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Romper o signo da guerra urbana

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POR ELIANA SOUSA SILVA / ITAMAR SILVA / MARCELO BURGOS

Para o Jornal O Globo em 24/08/2017

O Rio vive, há décadas, sob o signo da “guerra urbana”. Tal representação, contudo, mais mascara do que explica uma realidade bem mais complexa
do que sua pretensa redução a uma luta entre forças do bem contra o mal. Como se sabe, a configuração de grupos armados de traficantes e milícias
em favelas e territórios populares está historicamente associada a formas perversas de articulação com agentes do Estado, tornando tudo bem mais difícil de ser compreendido.

Também é verdade que o signo da “guerra” vem construindo uma configuração homóloga a ela, definindo comportamentos que contribuem para confirmar a sua existência. A isso se segue uma corrida armamentista, que desperta gulosos interesses do tráfico de armas pela “guerra do Rio”. O resultado desse encadeamento é o absurdo aumento da letalidade e do sofrimento entre os próprios policiais e suas famílias, e entre os moradores das favelas e periferias da metrópole, vítimas preferenciais dessa lógica funesta.

As UPPs representaram uma trégua parcial nesse processo, sobretudo para os territórios populares onde foram instaladas, mas nunca foram encaradas pelos moradores das favelas como uma solução sustentável. Conforme pesquisas no período de maior êxito da experiência das UPPs, eles a viam como positiva, mas muito mais porque a percebiam como uma pacificação da própria polícia, na medida em que com as UPPs são suspensos, momentaneamente, as piores arbitrariedades policiais praticados de modo costumeiro nas favelas.
Com o esgotamento da experiência das UPPs e o recrudescimento das incursões policiais, a população das favelas e periferias vive nesse momento uma situação de absoluto terror. Embora a grande imprensa venha noticiando com frequência o drama dos moradores, a tragédia diária vai além do que sai nos jornais. Mas, talvez, o mais grave do quadro atual seja a ausência de perspectiva, que tende a produzir fatalismo e resignação na população, mas também perda de sentido para os próprios policiais quanto à racionalidade de suas ações. Eles próprios são vítimas da narrativa da ideia da guerra, e que precisa transformá-los em “heróis” que “morrem pela sociedade”, como têm reiterado as autoridades policiais, quando, a rigor, do que precisam é serem tratados como profissionais da segurança pública.

Esse cenário de ausência de perspectiva permite que, perigosamente, se aceitem como legítimas posições como a do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sergio Westphalen Etchegoyen, que, insistindo no signo da guerra, admite a inevitabilidade de perdas humanas nas operações com as Forças Armadas no Rio: “Vai acontecer. É previsível que aconteçam coisas indesejáveis, inclusive injustiças. Ou a sociedade quer ou não quer”, declarou Etchegoyen para uma plateia de empresários, no evento “Brasil de Ideias”, em agosto, no Rio.

Essa crise profunda de perspectiva cria, paradoxalmente, uma janela de oportunidade para uma ampla renovação do paradigma da segurança
pública historicamente adotado no Rio. Para isso, é necessário que a sociedade civil, sobretudo as organizações de bairros, favelas e periferias,
as universidades, o Ministério Público, a Defensoria Pública e as lideranças políticas realmente comprometidas com o bem-estar da população se irmanem na construção de um espaço público de diálogo e de defesa de uma política de segurança suste ntável e pautada pela linguagem dos direitos.

Acreditamos que o primeiro resultado palpável dessa mobilização possa ser a desconstrução do signo da guerra e o entendimento de que a segurança pública é um serviço público, que deve ter como fundamento inegociável o reconhecimento do direito à vida de todas e todos os cidadãos fluminenses, independentemente do seu CEP.

Eliana Sousa Silva é diretora da Redes Maré, Itamar Silva é diretor do Ibase, e Marcelo Burgos é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio

Desculpe o transtorno, estamos em obras

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Após um ano paradas, as obras do BRT Transbrasil são retomadas.

