atendimento psicológico online 

  • WhatsApp: 21 98635-7575
Thaís Cavalcante
Jornalista formada pela Centro Universitário Carioca , nascida e criada na Maré. É repórter do Maré de Notícias e co-fundadora do Portal Favela em Pauta. Passou por veículos como “O Cidadão”, “Voz das Comunidades” e “The Guardian”. Vencedora do Prêmio Ações Locais pela Secretaria Municipal de Cultura em 2015. Tem como paixão, contar histórias sobre as favelas.

Ronda Coronavírus: Ministério da Saúde inicia campanha de multivacinação

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A expectativa é vacinar 95% das crianças brasileiras contra a poliomielite

Por Andressa Cabral em 05/10/2020 às 20h51

Enquanto pesquisadores continuam no desenvolvimento da vacina da covid-19, começa nesta segunda-feira (05) a campanha de multivacinação e vacinação de poliomielite. O objetivo é imunizar e atualizar as vacinações de crianças e adolescentes de 6 meses a 15 anos, do dia 05 ao dia 30 de outubro. Com 11,2 milhões de crianças no país, a meta do Governo é imunizar 95% delas contra a poliomielite durante a campanha. Na cidade do Rio, as vacinas estarão disponíveis das 8h às 17h, nas Unidades da Atenção Primária à Saúde.

No calendário das crianças de 0 a 10 anos, 14 vacinas fazem parte da campanha: BCG, Hepatite B, Penta (difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e poliomielite), Pólio inativada, Pólio oral, Rotavírus, Pneumo 10, Meningo C, Febre Amarela, Tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola), Tetra viral (sarampo, caxumba, rubéola e varicela), DTP (tríplice bacteriana), Hepatite A e Varicela. Para os adolescentes, é o momento de se vacinar e de fazer o reforço de imunizações tomadas na infância. São elas: Hepatite B, Difteria e tétano adulto (DTPa), Febre Amarela, HPV quadrivalente, Meningocócica ACWY, Tríplice viral e Varicela.

Além dessas vacinas, também está disponível a vacina de sarampo na faixa etária de 6 meses até 59 anos. Dessa forma, os adultos que forem levar as crianças para se vacinar podem aproveitar a ida às unidades de saúde para também se imunizar.

Testes de possível imunizador contra a covid-19

Também nesta segunda-feira (05), 1000 profissionais da área da saúde que atuam no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) e no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) serão vacinados com a vacina BCG, medicamento que está em fase de testes e que pode ser um possível imunizador contra o coronavírus. Após a imunização, esses profissionais dos hospitais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), serão monitorados de seis meses a um ano para coleta de dados.

A iniciativa faz parte da RedeVírus, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e a Fiocruz também está desenvolvendo ensaios clínicos com a BCG contra a covid-19. A vacina, entretanto, não é uma substituta para a vacina contra a covid-19, mas uma solução provisória que pode ajudar no combate da doença enquanto a vacina oficial não fica pronta. 

Boletim Covid-19

Pelo quinto dia seguido, o estado do Rio tem tendência de queda na média móvel de mortes. Segundo o boletim divulgado pela Secretaria de Estado de Saúde (SES), o estado registrou 18.780 mortes e 273.338 casos confirmados. Foram 11 vítimas e 1.637 pessoas infectadas nas últimas 24h. O Rio de Janeiro é o quarto estado do país em números de casos, atrás de São Paulo, Bahia e Minas Gerais. Ainda segundo a SES,  a cidade do Rio registrou 107.643 casos e 11.118 mortes por covid-19 na noite desta segunda-feira (05). Até o fechamento, o painel da Prefeitura não tinha atualizado os dados e disponibilizados os números da Maré.

Nas últimas 24h foram mais 323 mortes e 11.946 casos de coronavírus no país, fazendo com que fiquemos mais próximos dos 5 milhões de casos. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, o país tem até o momento 146.675 mortes e 4.927.235 casos de covid-19. De todos os casos, São Paulo é o estado com o maior número de casos, ultrapassando no domingo (04) a marca de 1 milhão de pessoas contaminadas. 

Mesmo com o número, o governador de São Paulo, João Doria, determinou o retorno opcional às aulas presenciais da rede pública de ensino a partir do dia 07 de outubro.

Mamografia gratuita

O Rio Imagem oferece gratuitamente ao longo do mês de outubro o exame de mamografia para mulheres moradoras do estado do Rio na faixa etária de 50 a 69 anos. A iniciativa faz parte da campanha do Outubro Rosa, de prevenção ao câncer de mama. As interessadas em realizar o exame devem comparecer na Avenida Presidente Vargas, nº 1.733, de segunda à sábado, de 8h a 17h, com encaminhamento de hospital público, não precisando de agendamento. 

