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Comissão Interamericana de Direitos Humanos visita a Maré

Soledad García, relatora especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais ouviu denúncia dos moradores 

Na última sexta-feira (16), o Conjunto de Favelas da Maré recebeu Soledad García Muñoz, relatora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e representantes da Washington Brasil Office (WBO), uma instituição especializada em pensar sobre o Brasil e em apoiar ações que fortaleçam o papel da sociedade civil e das instituições dedicadas à promoção e à defesa dos direitos humanos.

No roteiro da visita, a relatora esteve no Memorial de Vítimas da Violência Armada no território, localizado na Rua Ivanildo Alves, no Parque Maré. Após a visita, as mães que enfrentam a dor da perda de seus filhos caminharam pelas ruas com uma bandeira erguida, exibindo as fotos das vítimas, até chegarem ao Observatório de Favelas, onde junto a outras organizações e movimentos locais, denunciaram violações de Direitos Humanos vivenciadas pelos moradores.

Durante a caminhada, a fala de uma moradora na varanda de casa chamou a atenção. Ela gritou palavras de força para as mães: “eu não perdi filhos nessa violência, mas a dor de uma mãe é a dor de todas”, disse seguido de palmas. 

Leia também: ADPF das Favelas: ‘desrespeito à decisão do STF é grave por ser afronta contínua à democracia’; Memorial homenageia vítimas de violência

Em entrevista para o Maré de Notícias, Soledad falou sobre a criação do Memorial. 

“Esse Memorial é importantíssimo pela memória, verdade, justiça e reparação dessas mães que precisam de um espaço para fazer seu luto, cerimônias, e honrar a memória de seus familiares. Me sinto honrada de compartilhar esse momento de vê-las acendendo velas para seus filhos”. 

Soledad García Muñoz, relatora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Durante a cerimônia no memorial, familiares se emocionaram e leram um manifesto em memória das vítimas | Foto: Gabi Lino

Soledad ressaltou a força das mulheres diante o luto. “É um privilégio conhecer a força dessas mulheres, mas também sinto tristeza pela dor que eu percebi e senti nelas. Tenho admiração, desejo de justiça e reparação para elas, seus filhos e filhas que foram mortos. Como relatora especial que está encarregada do direito à saúde na comissão, eu fico muito preocupada também pela saúde mental dessas mulheres que por mais que sejam fortes, precisam de muito acompanhamento psicossocial de saúde para que elas possam tentar reconstruir suas vidas.”

Mobilização para denúncia de violações na Maré

Durante o encontro no Observatório de Favelas, Renata Trajano, do Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, enfatizou o não cumprimento da ADPF das Favelas atribuindo a conivência do Ministério Público para operações policiais. Além disso, Renata relembrou que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana no caso das chacinas de Nova Brasília em 1994, e 1995 no Alemão, nas quais as sentenças não foram cumpridas.

 “Fico pensando se essa será mais uma vez que todos nós, movimentos sociais e mães de vítimas sentaremos aqui para ficar pedindo intervenção no Brasil? Que o Brasil seja condenado mais uma vez, assim como foi na chacina de Nova Brasília e isso não ser respeitado? O Ministério Público segue ignorando e a ADPF das favelas caiu por terra pra mim porque o MP do Rio é conivente com as operações. Até quando o estado e grandes instituições internacionais vão fechar os olhos para o que acontece aqui?”

Renata Trajano, do Coletivo Papo Reto,

Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius, de 14 anos, assassinado em 2018 enquanto ia para escola na Vila do Pinheiro, falou sobre as ações dos estados que não recebem punição.

“Precisamos falar sobre a impunidade do estado. Eles entram na favela matando os nossos com a certeza da impunidade. O caso do meu filho está mais perto de ser arquivado do que solucionado porque há cinco anos se encontra como inquérito, parado. É como se estivessem matando o Marcus de novo”, desabafa Bruna que compõe o coletivo Mulheres em Movimento da Maré.

Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius luta por justiça há cinco anos pela morte do seu filho | Foto: Gabi Lino

Representantes de outras organizações, coletivos e instituições como a Redes da Maré, Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Conexão G, Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), Frente Favela Brasil (FFB), Instituto Maria e João Aleixo, Instituto Vladimir Herzog, LabJaca, MNU, UNEGRO, também estiveram presentes. Ao final do encontro, o grupo Mulheres em Movimento da Maré entregou à relatora um manifesto com suas assinaturas.