O Bus Rapid Transit, mais conhecido pela sigla BRT, que na tradução significa Transporte Rápido por Ônibus, teve sua obra retomada na Avenida Brasil. A Transbrasil, com orçamento contratual de 1,4 bilhão de reais, começou as obras em janeiro de 2015. O prazo para o término do corredor expresso era até o fim de dezembro de 2016, fim do mandato do prefeito Eduardo Paes. Acabou sendo suspensa em julho do ano passado para evitar transtornos ao trânsito durante as Olimpíadas Rio 2016. A obra deveria ter sido retomada após as Paralimpíadas, em setembro de 2016, o que não ocorreu. O corredor terá 32 quilômetros de ônibus expresso e ligará o Centro da cidade a Deodoro.

Quem circula pela Avenida Brasil deve ter reparado os engarrafamentos diários que mexem com a vida do carioca. “Talvez fosse a solução se implantado nos anos 1980, quando a cidade começou a sua consolidação, em especial a Zona Oeste. Essa seria uma demanda, mas 30 anos depois, os BRTs são obras tardias. Além de serem projetos que trouxeram remoções, em virtude de exploração imobiliária”, revela Jorge Luiz Barbosa, geógrafo e diretor de cultura do Observatório de Favelas.

A obra agora segue em frente à Praia de Ramos, com diversas máquinas retirando asfalto, operários a refazê-lo e inúmeros caminhões de materiais, todos com a inscrição “terra prometida”. Para Jorge, a obra não vai trazer nenhuma terra prometida. “A mobilidade é um direito universal, uma forma de acessar a saúde, educação e cultura. Essa extensão pela cidade não foi associada à questão da locomoção, que há 50 anos só vem aumentando o período em que o passageiro fica dentro do ônibus, hoje de duas a três horas”, detalha.

Após a conclusão, a expectativa da Prefeitura é que sejam atendidos 900 mil passageiros por dia, sendo o BRT que provavelmente terá maior demanda entre os outros três já implantados. Os quatros BRTs juntos terão 178 km de corredor para ônibus articulados. “O BRT veio para suprir a fragmentação da cidade, mas veio junto o monopólio territorial. Nasceu pela função de estar junto à copa e às olimpíadas. É um serviço público, realizado por particulares, nas mãos das concessionárias. É um transporte que, no futuro, pode ficar sucateado, como o metrô, que não supre as necessidades de integração”, prevê.

Jorge credita que para o transporte público funcionar é necessário integração. “O primeiro BRT nasceu em Curitiba, mas não deu certo, pois não acompanhou o crescimento da cidade. O transporte público precisa ter uma integração de fato, se materializar com as ciclovias, barcas e ônibus convencionais, ampliando a locomoção e oportunidade na cidade. O sistema precisa ter uma ligação modal, hoje ele funciona para si mesmo”, avalia. Ele entende que a favela precisa estar integrada ao corredor. “Quando começou o projeto da Transbrasil, não se falava em estação, a favela ficava de fora, seria um corredor ligando um ponto a outro, sem paradas. Não é só ônibus maiores e novos, é preciso ter uma ligação com as comunidades. É preciso uma cidade compartilhada e, não, fragmentada”, afirma. Ele exalta que o transporte precisa ser pensado para o ser humano e como sujeito de direitos. “Era necessário investir no sistema hidroviário, com estações no Fundão, na Praia de Ramos e Penha, relembrando os portos e investimentos no litoral norte, algo eficaz e racional”, conclui.

 

A estação do BRT Maré já está em funcionamento , mas já tem reclamações de usuários.
Foto: Elisângela Leite

Os problemas nas estações do BRT que já estão em funcionamento

Para a compra do bilhete ou recarga do cartão RioCard, o passageiro utiliza a máquina ou o guichê. Nas duas opções, o usuário pode não conseguir o seu objetivo. Quem utiliza as estações reclama das máquinas sempre com defeito e, no guichê, da recarga máxima ser de apenas 10 reais – o que corresponde a duas passagens. “No dia anterior a máquina estava quebrada, aqui na estação Maré. Esse sistema está horroroso. Às vezes tenho de ir para outra estação para colocar crédito”, desabafa Maria do Socorro Sousa, moradora do Parque União.