Dia Nacional do Agente Comunitário de Saúde

Dia 04 de outubro é dia de celebrar e exaltar o trabalho dos agentes comunitários de saúde, profissionais que trabalham diariamente em um programa que há mais de 30 anos mantém a população próxima de seus direitos básicos de saúde. Confira aqui sobre o trabalho desses profissionais.

Colabora nesta Maré de Notícias

Começou hoje a divulgação aqui no nosso portal e também no site do Projeto Colabora as cinco reportagens vencedoras do Edital que ofereceu 3 mil reais em bolsa para jovens jornalistas da Maré. Conheça a reportagem de Matheus Luis Chagas e Eliane Lopes sobre os desafios da educação à distância na Maré clicando aqui. Também já está disponível a matéria de Mylene Fortunato sobre as dificuldades encontradas para o sustento da família por mulheres negras mareenses.

Pandemia acentua dificuldades para mulheres negras da Maré

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Coronavírus atinge duramente alternativas de emprego e renda, e só muita mobilização consegue amenizar o problema

Por Myllenne Fortunato 05/10/2020 às 18h15

Esse texto é uma iniciativa #Colabora nessa Maré de Notícias, parceria entre o Projeto #Colabora e o Maré de Notícias.

As medidas determinadas pelas autoridades para tentar conter a pandemia do coronavírus no Brasil provocaram impactos dramáticos em toda a sociedade – mas, para quem vive nas favelas e periferias foi ainda pior. Muitas pessoas perderam empregos, empresas fecharam as portas, trabalhadoras domésticas ficaram desamparados, ambulantes viram seus clientes desaparecerem, microempreendedores foram privados de suas fontes de renda. O desemprego atingiu muitas famílias, porém chegou pesado, especialmente, às mais pobres. 

O grupo mais afetado foi o que mais sofre no Brasil, desde (quase) sempre): as mulheres negras, que representam 28% da população . Elas têm 50% mais probabilidade de ficarem desempregadas, na comparação com outros grupos, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). A advogada, professora universitária e gestora acadêmica Tatiane Duarte, 45 anos, explica que o isolamento social não acontece da mesma forma para todos. “No trabalho doméstico, muitos foram dispensados ou obrigados a ficar permanentemente no emprego, confinados com os patrões”, observa. 

A população negra, historicamente, é a mais afetada pelo desemprego – cenário que se agrava numa crise profunda como a atual. “Aí, a gente percebe que, além de o problema ser maior numa reação em cadeia, essas mulheres vão impactar suas famílias, na quais elas normalmente são provedoras”, atesta Tatiane.

Mulheres negras têm maior probabilidade ao desemprego em meio a Pandemia. Foto: Myllenne Fortunato

A ambulante Maria Luiza da Silva Neta, 27 anos, mãe de Malluh, 11, se viu sem chão, ao saber que não teria mais como sustentar a filha após o fechamento do Camelódromo no Centro do Rio, onde trabalhar. “Fiz investimento para as vendas no Carnaval, mas foi o último momento em que consegui alguma coisa”, conta a moradora da Rubens Vaz, angustiada com despesas como o aluguel da casa.

O jeito foi tentar outras formas de trabalho e, a partir da sugestão de uma amiga, Maria Luiza montou um bazar de roupas infantis em casa, com transações online. “Em uma noite, montei o negócio e pedi a opinião de algumas freguesas. Não esperava retorno tão grande”, admira-se a, agora, dona do bazar da Malluh.

A história de Maria Luiza serve de exceção para confirmar uma regra triste. Muitas trabalhadoras não conseguiram completar a transição e precisam de apoio. Diante da demanda crescente, ONG´s e coletivos até ultrapassam seu escopo, inaugurando outras atividades. Muitas foram as que fizeram doações de alimentos e produtos de higiene para os moradores da Maré. 

Também moradora da Rubem Vaz, a confeiteira Camila Marques da Silva, 29 anos, recebeu cesta básica da Frente de Mobilização. “Ajudou muito, porque com a pandemia, as encomendas de bolo praticamente zeraram”, conta ela. Uma guinada cruel na vida da confeiteira que nunca ficou sem trabalho e nos fins de semana pré-pandemia, fazia no mínimo 10 bolos por encomenda.

Por histórias semelhantes à de Camila se explica o valor de iniciativas como a Redes da Maré, que, ainda no início da pandemia, criou a Campanha Maré Diz Não ao Coronavírus com diversas frentes de frentes de trabalho. Uma delas foi o projeto Tecendo Cuidados e Máscaras, que contratou costureiras da comunidade. 