Anielle Franco visita a Maré para diálogo com organizações e coletivos

Ministério da Justiça Racial faz escuta com organizações, coletivos e lideranças para diálogo sobre melhorias no acesso a políticas públicas

A visita da ministra Anielle Franco, cria da Maré, aconteceu na manhã desta segunda-feira, 19 de junho, no Centro de Artes da Maré e fez parte da Caravana Juventude Negra Viva, coordenada pelo Ministério da Igualdade Racial e a Secretaria Nacional de Juventude da Secretaria Geral da Presidência. Organizações, coletivos, lideranças e representantes de associações de moradores do Conjunto de Favelas da Maré estiveram presentes para um processo de escuta e proposição de ações estruturantes que possam fortalecer melhorias no acesso à políticas públicas para a Maré, sobretudo para a juventude preta e favelada do território. 

Beatriz Virgínia, também moradora da Maré, começou as atividades do encontro com uma apresentação de Slam. Na sequência, Flavinha Cândido iniciou a organização do processo de escuta chamando atenção para a representatividade territorial das cerca de 50 organizações ou movimentos representados pelas lideranças presentes.  

Diversas pautas foram apresentadas como: as diversas violências sofridas pelas mulheres pretas de favela e contra população LGBTQIAP+; os impactos da violência armada na vida dos defensores de Direitos Humanos e a criminalização das organizações sociais; a sustentabilidade de coletivos; o espaço e incentivo ao esporte, a sobrecarga, bem como  estratégias de formação e de fortalecimento dos profissionais da educação; o racismo ambiental e acesso à saneamento básico, entre outras. 

Esse encontro fez parte da oitava agenda da caravana que está percorrendo as capitais com o objetivo de promover a participação social de jovens negros e negras, de organizações da sociedade civil e gestores dos estados e municípios relacionadas à pauta de juventude e igualdade racial, na elaboração do Plano Juventude Negra Viva. Apesar do plano propor o olhar para demandas diversas da juventude, a redução da letalidade de jovens negros é seu principal foco.

“Ao entrar no Ministério eu enumerei cinco prioridades, e uma delas sempre foi o enfrentamento ao genocídio da população preta, em especial da juventude”, afirma a ministra.

Isadora Brandão, secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) também marcou presença no encontro. A secretária afirmou o compromisso do ministério na luta pela redução da letalidade da juventude negra e fortaleceu a importância do olhar para a memória sobre as trajetórias desses corpos: “não conseguimos produzir justiça, sem verdade, e isso não é possível sem memória”.

Após o processo de escuta das organizações, Renata Souza, deputada mareense destacou a necessidade de olhar para os processos de garantia de segurança para os defensores e defensoras de Direitos Humanos e também na natureza de criação de tecnologias sociais, nas favelas, para redução de desigualdades. A vereadora Mônica Benício trouxe a reflexão sobre a participação popular na construção de políticas.

Foto: Gabi Lino | Ministra Anielle Franco e Deputada Renata Souza

Anielle fechou a manhã desta segunda-feira (19/06), elencando os principais pontos da Caravana Juventude Negra Viva e o compromisso da escuta e do diálogo constante do ministério nas pautas apresentadas. A ministra reforçou, ainda, que está em articulação com o governador Cláudio Castro para cobrança a respeito da segurança pública no Rio de Janeiro. As lideranças que articularam junto ao ministério à visita irão organizar um documento consolidando todas demandas apresentadas no encontro. 

Nos próximos dias 20 e 21 de junho (terça-feira e quarta-feira), a caravana segue com programação no Rio de Janeiro. As oficinas ocorrerão no Circo Crescer e Viver, localizado na rua Carmo Neto, 143 – Cidade Nova, Rio de Janeiro – RJ, 20210-051, a partir das 9h. As incrições podem ser feitas no link.