A máquina para a aquisição de bilhetes vive com defeito e no guichê ( à direita) o usuário só pode colocar R$10,00 de recarga. Foto: Elisângela Leite

Outro problema é a falta de orientação sobre a utilização da máquina. Eliete Santos, moradora do Rubens Vaz, não conseguiu manusear o equipamento e desistiu. “Queria colocar 40 reais, mas vou para o guichê e ficar com menos da metade. São algumas dificuldades, como a distância. Outro dia, coloquei a recarga no guichê e quando cheguei na roleta não tinha entrado, então tive de voltar para reclamar. Falta até equipamentos, antes eram duas, agora ficamos só com uma”, revela.

Na estação Santa Luzia, em Ramos, também há reclamações. “Quase todo dia uso essa estação e o serviço. O equipamento do RioCard vive com defeito e, no guichê, um valor irrisório”, detalha William Domingos, morador do Conjunto Pinheiros. Esses transtornos atrapalham a vida dos usuários. “O serviço oferecido é horrível, um sistema lento. Quero colocar mais dinheiro e não consigo. Já fiquei na mão por causa disso”, confessa Joel de Jesus, morador de Ramos.

Funcionários das estações disseram que, muitas vezes, a máquina trava por falta de retirada de valores. Outro problema apontado é o calote constante, com quebra de dispositivos e portas de vidro. Eles acreditam que o serviço fica inferior, com gastos extras com os consertos.  E o prejuízo fica para os usuários que usam a roleta. “Penso que os que entram por fora, para não pagar a passagem, são pessoas com problemas financeiros. Só que o risco de serem atropelados pelo ônibus é grande”, adverte Juliana Monteiro, moradora de Nova Holanda.

A Secretaria Municipal de Transportes respondeu que já tomou conhecimento desta questão e enviará uma equipe nas estações citadas para uma vistoria e tomar medidas cabíveis para que o serviço seja prestado de forma satisfatória para os usuários.

 

As estações do BRT Transbrasil na Maré

A obra do BRT Transbrasil está na fase do asfaltamento, mas uma estação teve o seu início realizado e interrompido. “Entramos em contato com a concessionária sobre o abandono da estação em frente à Vila do João. Eles fizeram a limpeza do ambiente e prometeram retomar as obras. Aqui será a maior estação, a mais próxima da Linha Amarela. Acredito que, após a conclusão, o trânsito vai melhorar”, anuncia Paulinho Esperança, diretor social da Associação de Moradores da Vila do João.

Essa estação já teve uma polêmica, se terá o nome de Vila do João ou Fiocruz. “Entendo que no futuro terá de ter uma discussão sobre o nome das estações. Os presidentes de associações vão se reunir para entrar num consenso sobre os nomes a indicar das estações que funcionarão nas passarelas 6, 8, 10 e 12”, observa Paulinho.

A Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação confirmou que serão 18 passarelas/estações e que, no momento, os nomes não estão definidos.

 

É pau, é pedra, é o fim do caminho

Em todos os lugares da Avenida Brasil que terão uma estação, as passarelas fixas foram substituídas pelas feitas de andaimes e madeiras. “O que fizeram foi péssimo. Montaram uma passarela próxima a fios e depois maquiaram com canos separados. Outro problema é a descida íngreme, o medo é derrapar, imagine um cadeirante. A passarela balança de um lado para o outro na hora do rush. Quando passo, peço a Deus para não cair”, desabafa Raquel Mattos, professora na Praia de Ramos, sobre a passarela 12.

A nova passarela não agradou. “Está feia, ainda bem que é provisória. Apesar de que montaram em frente ao Conjunto Esperança como provisória e está até hoje”, lembra Naid do Nascimento, moradora da Praia de Ramos. As reclamações são inúmeras. “Essa passarela é horrível, não tem iluminação e as rampas são muito inclinadas, já vi idosos caírem”, denuncia Susana França, também moradora da Praia de Ramos.

A Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação informou que a principal melhoria do BRT será na acessibilidade, com transporte público e passarelas. Além disso, há melhorias no sistema de drenagem nos locais da obra.