Uandergina dos Santos, costureira do projeto Tecendo máscaras e cuidados

Uandergina dos Santos Silva, a Gina, foi uma das 54 profissionais recrutadas para o trabalho. Moradora da Nova Holanda há 57 anos, aprendeu a costurar com a mãe e criou suas três filhas sustentada pelo ofício. Como complemento da aposentadoria, prestava serviços para uma fábrica na Vila Cosmos, Zona Oeste do Rio, mas, hipertensa e diabética, precisou se desligar para cumprir o isolamento social. “Quando começou a onda da covid-19 em outros países, fiquei apavorada. Em março, comecei a quarentena e parei de trabalhar. Até que minha filha ficou sabendo do grupo de costureiras que estavam formando e me indicou. Foi a solução”, festeja.

Entre iniciativas individuais, auxílios variados e mobilizações comunitárias, as mulheres da Maré tentam virar o jogo imposto pelo Brasil, que o coronavírus só fez agravar. Ela vão vencer.

Myllenne Fortunato é formada em Jornalismo pela Faculdade Pinheiro Guimarães. Cria da Maré, mora desde que nasceu no Parque União.

Na Maré seca dos anos 80, mulheres de Nova Holanda se organizaram na luta por direitos

Em tempos de precarização do saneamento e de avanço da covid-19, muito se fala sobre a ausência do poder público nas favelas garantindo serviços e saúde. Mas e sobre as estruturas de saneamento que já temos? Na busca por entender o processo de chegada da água no Conjunto de Favelas da Maré, nos deparamos com a história de mulheres fortes e organizadas, que 40 anos depois ainda são reconhecidas pelas conquistas da Chapa Rosa.

Foto da acima: Douglas Lopes
Reportagem: Breno Souza e Ruth Osório
Artes: Nícolas Noel
Edição: Fred Di Giacomo

por data_labe em 05/10/2020 às 11h34

Esta é a primeira reportagem de uma série sobre o direito à água na Maré. Uma parceria entre o data_labe e o Maré de Notícias.

“Quando cheguei aqui na Maré, por volta dos anos de 1980, tudo era muito precário e saneamento básico não tinha nenhum. Não tinha calçamento. Quando chovia nós tínhamos que ir daqui até na Avenida Brasil com um sapato pra chegar lá e calçar outro sapato de tanta lama que tinha aqui nesse local. Era tudo muito difícil e muito precário. Logo assim que tava no início da Chapa Rosa nós começamos a fazer movimentos na luta para conseguir água, esgoto, luz e tudo mais que nao tinha aqui”. 

Este relato é da Dona Helena Dias Vicente, de 70 anos, hoje aposentada e também uma das diretoras da Redes da Maré. Figura ilustre na luta pelo acesso à água potável na favela Nova Holanda, Helena foi integrante da Chapa Rosa, um coletivo só de mulheres da Maré engajadas na luta por uma vida mais digna para os moradores. A Chapa Rosa foi a primeira chapa eleita, por eleições diretas, para a Associações de Moradores da Nova Holanda, em 1984, num momento marcado pela participação de todos e que mudou completamente os rumos da favela.

Nessa época, Nova Holanda ainda era favela de barracos, construída pela prefeitura para ser um centro de habitação provisório, reunindo moradores removidos das favelas do Pinto e do Esqueleto. Esses moradores eram enviados para Nova Holanda até adquirirem os “hábitos necessários para sair da favela”. “Era um espécie de Minha casa, Minha vida mas com um processo pedagógico forte para incutir valores. Esse processo de reeducação de favelas que é sempre uma prática do governo: achar que pobres precisam ser reeducados dentro de um modelo burguês de práticas sociais”, conta Monique Carvalho, que escreveu uma dissertação sobre as memória e mobilizações da Nova Holanda, em 2006. 

// FOTOGRAFIA: Mobilização pré eleição para liderança da Associação de Moradores de Nova Holanda. Contribuições de pesquisa: Edson (Museu NUMIM - Redes de Desenvolvimento da Maré).
Chapa Rosa de porta em porta.
Contribuições de pesquisa: Edson Diniz (NUMIM – Redes da Maré).

Mulheres na linha de frente 

“Na época, a Eliana [que hoje é uma das diretoras da Redes da Maré] estava no primeiro mandato da Chapa Rosa e nós começamos a fazer os mutirões para conseguir água, para conseguir saneamento básico e fazíamos as reuniões na Escola Nova Holanda, onde a gente conseguia colocar numa noite mais de 200 pessoas e dali saiam representantes de cada rua, já com a ideia de ir lá na Cedae, de ir na prefeitura, de ir aonde pudéssemos para poder conseguir que eles viessem colocar água. Mas tudo era muito difícil. Quando começou o saneamento nos dias de mutirões, dias de domingo, os homens ficavam cavando as ruas e nós íamos levar lanche, levar água pro pessoal que estava cavando a rua pra poder trazer água. Porque a água só tinha lá perto da Avenida Brasil, onde tinha encanamento, nas ruas daqui não tinha nenhuma gota de água. A chapa sempre teve uma atuação muito forte, com a Eliana na Frente, ela tinha muito acesso às autoridades, sempre buscando, sempre na frente e nós as outras mulheres sempre apoiando e ajudando. Eu, Penha, Roseli, Dona Dalva, todas nós sempre apoiando ela nessa luta.”, conta Dona Helena e acrescenta:

Posse de Eliana, liderança das mulheres na Chapa Rosa. Contribuições de pesquisa: Edson (Museu NUMIM - Redes de Desenvolvimento da Maré).
Mulheres da Chapa Rosa em ação.
Contribuições de pesquisa: Edson Diniz (NUMIM – Redes da Maré).

“A Eliana foi a primeira presidente mulher de uma associação de moradores aqui no Rio de Janeiro, então até por esse fato [de ser mulher], muita coisa ela conseguia falando com as autoridades, muitas coisas a gente conseguiu pelo simples fato de ser uma mulher na linha de frente. Eu não posso esquecer de falar da Maria Amélia Belfort, que também foi uma grande guerreira nos ajudando. Ela foi uma das iniciadoras da creche, ficava com as crianças para as mães irem trabalhar, o que deu origem a creche comunitária. São muitas coisas que vamos nos lembrando, onde podemos  ver um pouco da história vindo à tona”. 

Atuação da Chapa Rosa: é possível ver ao centro Eliana, liderança local.
Créditos: Redes da Maré. Contribuições de pesquisa: Francisco Valdean (Museu MIIM).

Apesar do acesso à água afetar toda população da Maré naquela época, é muito simbólico que tenham sido mulheres as protagonistas dessa luta. A gente sabe que o acesso aos serviços de saneamento está longe de ser igual para todos, mas com mostra a reportagem da Agência Brasil, as mulheres são historicamente responsáveis por buscar água e manter a higiene do lar. Quanto pior o saneamento, mais sobrecarregadas e vulneráveis elas estão. Isso sem contar o risco de sofrerem violência sexual (durante o trajeto na busca por água), e das doenças.

Como apontado no trabalho Mulheres & Saneamento, os impactos da falta de saneamento vão para além das doenças, diminuindo também o potencial das mulheres para estudar e trabalhar.  Só em 2016, 12 milhões de brasileiras não tinham sequer o acesso a rede de distribuição de água. Ou seja, 11% da mulheres brasileiras estavam sujeitas a violência, doenças e tendo que que se mobilizar para conseguir acessar um dos seus direitos mais básicos: água. Se olharmos para os dados de acesso à coleta de esgoto, a situação é ainda mais preocupante: 26,9 de mulheres residem em moradias sem acesso, o que representa 25% das mulheres brasileiras. E ainda mais preocupante, dados do SUS 2013 apontam o registro de 353,5 mil internação e quase 5 mil óbitos de mulheres por infecções gastrointestinais ligadas ao saneamento básico.

Das lutas por direito ao cenário atual

“Os moradores viam a atuação da Chapa Rosa com bons olhos, porque todos precisavam de tudo. Hoje as coisas são mais difíceis porque a maioria dos moradores antigos [que estavam na luta por água] morreram. E os outros foram chegando e já encontrando tudo pronto”, diz Helena.

Puxadinhos de água são marcas registradas nas favelas do Rio de Janeiro. Isso porque os moradores vão erguendo suas casas e vão utilizando de técnicas cada vez mais criativas para levar água aos cômodos, o que é uma necessidade básica para qualquer ser humano. Em dias de muito calor todo mundo quer se refrescar, os moradores instalam e ligam os chuveirões e montam piscinas nas ruas para terem acesso ao lazer que lhes é negado. O não desperdício é um dever principalmente das companhias de abastecimento,  isso porque é comum observar em favelas o desperdício de água limpa em tubulações principais rompidas ou em péssimo estado de conservação. De acordo com o Sistema Nacional de Informação Sobre Saneamento (SNIS) de 2018, a Cedae apresentou mais de 30% de perdas na distribuição de água, só na cidade do Rio a perda atinge 29,5%.

Enquanto desperdícios ocorrem, à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) divulgou em abril deste ano relatório com 550 denúncias de falta de água em favelas e bairros da Cidade do Rio e Região Metropolitana. Das 434 denúncias diretas, 11 denúncias são de comunidades do Complexo da Maré como Vila do Pinheiro, Vila do João, Parque Rubens Vaz e Nova Holanda. De acordo com o Censo Populacional da Maré lançado em 2019, 99,2% dos 47.758 domicílios do território são abastecidos com água canalizada dentro ou fora de casa. Dos 453 domicílios (0,3%) que não possuem canalização à maior parte estão no Parque Rubens Vaz, Baixa do Sapateiro, Parque Maré, Nova Holanda, Vila dos Pinheiros e Parque União. 