Escolhas alimentares nutritivas e acessíveis podem evitar doenças

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Escolhas nutritivas e acessíveis fazem parte de uma alimentação saudável e podem evitar doenças

Por Teresa Santos

De acordo com o Guia alimentar para a população brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014, é recomendado evitar o consumo de alimentos ultraprocessados — muitas vezes, atrativos devido aos preços mais baixos e à ideia de economia de tempo. Para a nutricionista Wanessa Natividade, porém, “é possível ter uma alimentação nutritiva e economicamente saudável. E ela não está associada ao consumo de alimentos caros, e sim à qualidade nutricional dos alimentos”.

Wanessa é chefe do Núcleo de Alimentação, Saúde e Ambiente (Nasa) da Coordenação de Saúde do Trabalhador (CST/Cogepe) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Segundo ela, o Guia Alimentar determina que uma alimentação adequada e saudável deve ser baseada em alimentos “in natura”:

“Isso quer dizer o que é obtido diretamente da natureza e minimamente processado, como frutas, legumes, verduras, raízes, ovos, cereais, feijões, carnes e leite. Ou seja, comida de verdade preparada a partir de alimentos sem aditivos químicos ou muito processada”, diz a pesquisadora.

Optar por esses alimentos não significa sobrecarregar a rotina. “Temos que substituir essa ideia de que o lugar de cozinhar é da mãe, da mulher, da filha. Esse lugar é da família”, ressalta Mariana Aleixo, chef de cozinha e doutora em engenharia de produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mariana é quem coordena o projeto Maré de Sabores; segundo ela, quando a tarefa é compartilhada por todos, isso também repercute na economia de tempo.

Depressão e ansiedade

Refrigerantes, refrescos em pó, macarrão instantâneo, salsicha, biscoitos recheados, lasanha congelada — esses são alguns exemplos de alimentos ultraprocessados. 

Eles são geralmente ricos em gorduras, açúcares ou sódio; em níveis elevados, estes componentes estão associados a problemas de saúde como obesidade e hipertensão, doenças cardíacas, diabetes e até depressão e ansiedade. 

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2020 revelou que mais da metade dos adultos brasileiros apresenta excesso de peso (60,3%), são 96 milhões de pessoas. 

Segundo dados da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) de 2021, 26,3% da população brasileira sofre de hipertensão arterial. Entre os estados brasileiros, o Rio de Janeiro apresenta uma das maiores prevalências de diagnóstico médico dessa condição, com 28,1%.

A hipertensão arterial é uma doença que faz parte de um grupo de condições que podem ser evitadas por meio da adoção de hábitos modificáveis, e um deles é a alimentação natural.

Substituições saudáveis

Desde que começou a participar do curso de gastronomia do projeto Maré de Sabores, Solange de Souza, moradora da Nova Holanda, abandonou os temperos industrializados e passou a usar apenas os naturais. Páprica picante, pimentões e outros temperos tornaram-se seus novos aliados. “Agora percebo o quanto os alimentos fazem diferença em nossas vidas”, diz ela.

A mesma sensação é compartilhada por Iula Tavares, também participante do curso de gastronomia do Maré de Sabores. Além das substituições saudáveis, ela passou a aproveitar ao máximo os alimentos: “Descobri que posso utilizar uma abóbora inteira, inclusive a casca.”

Essa nova rotina nas casas dos moradores da Maré não é tão nova assim. De acordo com a chef Mariana, ao descobrirmos que alimentos ultraprocessados podem ser prejudiciais à saúde, começamos a fazer escolhas melhores dentro de nossa realidade: “Historicamente, as famílias já faziam isso”, diz.

O Maré de Sabores é um projeto que busca promover a valorização do conhecimento ancestral da alimentação no contexto profissional. Criado em 2010, ele tem sua sede na Casa das Mulheres da Maré.

Maré de Sabores – © Patrick Marinho

Bom e barato

Um ótimo lugar para ter acesso a alimentos naturais é numa feira-livre. Na Maré, ela acontece em algumas das 16 favelas, como:

Morro do Timbau – às terças na Rua Capitão Carlos.

Parque União – às quartas-feiras na Rua Roberto da Silveira.

Praia de Ramos – aos sábados na Rua Gerson Ferreira.

Parque Maré – aos sábados na Rua Teixeira Ribeiro.

Vila do João – aos sábados na Rua 14 (Principal)

Também é aconselhável procurar saber o que é da época (os preços ficam mais em conta). Nos meses de junho e julho, você vai encontrar:

Frutas: abacate, caqui, morango, laranja-lima, mexerica e tangerina;

Verduras: agrião, alho-poró e brócolis.