Maré de Notícias #79

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Precisamos falar de sífilis

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Aumenta os casos de infectados e o tratamento é gratuito pelo SUS

Hélio Euclides

A automedicação é um perigo e pode levar à morte, em alguns casos. A conversa ao pé do ouvido com o atendente da farmácia, atrás de um paliativo para qualquer doença não é indicado para ninguém. No caso da sífilis, o risco ainda é maior.  A doença sexualmente transmissível é causada por uma bactéria, a Treponema pallidum e tem três estágios. No primeiro surge uma lesão, parecida com uma verruga, chamada de cancro, nos órgãos sexuais ou na boca.  Com o não tratamento ideal, a doença vai para a segunda fase, com lesão na pele, em geral, nas palmas das mãos e nas solas dos pés. A última fase, que pode levar à morte, as lesões são internas, mais tradicionalmente no cérebro. “O diferencial é tratar logo no primeiro estágio. A cura vem com tratamento no SUS (Sistema Único de Saúde), e nunca na farmácia. Não existe vacina para a bactéria; a cura só vem com o tratamento”, comenta Rosana Neves Tubarão, médica de família, do Centro Municipal de Saúde Samora Machel.

Segundo dados do último Boletim Epidemiológico de Sífilis, entre 2014 e 2015, a sífilis adquirida teve um aumento de quase 33%; a sífilis em gestantes 21% e a congênita, em que a mãe passa para o bebê, aumentou 19%. Dados da Secretaria Municipal de Saúde revelam que, em 2016, a taxa de detecção de sífilis na gestação por mil nascidos foi de 44,92%. No mesmo ano, a taxa de incidência de sífilis congênita por mil nascidos vivos foi de 18,30%. A cura é com o uso de Penicilina benzatina, popularmente conhecido por injeção de Benzetacil. “Esse antibiótico foi o primeiro que surgiu no mundo. O tratamento é feito em três semanas, com duas injeções semanais”, revela a médica. Ao desconfiar da contaminação, o paciente procura o SUS, que oferece os testes gratuitamente. Há o rápido, com resultado na hora. O de sangue, para saber a titulagem da doença, e o teste FTA-ABS, que verifica a presença da bactéria. “Qualquer pessoa da Maré pode vir fazer o teste rápido, é tudo sigiloso”, explica Rosana.

A bactéria também aparece em mulheres grávidas. “Importante o tratamento da gestante, pois a bactéria ultrapassa a barreira da placenta, e o bebê, se contaminado, pode ter sequelas neurológicas. Mas com o pré-natal no início da gravidez é possível detectar a doença logo no começo e, com o tratamento, tanto a gestante quanto a criança ficam bem”, destaca Rosana. A Maré tem muitos casos da doença, e não são poucas notificações na gravidez.

A prevenção é o melhor remédio. “Ter relações sexuais apenas com o uso de preservativo. Nossa unidade de saúde tem um display, onde cada um pega quantos quiser, não precisa pedir, é gratuito”, avisa a médica. “Não pode parar de usar camisinha, não conhecemos o parceiro. Hoje quem vê cara não vê coração, a pessoa ter uma fisionomia boa não significa nada. Leve o seu preservativo para casa, não confie na camisinha dada por outra pessoa, pode estar furada. Leve na bolsa e na carteira, para uso a qualquer momento”, adverte Bruna de Lima, técnica de enfermagem.

Importante, no caso de um parceiro conhecido, é tratar o casal. “O tratamento tem de ser feito na pessoa que procurou o médico e no seu companheiro ou companheira, pois a doença é uma teia. O complicado é convencer o companheiro, que muitas vezes acusa a mulher de traição, tirando seu corpo fora”, critica Rosana. Uma vez por ano tem no Programa Fique Sabendo uma mobilização de combate à sífilis na Maré. “Há campanhas no final do ano, e como os casos são muitos, nesse período não paramos, é o dia inteiro aplicando injeção”, conta Marilza. As duas profissionais avisam: o paciente que ficou curado pode ter a doença novamente, então mais um motivo para se prevenir sempre. Em caso de dúvidas, é só comparecer a uma unidade de saúde e conversar com o profissional para realizar o Teste Rápido.

