Operações e remoções impactam a vida dos moradores e geram múltiplas de violações
Maria Tereza Cruz
Edição #164 – Jornal Impresso do Maré de Notícias
“Tive que sair da minha casa, porque a crise do meu filho piora na poeira e, para não voltar com ele para uma UTI, precisei pedir ajuda de amigos”. Esse é um trecho de um depoimento postado por uma moradora da Maré nas redes sociais.
Na imagem, ela aparece com o filho, um bebê de um mês de vida, no colo, e narra que a sua família é uma das que está sendo removida dos prédios construídos no Parque União. A poeira de edificações é composta por partículas finas de materiais como cimento, areia, gesso, e outros componentes e a inalação dessas partículas pode causar problemas respiratórios, irritação nos olhos e na pele, e, em casos mais graves, doenças como a silicose, quadro crônico que pode comprometer o funcionamento dos pulmões.
O que aconteceu
Agentes da Prefeitura do Rio de Janeiro foram até as construções no dia 3 de julho e colocaram cartazes dando o prazo de três dias para os moradores simplesmente saírem das casas. Nem a Secretaria de Assistência Social e nem a de Habitação visitaram o local na data para cadastro de famílias e demais orientações sobre o processo.
O papel colado dava ainda a informação pouco detalhada de que, caso a determinação não fosse cumprida, os prédios poderiam ser demolidos a qualquer momento. O processo de demolição começou no dia 19 de agosto e seguiu até o início deste mês, com previsão de retorno para uma “segunda fase”, de acordo com a Secretaria de Ordem Pública (SEOP).
Somente no dia 24 de agosto, no 6º dia de operação policial consecutiva para a realização das demolições, é que agentes da Secretaria de Assistência Social apareceram no local e, segundo nota da pasta, cadastrou 40 famílias.
Múltiplas violações
Nesse período todo, a moradora que fez o desabafo nas redes sociais, o filho com problemas respiratórios e todos os outros moradores ficaram submetidos a poeira. Mas também vivenciaram outras violações: ameaças, xingamentos e até a invasão de seus domicílio e furto de pertences por parte do Estado que, na verdade, deveria auxiliar e atender as demandas dessas pessoas.
Ana Beatriz, de 20 anos, vive no local há três anos e contou que não recebeu diretamente nenhum aviso prévio da demolição. “Eu penso em continuar na minha casa, não vou sair, até porque eu não tenho para onde ir e meus filhos são pequenos ainda. Não tá tendo aula, eu tenho que levar minha filha no posto e não tá tendo [atendimento]”.
A Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP), em conjunto com a Polícia Civil e com batalhões especiais da Polícia Militar, coordena as demolições e a retirada das famílias. Mas no site da prefeitura do Rio, consta apenas a seguinte atribuição à SEOP: “formular e implementar políticas públicas que garantam a manutenção da ordem urbana e a integração da Prefeitura com todas as forças de segurança pública”.
Em um trecho da nota divulgada no dia 21 de agosto, a Redes da Maré toca neste ponto. “O que estamos testemunhando envolve violações mais amplas dos direitos fundamentais dos moradores. A questão das remoções é histórica e está profundamente ligada ao problema do acesso à moradia digna nas favelas e periferias urbanas. A falta de políticas públicas adequadas e a negligência estatal com os espaços e equipamentos resultam em estratégias improvisadas para ocupar o espaço urbano sem a devida regulamentação e fiscalização. O Estado, ao abdicar de sua responsabilidade na gestão do espaço público e na regulação dos direitos urbanos e habitacionais, contribui para a perpetuação dessas práticas.”
O que diz a lei
Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou uma arguição, como resultado da Campanha Despejo Zero, que, na ocasião, representava uma grave violação aos direitos humanos, diante da pandemia. A partir dessa articulação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou a resolução 510 e uma cartilha de orientações para quando o despejo for a última saída.