Legumes: cenoura, chuchu, couve-flor, abóbora, batata doce, berinjela, cenoura, inhame, mandioca, mandioquinha e milho verde.

Do salário, nem o mínimo

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Salário mínimo deveria garantir acesso a necessidades básicas, porém o valor não se adequa a realidade da população

Maré de Notícias #149 – junho de 2023

Por Lucas Feitoza

No dia 1º de maio, o salário mínimo sofreu um reajuste de 9%, passando de R$ 1.212 para R$ 1.320. Um mês depois da mudança, perguntamos aos moradores da Maré se esse aumento se refletiu no cotidiano da população.

Stefanie da Silva, de 22 anos, é moradora da Vila dos Pinheiros. Ela trabalha como auxiliar de galpão e afirma que o valor do salário mínimo não é suficiente para suprir suas necessidades básicas e as de sua filha de dois anos. 

Stefanie é mãe solteira e tem despesas com aluguel, mas reclama principalmente dos gastos com alimentação, que chegam a cerca de R$ 600 mensais. Segundo ela, “se compro a mistura, não consigo pagar por todos os legumes”.

A Constituição de 1988 regulamenta o salário mínimo e estabelece que ele deve ser reajustado regularmente para garantir o poder de compra da população. Entre suas principais funções está assegurar que os trabalhadores e suas famílias tenham um valor adequado para suprir necessidades básicas, como alimentação, moradia, vestuário, cuidados de higiene, saúde, segurança e transporte.

Apesar de não suprir todas as necessidades, o salário mínimo foi reajustado acima da inflação pela primeira vez em quatro anos, o que significa que o poder de compra da população vai aumentar gradualmente. Porém, uma das pessoas que ainda não sentiram a mudança é Alessandra Macedônio, moradora da Nova Holanda.

Ela também afirma que o salário mínimo não é suficiente para o sustento da família. Ela e o marido estão entre os 67,1% dos trabalhadores que recebem até dois salários mínimos. Mesmo assim, o casal enfrenta dificuldades para arcar com todas as despesas: “O supermercado é o que nos prejudica, e a cada mês os preços aumentam”, diz Alessandra.

Valor necessário

Em setembro de 2022, cerca de 34,7 milhões de trabalhadores no Brasil recebiam até um salário mínimo, o que representa 35,6% do total de ocupados no país. Esses dados são da Pesquisa Nacional por Amostragem por Domicílio Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Porém, o valor do salário mínimo é percebido de duas maneiras, como explica o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Existem dois tipos: o real, que é o valor efetivamente pago, e o necessário, que seria a quantia suficiente para suprir as necessidades básicas. 

Hoje, este último teria que ser de R$ 6.676,11, segundo a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada mensalmente nas capitais. No Rio de Janeiro, a cesta básica ficou em 4º lugar entre as mais caras do país, custando R$ 750,77.

Para o economista Fernando Mattos, professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), a questão do salário mínimo deveria ser pensada, questionada e cobrada como um ato cotidiano de cidadania.

Ele ressalta que a economia é uma questão política: “A maioria das pessoas acredita que só se deve discutir política em período de eleições. Na verdade, agora é a hora de cobrar dos parlamentares o aumento do salário mínimo. A população escolheu um Congresso conservador, que não se preocupa com o salário dos trabalhadores, e isso dificulta na hora de exigir reajustes maiores.”

O Rio de Janeiro tem a 4o cesta básica mais cara entre as capitais, custando R$ 750,77 – Foto: Gabi Lino

Parque Roquete Pinto: território nasce em torno da comunicação e mobilização

Parque Roquete Pinto nasce em torno da comunicação e mobilização

Por Hélio Euclides

Tudo começou com um prédio que abrigava a base e a torre de transmissão da Rádio Roquette Pinto. Em seguida, em 1955, surgiram os primeiros barracos no final da Rua Ouricuri. Na época, não havia asfalto ou rede elétrica, e o saneamento era menos que o básico. 

O processo de ocupação só foi possível depois que os próprios moradores começaram a aterrar uma área de manguezal. O nome da favela foi escolhido em homenagem ao idealizador da radiodifusão no Brasil, Edgar Roquette Pinto. Os transmissores da rádio que levavam o seu nome funcionaram no centro da favela até o fim de 1994. 