Artigo: Alfabetização como ação cultural para a liberdade

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“Vi…la, Vi…la, Vila I…, é Vila Isabel, professora? É Vila Isabel? ” Diante de minha afirmativa, Seu Augusto, um pernambucano de 60 anos, ao terminar de ler o destino do ônibus, com lágrimas nos olhos, fitou os passageiros que aguardavam o transporte coletivo e, em meio a pulos, com o punho fechado erguido pra cima, começou a gritar: “Eu sei ler!!!!! Eu sei ler !!!!” Para algumas pessoas que presenciavam a manifestação de meu aluno, a felicidade expressada por ele podia parecer exagero. Porém, a possibilidade de saber o itinerário de um ônibus, sem precisar usar a desculpa do esquecimento dos óculos ou admitir o fato de não ser alfabetizado, era algo libertador para Seu Augusto, como tantas vezes ele falou em sala de aula. Envolvia não só a capacidade de ler e escrever, mas acima de tudo possibilitava sua autonomia e a ruptura com processos de interdição.

Passadas mais de duas décadas, eu ainda me emociono ao relatar o que vivi, naquele dia, na posição de professora alfabetizadora, que acompanhava a luta diária de operários jovens e adultos para garantir o direito à educação. Reflito que algumas situações vividas por pessoas não alfabetizadas, muitas vezes, marcadas pela dor, vergonha, angústia e humilhação, não são possíveis de serem sentidas pelas pessoas alfabetizadas. Como alguém que tem autonomia com a linguagem escrita, posso até dizer que imagino, entendo,  compartilho a angústia vivida por elas, mas só elas podem sentir na carne o que é, em determinados momentos, serem tratadas como incapazes, como aquelas que nada sabem. Sentem na pele o que é se colocadas numa posição subalterna, à margem, ainda que essa margem faça parte da sociedade.

Hoje, como coordenadora do Programa Integrado da UFRJ para Educação de Jovens e Adultos, ao atuar com a formação de novos alfabetizadores, observo meus alunos vivenciando emoções semelhantes as que eu vivi. Percebo a emoção, o encantamento dos alunos com a prática educativa e a ampliação do entendimento do que é o processo alfabetizador. A alfabetização é muito mais que o ato de ler e escrever. Em nossa sociedade, ela está intrinsecamente relacionada com o binômio saber-poder, pois mais que um meio de comunicação, a linguagem é também o meio de construirmos os significados daquilo que comunicamos. Nesse sentido, a alfabetização se constitui como uma “faca de dois gumes”, pois tanto pode ser brandida em favor da emancipação, do crescimento social e cultural, como para a perpetuação das relações de desigualdade e dominação.

De acordo com os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente, no Brasil, 8% da população acima de 15 anos de idade é de analfabetos absolutos. Porém, se considerarmos também os chamados analfabetos funcionais, ou seja, aquelas pessoas que não conseguem compreender o que leem ou que entendem alguma coisa, mas são incapazes de interpretar e relacionar informações, esse percentual é muito maior. Não raro ainda encontramos em sala de aula do Ensino Médio alunos que não conseguem explicar o que acabaram de ler. Esses dados refletem as desigualdades socioeconômicas históricas no País e vão interferir, significativamente, nas relações sociais e na organização de uma sociedade democrática.

Diante disso, a alfabetização não pode ser tratada meramente como uma habilidade técnica a ser adquirida, mas, sim, como fundamento necessário à ação cultural para a liberdade, aspecto essencial daquilo que significa ser um agente individual e socialmente constituído. A alfabetização é um ato de conhecimento, de criação e não de memorização mecânica. (Freire, 1994). Não podemos permitir que nossa população tenha de aguardar mais de seis décadas de vida para, tal como Seu Augusto,  liberar da garganta o grito libertador: “Eu sei ler !!!!! Eu sei ler!!!!” Grito este, que mais  que anunciar uma novidade, anuncia a ruptura com a interdição e, ainda, a possibilidade de emancipação social e cultural.