Na favela a luta nunca termina

A precarização do saneamento está matando e isso não é novidade, principalmente para as mulheres. Olhar para a nossa história é entender que, na favela, a concepção do direito não perpassa somente um caminho legal. O morador sabe que, se ele não lutar, ele não vai ter acesso. Monique traz esse discurso ao longo da vida:  “ainda que as pessoas não acordem e falem “hoje eu vou fazer um mutirão, eu vou lutar contra o capitalismo”, o morador tá precisando de uma coisa urgente. Ele não conta com o Estado, ele sabe que o Estado está muito longe. As formas como eles reagem à exploração do Estado é a organização, coletiva ou individual. Isso é desde da construção do Estado Brasileiro. Se a gente pensar na formação do Estado Nacional, para olhar para história do país, a gente vê que é isso: as pessoas se unindo para conquistar alguma coisa, para lutar por alguma coisa, só que isso é sempre muito apagado né. Essa história nunca é contada”.

Material de comunicação da Chapa Rosa do início dos anos 90.
Contribuições de pesquisa: Edson Diniz (NUMIM – Redes da Maré).
Chapa Rosa, de novo na luta!
Contribuições de pesquisa: Edson Diniz (NUMIM – Redes da Maré).

E essas são histórias de lutas que atravessam gerações: “eu acho que a Maré ela tem a mobilização comunitária como marca. A coletividade, a ideia de você trabalhar junto. Eu acho que isso é uma característica das favelas, dessa união. E aí eu arrisco a dizer, como hipótese, que isso é fruto da história, da memória, porque os avós lutaram, os pais lutaram. Ainda que a história não seja contada recorrentemente, mas tem uma memória que ela é ativada ali”, conclui Monique.

A reflexão é muito importante para todos nós. Ainda que estejamos o tempo todo gritando e lutando por melhores condições de vida e saneamento, é importante que façamos o exercício de pensar nas duras conquistas de grandes tubulações para o território, permitindo aos moradores acessar água potável sem precisar ir de barco até a Ilha do Fundão ou a pé até a Avenida Brasil. As lutas da Chapa Rosa são motivo de orgulho para Helena: “olhando assim para trás hoje eu me sinto orgulhosa de ver o que a gente tem hoje e saber que tudo isso começou com a Chapa Rosa, a própria Redes da Maré é a origem da Chapa Rosa. É um orgulho ver, agora, nessa pandemia, tantas buscas e tantas ajudas, então, sinto muito orgulho de ver que a Chapa Rosa não morreu.”

Dona Helena Edir em das ruas da Nova Holanda, onde mora.
Foto: Kamila Camillo


Longo e penoso caminho da educação à distância na Maré

 Falta de internet ou mesmo de um equipamento para acessar a plataforma de estudo estão entre os muitos problemas dos estudantes durante a pandemia

Por Elaine Lopes e Matheus Luiz Chagas em 05/10/2020 às 11h12

Esse texto é uma iniciativa #Colabora nessa Maré de Notícias, parceria entre o Projeto #Colabora e o Maré de Notícias.

A pandemia inviabilizou o ensino presencial, obrigando as escolas a buscar um novo modelo – e a desigualdade se mostrou em todo seu vigor, ampliando o abismo entre ricos e pobres no Brasil. Os vários dispositivos que possibilitam aulas remotas, em segurança sanitária – celular, notebook, tablet, computadores – não estão ao alcance da maioria dos moradores de favelas, carência que é só o início do problema. 

Basta ver o que acontece na Maré, maior conjunto de favelas do Rio. Maior do que 93% dos municípios brasileiros, apenas 42,4% dos 140 mil moradores têm computador, e 36,7% acessam a internet, segundo o Censo Maré, de 2013. Em outros bairros da região metropolitana da capital fluminense, 62,2% dos moradores possuem computador, e a internet chega à casa de 56,1% das pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, feita em 2013. Difícil garantir ensino remoto universal em tal cenário.

Moradora da Vila do João, uma das 16 comunidades da Maré, Ingrid Santos, mãe de duas crianças – Manuella, 8 anos, e João Marcos, 5 – sofre com os filhos e a dificuldade para acompanhar as aulas. “Tem ocasião que a internet fica dois, três dias sem funcionar; atrasa os exercícios, porque eles mandam pelo Facebook da escola diariamente”, narra ela. A falta de dispositivos também tem sido um problema. Com um único celular na casa, as crianças precisam esperar a mãe voltar do trabalho. Além disso, Ingrid não se sente em condições de ajudar nas aulas dos filhos, por ter abandonado a escola há muito tempo.