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O Parque Roquete Pinto (com um T a menos) está ao lado do terreno do antigo quartel do 24° Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro, hoje pertencente à Polícia Militar. Do outro lado, fica a vizinha Praia de Ramos. 

A comunidade está localizada entre o antigo quartel do 24° Batalhão do Exército e a Praia de Ramos – Foto: Affonso Dalua

Palafitas e lama

Fabio Ferreira, conhecido como Fabinho da Feira, é presidente da Associação de Moradores da Roquete Pinto e Praia de Ramos. Ele fala da favela sempre com um sorriso no rosto: “Há um sentimento de alegria pela minha comunidade e por fazer parte da Maré. Tenho orgulho de ser liderança de duas comunidades como Roquete Pinto e Piscinão de Ramos. É muito bom poder fazer algo de coração.”

Izete Amâncio, de 50 anos, lembra o período das palafitas na favela. “Quando cheguei de Pernambuco há 30 anos eram poucas casas. Próximo ao prédio da rádio existiam só umas três habitações; ainda era possível ver palafitas e muita lama. Para pegar água era necessário ir até a Avenida Brasil.”

Izete diz que, hoje, “o prédio onde ficavam os transmissores da rádio ainda está de pé, virou um ferro velho. Já ao lado da torre tinha um campo de futebol. Aqui é calmo, gosto do meu lugar”.

Festas e incêndio

Raimunda de Souza – Foto: Affonso Dalua

Uma moradora saudosa é Raimunda de Souza, de 85 anos, prima da cantora Dolores Duran: “Cheguei quando tinha uns 17 anos. Com o tempo, a população começou a organizar festas, serestas e concurso de quadrilha de festa junina.”

Suas memórias, porém, não são todas felizes. Segundo ela, “houve um incêndio que acabou com a favela. Por sorte, não morreu ninguém. Eu estava escutando uma novela na Rádio Nacional e meu marido lendo a revista Jerônimo Fé e Fogo, quando fomos surpreendidos com as labaredas. Ele fez uma trouxa de roupa e saímos correndo. Fui morar na casa de minha madrinha.” 

Raimunda conta que o povoamento da Praia de Ramos se deu não só pelos pescadores, como também por meio de moradores da Roquete Pinto: “Depois eu vim para a Praia de Ramos. No início, era só mato. De casa só eram duas, na Rua Gerson Ferreira. Para pegar água, era preciso ir perto da entrada da Ilha do Governador. Fiquei por aqui, onde criei a família.” 

Os espaços de lazer da favela contam com uma praça e a quadra da escola de samba Siri de Ramos. O território tem ainda a Escola Municipal Tenente General Napion, que no turno diurno é de Ensino Fundamental e noturno é destinada ao Ensino Médio.


Agora vamos dar uma pausa na nossa viagem. Mas em agosto voltamos com o rolê pelas favelas que formam a Maré. A próxima favela será o Parque União. Até lá!

Seminário de educação traz o desafio da ampliação do direito na Maré

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Evento aconteceu no Centro de Artes da Maré por dois dias e discutiu alfabetização, racismo, gênero, evasão escolar e outros temas que atravessam o território

Andrezza Paulo e Hélio Euclides

Nesta quarta e quinta-feira (14 e 15/06), o Centro de Artes da Maré (CAM) recebeu profissionais, instituições e especialistas para o 4° Seminário de Educação da Maré, produzido pelo Eixo de Educação da Redes da Maré. O tema deste ano foi “Diálogos e possibilidades para garantia de direito à Educação”, e discutiu as questões que atravessam o tema no território como a alfabetização, as demandas por unidades escolares, o acesso tecnológico no ensino, raça, gênero, evasão escolar e o diálogo com o poder público para incidir e garantir os direitos dos estudantes das 16 favelas da Maré. 

O primeiro dia foi marcado pelas rodas de conversa com profissionais de dentro e fora da Maré. A abertura contou com a presença da Subsecretaria de Planejamento e Ações Estratégicas da Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC), representantes de instituições como Conselho Tutelar de Bonsucesso, Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) e 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE).