Analfabetismo Funcional: Um obstáculo ao real cumprimento da cidadania

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Um em cada quatro brasileiros não consegue compreender textos simples, como bula de remédios e manuais de eletrodomésticos

Diego Jesus

Segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa em 2016, um entre quatro brasileiros é considerado “analfabeto funcional”. Em muitos casos, os analfabetos funcionais conseguem reconhecer letras, desenvolver leituras e resolver operações matemáticas simples. Apesar disso, esses indivíduos apresentam dificuldades na interpretação de textos longos e na resolução de problemas numéricos mais complexos, como a leitura de gráficos e tabelas. Os analfabetos funcionais não conseguem compreender textos como notícias, bulas de remédio, manuais de eletrodomésticos, passagens bíblicas, como também têm limitações ao preencher formulários de emprego e até mesmo ao escrever mensagens instantâneas utilizando aplicativos de celular e páginas da internet. É possível que um indivíduo analfabeto funcional não consiga explicar o que leu logo após ter finalizado a leitura de um texto longo. A causa do problema está na baixa qualidade do ensino. Muitos trabalhadores analfabetos e analfabetos funcionais, principalmente no caso daqueles com idade avançada, têm dificuldades para retornar à escola. A longa carga horária no trabalho implica indisposição para enfrentar a sala de aula – o que desestimula essas pessoas a aprender a ler e escrever ou a aperfeiçoar o que já sabem. Os graus de analfabetismo mexem diretamente com a autoestima dos indivíduos nessa situação.

Educação de Jovens e Adultos

Gisa Gonçalves, 34 anos, diretora do CIEP Gustavo Capanema, localizado na comunidade Vila do Pinheiro, na Maré, relata a experiência da escola com o – Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA). O programa tem 30 anos e, inicialmente, atendia a adultos e pessoas da terceira idade que tentavam retornar para a escola. Esse perfil mudou com o passar do tempo. Nos últimos anos, o PEJA na Maré tem sua clientela formada em grande maioria por jovens e adultos com idades entre 16 e 30 anos. “Nós realizamos uma pesquisa anual com os alunos para saber qual a intenção deles com o retorno ao ensino noturno. Muitos são trabalhadores analfabetos, pessoas que nunca tiveram contato com a escola, ou analfabetos funcionais, pessoas que já estiveram inseridas no sistema de ensino, mas desejam expandir seus conhecimentos para terem melhores oportunidades de emprego no mercado de trabalho”, relata Gisa. Diferentemente do ensino diurno, dividido por anos, o PEJA está organizado por blocos. Os níveis atendem da Alfabetização ao Ensino Fundamental 1, e a transição de um bloco para o outro depende do rendimento do próprio aluno. Segundo Gisa, “o CIEP Gustavo Capanema conta com um grupo de professores que está há 20 anos na escola desenvolvendo esse trabalho. Apesar de todos os problemas de violência que a Maré vivencia cotidianamente, eles estão engajados em transformar a realidade local por meio da educação”.  O CIEP Gustavo Capanema atende, atualmente, a 285 moradores da Maré por meio do PEJA, com faixa etária de 16 a 70 anos. Segundo a diretora da escola, a experiência com o programa identifica que a recorrente presença de analfabetos funcionais é consequência da precariedade no sistema educacional brasileiro em todas as instâncias. Os jovens que retornam aos estudos por meio do Programa apresentam grande dificuldade no desenvolvimento da escrita, apesar de, em muitos casos, já terem passado anos frequentando a escola.