Outros desconhecimentos de pais e alunos são complicadores – muitos desconhecem as plataformas remotas por onde as aulas acontecem. Apesar de a Secretaria Municipal de Educação (SME) ter lançado um aplicativo durante a pandemia, poucos têm intimidade com esta tecnologia. A plataforma contém conteúdos direcionados para cada ano de escolaridade – da Educação Infantil à Educação de Jovens e Adultos -, e os estudantes não têm gastos com o consumo de dados para conexão. Desde o lançamento do aplicativo, foram registrados, pela Prefeitura, 6,1 milhões de acessos, número aparentemente alto, mas, se relacionado com os 641.141 estudantes da rede municipal, pode ser pouco. Se pensarmos que os estudantes precisam estar conectados, pelo menos, quatro vezes na semana, nestes 6 meses de pandemia, o volume deveria ser, ao menos, dez vezes maior. Nenhuma formação foi oferecida a pais e alunos para o uso da tecnologia.

Deuzilene Reis, conhecida por Deusa, não sabia das plataformas oferecidas pela Prefeitura. Ao ser informada pelos repórteres, tentou entrar, mas não conseguiu.  “Tenho muita dificuldade, meu esposo, que tem mais facilidade, perdeu um tempão e não conseguiu ativar o aplicativo”, relata a moradora do Conjunto Esperança. Difícil para ela e para o filho, Allan Reis Ribeiro, aluno do 6º ano da Escola Municipal Ruy Barbosa, em Bonsucesso, vizinho à Maré. Deusa acrescenta outra dificuldade. “Tem exercício que ele nunca viu, então, não sabe fazer”. Para não deixar o filho ocioso, ela formula algumas atividades e indica aulas no YouTube

Campanha que ajudou cursos pré-vestibulares de todo país

Para quem não consegue acesso às plataformas, a alternativa é utilizar as apostilas impressas nas escolas, mas é necessário agendamento prévio na direção das instituições, ou aguardar a distribuição do material ser feita pela Associação de Moradores. Ayla Macedo, aluna da Escola Municipal Ruy Barbosa, optou pelas apostilas, que imprimiu em casa por não saber onde poderia retirar o material. A mãe dela, Poliana Sousa, mesmo tendo impresso os conteúdos pedagógicos para filha, preferia que as aulas fossem remotas, o que facilitaria a rotina escolar. A escolha de Poliana só é possível porque ela tem boa conexão de internet e vários dispositivos em casa, uma exceção na na comunidade. 

Ayla estudando com as apostilas impressas em casa – Foto: Elaine Lopes

Localizado também na Maré, na Vila do Pinheiro, o CIEP Ministro Gustavo Capanema oferece aulas pelo Facebook para o Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos. “Estamos fazendo postagens para a comunidade escolar e apoiando nossos alunos e responsáveis sobre qualquer dúvida”, diz Gisleide Gonçalves, diretora da escola desde 2016. Mesmo estando em uma plataforma popular na Maré, a adesão é baixa: 22% dos alunos do Ensino Fundamental e apenas 3% dos alunos do PEJA acessaram o serviço. A diretora atribui o problema à falta de acesso à internet. 

A presença dos pais se torna imprescindível no ensino à distância. Contudo é uma regalia que poucos conseguem oferecer, porque a maioria trabalha fora ou cuida dos muitos afazeres domésticos. 

Desafios do Enem na Maré

 Como acontece no Ensino Fundamental e na Alfabetização, a pandemia afetou também os estudos de muitos mareenses que vão prestar o Enem 2020. Ainda não há estudos que possam mostrar os impactos do ensino remoto nas favelas, porém, a PNAD Contínua, de 2019, feita pelo IBGE, informa que mais de 20% dos estudantes deixam as escolas em alguma etapa da Educação Básica no Brasil, e a tendência é o número aumentar no contexto atual. Os dados apontam também que 71,1% das evasões são de jovens negros e pardos. Os motivos são diversos:  jovens que precisam trabalhar, gravidez na adolescência e o próprio desalento. 

A professora de História Daniele Figueiredo faz parte do Curso comunitário UniFavela, que, desde 2018, prepara jovens e adultos da Maré para o vestibular. Para a professora, as falhas do ensino à distância ocorrem porque não se leva em conta a realidade dos estudantes de baixa renda: “O ensino remoto é algo novo e, por isso, tem muitas falhas, tanto por parte dos governos quanto do sistema educacional. O governo não dá nenhuma assistência. Prefere fugir da realidade como mostra a própria campanha do Enem 2020”, critica a professora.