A Maré tem atualmente 50 escolas públicas: 46 municipais e quatro estaduais. O encontro, organizado pela Redes da Maré, além de promover reflexões sobre a Educação na Maré, propôs a incidência política com a elaboração de uma Carta para a Educação com propostas e reivindicações na garantia do direito ao ensino com a participação das instituições, moradores e profissionais convidados. 

Gênero e Raça

De acordo com dados fornecidos pelo 16° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os jovens negros representam a maioria das vítimas de mortes violentas no Brasil. Quando analisadas as intervenções policiais, as vítimas declaradas negras somam 84%. 

Enquanto os jovens negros são vítimas fatais da presença do Estado nas favelas, como abstrair dessa realidade e se dedicar à escola? Como provocar reflexão na sala de aula se jovens negros estão tentando se manterem vivos? 

Tema da primeira roda de conversa: “As diferentes opressões no país também são refletidas no contexto educacional”, propôs estratégias de estudo, pesquisa e ações educacionais que visam não só o acesso, mas a permanência com qualidade desses jovens nas escolas.

“O percentual de evasão escolar de crianças negras e indígenas é o dobro de crianças brancas. A população negra foi proibida de estudar formalmente até 1878. Precisamos olhar com afeto enquanto motor político para as nossas crianças pretas”

Pamela Carvalho, coordenadora do Eixo Arte, Cultura, Memórias e Identidade da Redes da Maré
Após edições em 2009, 2010 e 2013, o seminário volta a acontecer este ano para promover reflexões sobre o contexto educacional nas 16 favelas da Maré. Foram discutidas temáticas atuais da Educação Básica com especialistas que atuam dentro e fora da Maré | Foto: Patrick Marinho

Em 2022 o Geledés realizou pesquisa que revelou a alta evasão escolar de meninas negras na pandemia. O estudo resultou em um curso sobre direito à Educação dessas meninas e mulheres negras que relataram durante o curso, os atravessamentos que sofriam no âmbito da Educação.

“As meninas negras carregam desafios, que além do machismo e sexismo, são ampliados pelo racismo e território que dificultam seus acessos, permanências e trajetórias nas escolas. Enquanto isso, os livros didáticos continuam refletindo o saber europeu. A gente precisa fortalecer esse espaço de saberes enquanto sociedade civil e instituições. Os saberes e as pessoas não podem ser colocados como superior e inferior. Precisamos furar as bolhas de controle educacional”, relata Suelaine Carneiro, do Instituto Geledés e ativista do Fundo Malala de Educação no Brasil.

Território, Saúde Mental e Direito garantido 

A saúde mental dos jovens da favela e os desafios do território também foram pautas no debate. Durante o ano de 2022, foram 15 dias sem aulas decorrentes das operações policiais. Em 6 meses de 2023 foram 10 dias letivos sem funcionamento das escolas.

O Boletim de Segurança Pública da Maré, mostra que em 2022, 62% das operações não mantiveram o distanciamento do perímetro das escolas como exigido pela ADPF 635. Tainá Alvarenga, coordenadora  do Projeto Maré de Direitos é enfática: “Não é só não ter aula, é uma violação direta de um direito humano e constitucional. A Educação não se estrutura sozinha”, conta. 

A orientadora educacional, Aline Brito defende a contratação de profissionais de áreas diversas no âmbito escolar para a garantia do direito à Educação do aluno, principalmente nas favelas: “A escola na favela é a fotografia do que é o social. Falamos muito sobre acessar, mas como manter todos os alunos na escola? Uma favela que tem mais de 40 escolas sem orientadores educacionais não tem como.” Aline diz ainda que a escola precisa dialogar com assistentes sociais, psicólogos e instituições que considerem a classe, cor e gênero como fatores importantes para uma Educação de qualidade. 

Para Francine Helfreich, da Escola de Serviço Social da UFF, “a Educação Básica vem sendo tratada como prioridade, mas não carrega uma perspectiva de educar integralmente, dialogicamente e de forma humanizada. A preocupação é de números e não do questionamento das estruturas das instituições educacionais. Grandes mudanças a gente faz com luta, mobilização e articulação coletiva como esta carta que estamos construindo”, relata.