Nesse texto, há o passo a passo para a realização de remoções, começando com uma reunião para elaboração do cronograma de desocupação: “Essa reunião deve contar com a presença dos ocupantes, seus advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de assistẽncia social, movimentos sociais e/ou associações de moradores e o Oficial de Justiça responsável pelo cumprimento da ordem, além de outros possíveis interessados”.
Em seguida, o município deve fazer um cadastramento das famílias que ocupam a área a ser despejada, bem como fazer a realocação e inserção delas em programas habitacionais, com a presença da assistência social e a garantia de um prazo razoável para desocupação.
Nada disso aconteceu no processo de retirada dos moradores do Parque União, o que tornou a rotina dos moradores, inclusive de outras favelas do conjunto, incerta, tensa e insegura.
Todos afetados
Em 2024, a Maré já viveu 37 operações policiais. Em agosto foram 10 dias consecutivos de operações. Crianças e adolescentes já perderam, desde janeiro, um mês inteiro de aula.
Os impactos das escolas fechadas vão muito além do ensino propriamente dito, como destaca a nota da Redes da Maré. “O processo de ensino e aprendizagem fica completamente comprometido quando existe sempre a possibilidade de não se ter aula no dia seguinte. Essa incerteza, permeada por estresse e ansiedade, afeta toda a comunidade escolar, causando adoecimento físico, mental e emocional dos estudantes e suas famílias, mas também de professores, gestores e outros profissionais de educação.”
Além das escolas, a rede de saúde também tem sido severamente afetada, só nos 10 dias consecutivos de operações policiais, mais de 2 mil atendimentos deixaram de ser realizados.
Uma moradora nos relatou que faz tratamento psiquiátrico e necessita de remédios controlados de uso contínuo, mas não conseguia ter acesso aos medicamentos. Outro morador nos contou que sofre de uma doença crônica e teve o quadro de saúde agravado no domingo, que antecedeu o início das operações, e ficou 4 dias esperando para ser atendido.
A circulação constante de policiais e veículos blindados também alteram sensivelmente a rotina da comunidade, inclusive, para além dos limites do Parque União. Ao menos três direitos constitucionais estão sendo sistematicamente violados: o de acesso à educação (artigo 205º), à saúde (artigo 6º) e o direito de ir e vir (artigo 5º).
O pior é que este cenário não tem prazo para acabar. Em insistentes questionamentos feitos pelo Maré de Notícias aos órgãos responsáveis sobre o cronograma e previsão de término das remoções, as respostas foram evasivas. Em muitos casos, se limitaram a dizer que “as operações vão continuar pelos próximos dias”.
‘A pneumonia é a infecção que mais mata no planeta’, diz especialista
As pneumonias podem ser causadas por diferentes agentes infecciosos, como vírus, bactérias e fungos
Hélio Euclides e Teresa Santos
Nos primeiros seis meses deste ano, mais de 400 mil pessoas foram internadas com pneumonia no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, pelo menos 28 mil morreram até agosto. Após a morte do comunicador Sílvio Santos, de 93 anos, um “novo” termo ganhou visibilidade entre a população: broncopneumonia. O apresentador morreu em agosto deste ano em decorrência de complicações de uma infecção por Influenza (H1N1), gripe que evoluiu para esse tipo de pneumonia. Com isso, a pesquisa do termo atingiu um pico de popularidade no Google, com usuários buscando entender melhor essa condição.
E afinal, o que é broncopneumonia?
Segundo Denise Medeiros, médica pneumologista e intensivista Instituto Nacional de Infectologia da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz), a broncopneumonia é um subtipo de pneumonia. E assim como os outros tipos de pneumonia é potencialmente grave. “A pneumonia é a infecção que mais mata no planeta”, destaca em entrevista ao Maré de Notícias. A mesma doença também atingiu o presidente Lula no ano passado.