O curso, assim como outros pré-vestibulares e escolas do Brasil, aferiu redução na frequência. O UniFavela tinha aulas presenciais de segunda a sexta-feira e aulões especiais aos sábados. “Muitos não estão conseguindo acessar as plataformas, são mães que tentam conciliar os estudos, têm os alunos que chegam cansados do trabalho e ainda precisam ligar o computador e o smartphone para assistir à aula”, lamenta Daniele.

Desde sua fundação, o curso tem como objetivo disseminar o ensino popular pela Maré. Uma das iniciativas foi o Unifacast, podcast produzido pelos próprios integrantes do curso para aprofundar debates em sala de aula e trazer reflexões sobre a educação popular. Recentemente, se juntaram ao projeto 4g para Estudar, que reuniu outros 30 pré-vestibulares comunitários no país. A cada R$ 20 doados na campanha, dois chips de internet eram garantidos para os alunos. Ao todo, R$ 600 mil foram arrecadados, e mais de 4 mil estudantes beneficiados em todo o Brasil. O curso conseguiu a doação de dois tablets para alunos que não tinham acesso às aulas. Além da campanha, foram distribuídas apostilas e folhas de redação. 

Luizy Reis prestará o Enem ainda indecisa entre História e Design, mas com a certeza de querer estudar em uma universidade pública. Com a pandemia, está passando por dificuldades para planejar os estudos. O pré-vestibular comunitário onde estuda passou a transmitir aulas remotas. “É muito diferente quando você tem uma rotina de estudo e do nada precisa se virar para compreender a matéria sozinha em casa, onde há pessoas que podem atrapalhar, e isso me faz perder o foco”, lamenta. Mas ter acesso à internet em casa ajuda. “Sigo canais que trazem resumos de matérias que vão cair no Enem. Procuro explicações para os conteúdos que preciso estudar, mas reconheço que nem todos têm esse privilégio de ter conexão em casa, graças a ela consegui manter essa rotina” comenta.

Enquanto Luizy, que estuda num curso comunitário, reconhece o privilégio do acesso à internet, Letícia Fernandes, moradora da Vila dos Pinheiros e estudante do Colégio Estadual Olga Benário, luta para conseguir o material didático. “As apostilas que seriam para ajudar na nossa preparação chegam atrasadas. Apenas recebi os materiais referentes ao primeiro bimestre, mas já estamos no terceiro. Eu me sinto despreparada em relação aos demais, por não ter acesso aos conteúdos”, constata.

Enquanto se discute o retorno às salas de aula, fala-se cada vez menos em medidas para amenizar o impacto das falhas do ensino remoto. Lições de desigualdade impostas aos pobres do Brasil.

Alternativas para brincar na pandemia

Na Nova Maré, crianças revelam criatividade para brincar e manter ciclos sociais

Por Pâmela Carvalho em 05/10/2020 às 10h30

Edição: Elena Wesley 
Fotos: Pâmela Carvalho e Douglas Lopes

Essa reportagem foi produzida com o apoio da Énois Laboratório de Jornalismo, por meio do projeto Jornalismo e Território.  

“A gente sente falta do banho de piscina!”. O desabafo de Luiz Felipe da Silva, de sete anos, exemplifica um dos efeitos da pandemia na Maré. A necessidade do isolamento social impediu que milhares de crianças e adolescentes usufruam plenamente de seu principal espaço de convívio: a rua. Sem poder brincar em grupo nem frequentar espaços de lazer e cultura como a Lona da Maré e a Vila Olímpica, os pequenos reinventam há mais de seis meses formas de garantir sua diversão em tempos tão difíceis.

Banho de piscina agitava Lona da Maré antes da pandemia. (Foto: Douglas Lopes)

A Vila Olímpica da Maré e a Lona Cultural Municipal Herbert Vianna são os únicos equipamentos públicos de lazer na favela. Na Lona, os banhos de piscina e mangueira refrescavam os dias quentes, e na Vila Olímpica, a piscina era utilizada para atividades como hidroginástica, natação e banho livre, aos finais de semana. Com a pandemia, tudo parou. 

A falta de incentivo público em espaços para lazer, esporte e cultura é um problema histórico e fez com que a população criasse suas próprias alternativas. As piscinas de plástico instaladas nas ruas são uma delas. A prática que reúne vizinhos de todas as idades já foi alvo de fake news pela imprensa tradicional, numa publicação que associava a aquisição das piscinas ao comércio ilegal de drogas. 

Enquanto os banhos de piscina são possíveis apenas de forma privada nas lajes, quintais ou ruas, crianças como Luiz Felipe criam outras opções de lazer. Junto à linha e ao papel, máscara e álcool em gel se tornaram indispensáveis para brincadeiras como “garrafão”, “pique-esconde” e soltar pipa. Jogos que não exigem muito contato também ganharam preferência. Adolescentes como Eduardo Melo dos Santos improvisam mesas de ping pong, com tábua e cabo de vassouras, para evitar o contato físico e seguir as medidas de proteção.