Após edições em 2009, 2010 e 2013, o seminário volta a acontecer este ano para promover reflexões sobre o contexto educacional nas 16 favelas da Maré. Serão discutidas temáticas atuais da Educação Básica com especialistas que atuam dentro e fora da Maré | Foto: Patrick Marinho

Assim como o questionamento sobre a Educação Básica, o acesso às escolas e permanência dos jovens, o seminário também refletiu sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Maré. Janete Trajano falou da importância do encontro para pensar juntos enquanto sociedade civil e instituições, as estruturas de ensino, métodos educacionais e articulações para manter os jovens e adultos nas escolas. “Um seminário desse porte tem uma potência muito grande pois não basta só ampliar o número de matrículas se a única coisa que temos na escola é o professor e o quadro. Precisamos ter uma educação integral da escola com a sociedade, que envolva saúde, cultura, esporte. É preciso que outras instituições estejam presentes. Pensar a formação de ensino tentando entender quem são esses sujeitos que estão nesses espaços educacionais”, diz. 

Um estudo sobre a educação

No segundo dia do seminário “Diálogos e possibilidades para garantia do direito à Educação, os trabalhos começaram com uma oficina com Andreza Dionísio, Rebecca Vitória e Brenda Vitória, que trouxeram um jogo de cartas com histórias, que se passam no Conjunto de Favelas da Maré, para promover reflexões e debates sobre temas como direitos sexuais e reprodutivos. 

A oficina “Experiências com a abordagem Afroetnomatemática na Maré”, com Diego Marcelino, debateu o poder das narrativas no ensino da Matemática e sua influência na relação com aprendizagem no campo das exatas dos/as estudantes negros/as. No mesmo horário a oficina “O avesso do mesmo lugar: uma reflexão sobre a Maré afroindígena”, com Marcos Melo  buscou fazer uma reflexão da Maré na perspectiva dos povos originários e da população negra, passando pelas transformações que ocorreram no território a partir do Porto de Inhaúma e dos projetos urbanos entre os séculos XIX e XX.

Após edições em 2009, 2010 e 2013, o seminário volta a acontecer este ano para promover reflexões sobre o contexto educacional nas 16 favelas da Maré. Foram discutidas temáticas atuais da Educação Básica com especialistas que atuam dentro e fora da Maré. | Foto: Patrick Marinho

Na segunda parte da manhã “Educação e Segurança Pública”, Patrícia Vianna e Camila Barros, apresentaram os dados da 7ª edição do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré e o storymaps De Olho na Maré – Impactos da Violência Armada na Maré. A oficina provocou uma reflexão sobre a violência armada e seu impacto no acesso à Educação. Também ocorreu a oficina “Esse ou aquele – combinando nossa convivência”, com Adelaide Resende, que expôs possibilidades de se construir acordos de convivência de forma lúdica e divertida.

Desafios em pauta

Na parte da tarde, a mesa “Educação e Território: desafios e potencialidades na Maré” contou com a mediação de Tábata Lugão, e as convidadas Gisele Martins e Andreia Martins, ambas da Redes da Maré, Ingrid White, diretora do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Moacyr de Góes e Viviane Couto, professora da Escola Municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016. Andreia mostrou os números de abril de 2022 sobre a Educação na Maré, que conta com 46 escolas municipais, sendo 17.483 alunos e quatro colégios estaduais, com 2.631 alunos. Retratou que a quantidade de escolas municipais teve um avanço, que contava com 20 unidades em 2009. Já a rede estadual, que contava com duas escolas em 1972, no qual usam equipamento municipal, uma em 1993 e outra em 2018, hoje continua com as 4 unidades. Andreia ainda mostrou que apesar da quantidade de unidades no âmbito municipal, 19 são destinadas ao primeiro segmento, e apenas cinco são para o segundo segmento. Outro ponto é a existência de apenas quatro equipamentos referente ao Ensino de Jovens e Adultos (EJA).  

Ingrid White, diretora do Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Moacyr de Góes mostrou os desafios da unidade no qual atua e de outras oito que fazem parte do Campus Maré I. “Temos uma área externa que é pouco usada, por motivo de deterioração e violência, pois ficamos em área de conflito. Quando não ocorre confronto armado, há operações policiais. Qual o educador que vai desejar trabalhar nessa área? Enfrentamos a situação com potencialidades, como estreitamento com a família e parcerias que nos possibilitam realizar projetos.”