As pneumonias podem ser causadas por diferentes agentes infecciosos, como vírus, bactérias e fungos. Isso significa que a pneumonia pode ser causada por bactérias como pneumococos e estafilococos, mas também por vírus como os da influenza, da Covid-19 e até mesmo do sarampo, entre outros agentes.
A imunização como precaução
Felizmente, já existe vacina para boa parte dos agentes infecciosos citados acima. E, de fato, uma das principais medidas de prevenção da pneumonia é a vacinação. Entre os imunizantes disponíveis no Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde, estão a vacina contra Influenza, covid-19 e pneumocócica-10 valente, conhecida como Pneumo 10. Saiba onde e quem pode se vacinar clicando aqui.
A vacina contra a pneumonia Pneumo 10 faz parte do calendário de vacinação infantil do Ministério da Saúde e está disponível como rotina em todas as unidades de Atenção Primária, como clínicas da família e centros municipais de saúde. O imunizante é indicado para crianças até 04 anos, 11 meses e 29 dias. As vacinas Pneumo 13 e Pneumo 23 têm indicações específicas definidas pelo Ministério da Saúde, e estão disponíveis nos Centro de Referência para Imunos Especiais (CRIE). A vacina da gripe está disponível para todos a partir de 6 meses de idade na cidade.
A médica Denise Medeiros lembra ainda que o calendário vacinal das crianças tem outras vacinas que protegem contra a pneumonia, tal como a tríplice viral, que protege contra o sarampo, caxumba e rubéola, e a vacina Hib que atua contra infecções bacterianas causadas por Haemophilus influenzae tipo b (Hib). A Hib está contida na vacina Pentavalente.
A médica pneumologista, pesquisadora da Fiocruz e presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Margareth Dalcolmo, em entrevista ao Maré de Notícias, adverte que muitas doenças são desenvolvidas a partir de outras complicações. “No caso de Silvio Santos é bom destacar que teve complicações com a gripe Influenza A. É fundamental que todos se vacinem contra a gripe/influenza, lembrando que essa vacina é anual e não esquecer de todos os demais imunizantes da infância. Outro ponto é o controle do ambiente”, comenta.
A Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro reforça a importância da vacinação contra a gripe, sobretudo durante o inverno, que apresenta forte sazonalidade para quadros respiratórios graves, especialmente entre os públicos mais vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com imunossupressão.
Pneumonia e Síndrome Respiratória Aguda Grave
A pneumonia não é uma doença de notificação compulsória, o que significa que os profissionais de saúde não são obrigados a informar as autoridades sanitárias sobre todos os casos. A exceção ocorre quando a pneumonia evolui para Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Em 2024, até o momento, o município do Rio de Janeiro já registrou 4.281 casos de SRAG.
A médica do INI/Fiocruz, Denise Medeiros, lembra que na SRAG o quadro gripal se acentua, com características de gravidade relacionadas à disfunção da respiração.
“A SRAG é uma síndrome que, em sua definição, não tem causa determinada. O Ministério da Saúde notifica por uma questão de vigilância. Quando o quadro gripal se acentua com características de gravidade que são relativas exatamente à disfunção da respiração, temos a SRAG. Esta síndrome se refere à falta de ar, queda do nível de oxigênio no sangue (queda da oximetria) e coloração azulada dos lábios ou rosto, quadro conhecido como cianose (condição causada pela má oxigenação).”
Mas, mesmo sem evoluir para SRAG, a pneumonia, por si só, exige muita atenção. É preciso atentar quando a pessoa tem além da febre, tosse e catarro, sinais como falta de ar, dor ou alteração do sensório, isto é, confusão, alteração de consciência, algo particularmente comum em idosos.
O melhor caminho é buscar atendimento, como fez Maria Margarida, de 80 anos, moradora do Parque União. Ela procurou a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Maré para ser atendida. “Semana passada até procurei a UPA para exames, pois estava com calafrios, mas não tinha nada, só uma indisposição. Esse ano não tive nenhuma doença respiratória. Eu tomei a vacina contra a gripe para me proteger”, diz.