Eduardo e Pablo Caique jogando ping-pong. (Foto: Pâmela Carvalho)

“Eu queria voltar pra escola”

Não foi apenas o fechamento dos espaços culturais que prejudicou o lazer das crianças da Nova Maré. Eloá Cristina da Silva conta que uma de suas brincadeiras favoritas é criar formas e objetos com massa de modelar, porém a estudante de sete anos tem acesso ao material somente na escola. “Eu queria voltar pra escola pra ver meus amigos e poder brincar, mas ainda tem o Corona, né…”. Assim como todas as unidades da rede pública de educação do Rio, as 44 escolas da Maré estão fechadas desde o dia 16 de março.  

A Nova Maré, também conhecida como “Casinhas da Baixa”, é formada por um conjunto de cerca de 4,5 mil casas, arquitetado pelo Programa Morar Sem Risco, da Secretaria Municipal de Habitação. De acordo com o Censo Maré de 2013, crianças e jovens formam a maioria da população de aproximadamente 13 mil habitantes. A faixa etária de zero a 14 anos é responsável por 32,8% do total, e os moradores de 15 a 29 anos por 29,2%. O perfil aponta o quanto a Nova Maré deveria receber incentivos do poder público voltados à garantia de espaços e condições ideais para que crianças e jovens desenvolvam sua sociabilidade, redes de convívio e brincadeiras. O “brincar” é um direito de toda criança e jovem. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê o direito a “brincar, praticar esportes e divertir-se”. Mas, na Nova Maré, o que é assegurado por lei não é percebido pela população na prática.

Ilustração de Jamilly Vitória da Silva

“Agora a gente brinca em casa mesmo”

Em meio à suspensão de atividades dos escassos espaços de lazer disponíveis, restou à Jamilly Vitória, de oito anos, brincar mais em casa. Desenho, recursos audiovisuais como TV e vídeos no celular têm ajudado a divertir a quarentena. Mas conter os pequenos em casa não tem sido tarefa fácil. Enquanto Carlos Henrique da Silva, de quatro anos, experimenta um formato de corrida baseado em “pular do sofá para o chão”, sua mãe Hamana Gerônimo e sua tia Rhayane Silva se desdobram com a organização e manutenção da casa.

Frequentadora assídua da Lona da Maré, Luciana Chaves também adaptou suas principais atividades de lazer para o ambiente doméstico. A jovem de 21 anos tem revisitado brincadeiras com baralho e jogos que estimulam o raciocínio lógico. “O baralho é bom porque ajuda a pensar e a passar o tempo.”

Ilustração de Luciana Chaves, sobre suas principais atividades de lazer durante a pandemia.

“Meu squad no Free Fire é meu squad no futebol” 

Num período de poucos recursos, a criatividade fala ainda mais alto. Foi assim que Eduardo Melo dos Santos criou uma estratégia para estar perto dos amigos, ainda que à distância. Dudu, como é conhecido, recruta o mesmo grupo de amigos que costumava jogar futebol na rua onde moram ou na Vila Olímpica da Maré para jogar Free Fire, um jogo de ação e aventura muito consumido por essa faixa etária.

Moisés Miguel Silva e Kauã da Silva Santos, 16 anos, também recorrem ao celular. Ambos têm participado de partidas virtuais e consumido vídeos e tutoriais para se aperfeiçoarem nos jogos. Porém, a internet na Nova Maré não ajuda. Sinal fraco, pouca área de cobertura e pacotes de dados restritos diminuem as possibilidades de lazer virtual. Para driblar as dificuldades de conexão, os jovens dividem a internet, pedem a senha do Wi-fi de vizinhos, comércios locais e espaços de uso coletivo. 

Moisés e Kauã jogando Free Fire (Foto: Pâmela Carvalho)

Em seus estudos sobre brincadeiras afrobrasileiras tradicionais, o pesquisador e filósofo Renato Nogueira afirma que em aldeias indígenas, quilombos e outros povoados tradicionais no Brasil e no mundo, a brincadeira é vista como formadora do ser social. A identidade é construída pelo espaço coletivo, que alimenta o brincar e vice-versa. E é isso o que se percebe na favela, onde o provérbio hauçá, “para educar uma criança, todo o povo é preciso” é praticado no cotidiano. Na Nova Maré, as crianças e suas famílias têm se empenhado no processo de educar coletivamente através das brincadeiras, sobretudo em tempos adversos. Falta ao poder público se inspirar nesta inventividade e também buscar a garantia desse direito. 

Lona da Maré, um dos espaços de encontro e brincadeira para as crianças na Nova Maré, antes da pandemia. (Foto: Douglas Lopes)