Analfabetos funcionais na era digital

Nos últimos anos, a inclusão digital expandiu as possibilidades de exercício da escrita e da leitura. Apesar disso, o analfabetismo funcional é responsável por boa parte das pessoas que utilizam a internet não experimentarem seu potencial educativo plenamente. Embora seja uma fonte de descobertas de informações, levando seus usuários ao contato constante com textos de notícias, curiosidades e, até mesmo, obras literárias, por conta do baixo acesso à educação, moradores principalmente de países pobres exploram menos conteúdos do que poderiam. O WhatsApp é um exemplo atual da intensa troca de informações por meio da leitura e da escrita ao redor do mundo. O aplicativo, utilizado por mais de um bilhão de pessoas, chega a registrar a troca de 42 bilhões de mensagens por dia. Ainda assim, estudos desenvolvidos por escolas e empresas têm identificado as profundas dificuldades de seus alunos e funcionários em se comunicar por meio da escrita e interpretar mensagens mais complexas compartilhadas no aplicativo. Em muitos casos, analfabetos funcionais acabam usando a ferramenta apenas com o auxílio de gravação de voz e compartilhamento de imagens, o que os leva a não fazer o uso da internet de forma que colabore para o desenvolvimento de suas habilidades de leitura e escrita.

A dificuldade para ingressar na Universidade

Diversos brasileiros que tentam ingressar na universidade se deparam com a dificuldade de realizar a prova de redação. A redação no vestibular ou prova do ENEM é o momento em que o candidato deve comprovar a sua habilidade de reflexão e de escrita, baseando-se nos temas apresentados no teste. Pelo pouco contato com a leitura e por não exercitar a escrita, muitos que tentam ingressar no Ensino Superior são impossibilitados de desenvolver um texto que argumente de forma precisa sobre as questões apresentadas. É cada vez mais importante que as políticas públicas sejam pensadas para alcançar um número maior de brasileiros em situação de analfabetismo. O processo de alfabetização pode resultar no prosseguimento dos estudos, gerando a conquista de empregos formais por meio de cursos profissionalizantes e resultando, até mesmo, no ingresso à Universidade.

Segundo informações do INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional), órgão responsável por medir os graus de alfabetização dos brasileiros, a maior parcela de analfabetos está na população de cor negra, o que sinaliza a desigualdade na garantia ao acesso à educação no País, presente com maior gravidade na realidade dos moradores de periferias. De acordo com a pesquisa, apenas 37% dos entrevistados que se autodeclaram negros terminaram o Ensino Médio, acompanhados por 17% que conseguiram ingressar na Universidade. É preciso lembrar, ainda, de como o analfabetismo acontece historicamente no Brasil. Por muito tempo os analfabetos foram impedidos de exercer direitos como, por exemplo, o de votar. Em 1957, 70% dos brasileiros eram analfabetos. Apesar de exercer diferentes aspectos de sua cidadania, como o pagamento de impostos e funções de trabalho diversas, o analfabeto, na época, não tinha a liberdade de exercê-la plenamente e decidir quem seriam os seus representantes políticos. Em 1964, após uma tentativa de garantia do voto facultativo aos brasileiros analfabetos, por meio de um Projeto de Emenda à Constituição, a resposta da grande maioria dos políticos da época argumentou que a medida levaria ao “crescimento de um eleitorado de tendência subversiva”. Tal afirmação ajuda a entender o interesse político por trás da manutenção da desigualdade social, ainda mais se considerarmos o baixo investimento nas políticas públicas voltadas para a educação no Brasil ao longo da história.

Nos últimos 15 anos, o Brasil passou por um lento progresso na ampliação do acesso à educação. O investimento em projetos como o PEJA e a criação de 18 universidades públicas são dois dos inúmeros exemplos das iniciativas adotadas para a inclusão de brasileiros pobres a diferentes níveis do sistema educacional. Atualmente, medidas governamentais têm ameaçado violentamente os direitos conquistados pela população.

A Proposta de Emenda Constitucional de número 241/55 é um exemplo desse retrocesso. Aprovada em dezembro de 2016, põe em prática a limitação dos investimentos em educação para os próximos 20 anos, o que vai na contramão de medidas adotadas por diversos países ao redor do mundo que pensam a educação como meio essencial para o desenvolvimento social e econômico de suas populações. Como escreveu o pensador Paulo Freire, ícone da reflexão sobre educação no País, “seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”. É talvez agora, mais que nunca, tempo de luta pela liberdade, e esta só será possível com a manutenção do desejo de aprender a partir da escola e para muito além dela.