Viviane Couto, professora da Escola Municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016, ex-moradora da Maré destacou a importância da escolha do território e da vontade de mudar a vida dos alunos. Para ela, é preciso ter uma política educacional para a Maré. “Falta qualidade da manutenção dos prédios. O professor está na luta, mas não tem estrutura. É só olhar o terreno das escolas com capim alto, o que se percebe que não há cobrança política. Falta professor de apoio e reserva, o que causa a continuidade na rotina de estudo para o aluno.” Ela foi interrompida por aplausos quando pediu à Coordenadoria Regional de Educação (CRE) soluções dessas questões.

Já Gisele Martins apresentou sua tese de doutorado “Quero que não tenha tiro, tortuosos caminhos na trilha dos direitos das crianças e adolescentes nas favelas”, que ouviu profissionais envolvidos na Educação no território. O estudo foi realizado entre 2016 a 2020, por meio da Pontifícia Universidade Católica (PUC). Foram 12 entrevistas, com 77 respostas individuais. Dos entrevistados 53% mostraram que no início do trabalho na Maré, não queriam atuar no território. Contudo, ao se habituar o número muda para 95% satisfeitos de fazerem parte do corpo educacional da Maré. A pesquisa também mencionou que 83% usam estratégias de comunicação para poder entrar no território. O trabalho também revela que 69% utilizam parcerias e ações para enfrentamento a violência. 

Um novo Ensino Médio excludente

A segunda mesa tinha como tema !O Novo Ensino Médio e os desafios para os jovens das favelas”, trazendo a mediação de Fernanda França. Para debater o tema os convidados Eblin Farage, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcelo Belford, diretor do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes e Bia Onça, professora do Colégio Pedro II e coordenadora da Casa das Pretas. 

Eblin Farage destacou que o novo Ensino Médio expulsa o pobre e o preto. “A evasão é responsabilidade do poder público. Falta até escola de segundo segmento do Ensino Fundamental. Como ampliar a lei de cotas se o aluno periférico não consegue nem concluir o básico? A mudança no ensino só limita o estudo das disciplinas principais e a formação em empreendedorismo, que é trabalhar sem os direitos trabalhistas. Isso é avanço? Esse ato nasce de um decreto criado pelo governo golpista do Michel Temer, sem discussão com a sociedade”, comenta.

A ex-estudante do Pré-Vestibular Samora Machel, na Cidade Universitária, Bia Onça, questionou o caminho que a mudança traz, do aluno só poder escolher o técnico ou o profissional, privando-o de um estudo de preparação para a faculdade. “Precisamos de uma Educação emancipada, como ensinou Paulo Freire. Cada canto do Brasil tem a sua característica, igualmente, cada favela da Maré tem a sua particularidade. Não se pode ter um padrão educacional. Hoje são os pretos que são reprovados e que não chegam ao final. Agora essa mudança será mais uma barreira.” 

O professor de história e diretor do Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, Marcelo Belford, trouxe a trajetória de luta na Maré, que começa em 1979 e quatro anos depois tem uma dissertação de mestrado de uma colega de profissão, que traz o título: A doença que não dói. “Eu tinha 17 anos e me marcou, pois, os alunos de alfabetização dessa professora ficavam três anos para conseguirem ler e escrever. Eu na infância tinha vergonha de ser favelado, feio e pobre. Tinha sido removido da Praia do Pinto, mas tinha vergonha de voltar à Zona Sul. Isso mostra que toda mudança é excludente. Não se pode criminalizar a vítima”, avalia. 

Também houve lançamento de dois livros: “Educação pública no Conjunto de Favelas da Maré, desafios e potencialidades”, que tem como foco o processo educacional no território; e “Toda Menina na Escola: pelo direito à educação na Maré”. Todos os presentes receberam um exemplar, que traz diversos textos de mulheres integrantes do projeto Busca Ativa na Maré, com apoio do Fundo Malala. 

Ao fim do evento ocorreu a apresentação da Carta para a Educação da Maré, com 33 desafios, elencados durante os dois dias de encontro. O texto final, que será publicado no site da Redes da Maré e encaminhado para o poder público, foi organizado por Kelly Marques, Alessandra Prado e Aline Borges, da Redes da Maré.