Além de procurar atendimento médico em caso de sintomas e de se vacinar para prevenir as infecções, existem outras medidas importantes que também podem evitar as infecções respiratórias.
A Dra. Denise Medeiros lembra que as pneumonias virais podem ser transmitidas de uma pessoa para outra. Portanto, é necessário atenção a cuidados habituais: lavar as mãos e usar máscara se tiver sintomas respiratórios. “Aprendemos a adotar essas medidas na Covid-19, mas elas valem para todas as situações de risco de pneumonia viral”, destaca a especialista.
Vacina Maré completa três anos de pesquisa e vacinação em massa
Projeto iniciou em 2021 com campanha de vacinação em massa e hoje realiza mapeamento do impacto do coronavírus no território da Maré
Edição #163 – Jornal Impresso do Maré de Notícias
O projeto Vacina Maré, iniciativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Redes da Maré e Secretaria Municipal de Saúde, está completando três anos. O programa começou em 2021, com a campanha Vacina Maré, que imunizou mais de 36 mil moradores em apenas quatro dias, uma mobilização histórica pelo direito à saúde.
Produção de dados
Um dos frutos desta mobilização é a produção de dados sobre a saúde da população mareense, um marco importante quando se pensa em saúde nas favelas. O principal objetivo da pesquisa é analisar a eficácia da vacina contra a Covid-19 na população da Maré e o impacto na vida dos moradores.
No auge da pandemia, a Maré registrou uma queda de 89% na letalidade por covid:
Cerca de 6.500 moradores da Maré, incluindo crianças, participam do estudo para entender como a Covid-19 se espalha dentro das famílias e na favela. É realizado um acompanhamento da saúde dessas famílias ao longo do tempo, coletando amostras de sangue periodicamente. Os dados são armazenados pela Fiocruz.
Para Fernando Bozza, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia da Fiocruz, as ações de incidência e capacitação que a Redes da Maré fez na área da saúde foram fundamentais para fortalecer a parceria, assim como o financiamento, às pesquisas e à produção de dados.
“Esse projeto teve impacto não só na Maré como na própria sociedade civil, gerando ações mais efetivas no campo da saúde pública. Fomos convidados para apresentar o Vacina Maré na Organização Mundial da Saúde, no Ministério da Saúde e em diversas universidades internacionais. Inclusive, o projeto foi reconhecido como uma das 6 ações mais importantes da Fiocruz na pandemia”, conta
Direito à informação
A moradora do Parque Rubens Vaz, Roxana Novais, é acompanhada pelo programa Vacina Maré desde 2021. “Fazer parte desse projeto é confortante, porque mesmo no meio do caos que estávamos vivendo com a covid, tivemos pessoas que nos acolheram, que nos passaram informações. Mesmo sendo escassas, as informações eram precisas e claras, e o acompanhamento dessa equipe sempre foi impecável. Para mim, esse projeto tem uma importância enorme, pois ele acompanha e leva informações para quem não consegue ter acesso fácil”, reflete Roxana.
A pesquisa faz parte do projeto internacional EFFECT-Brazil e conta com o apoio de três instituições: o Instituto Todos pela Saúde (ITpS), no Brasil; o Centers for Disease Control and Prevention de (CDC), nos Estados Unidos; e a Wellcome Trust, no Reino Unido. O projeto foi selecionado pelo International Covid-19 Data Alliance (ICODA), uma iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates, entre mais de 400 propostas enviadas por diversos países.
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Território saudável
O eixo Direito à Saúde, da Redes da Maré, busca tornar a Maré referência de território saudável, mapeando cadernetas de vacinação de crianças e adolescentes. Os projetos e ações do eixo também visam ampliar o conceito de saúde, compreendendo que um morador saudável não é apenas aquele que vive sem doenças, mas sim o que tem bem-estar físico, mental e social.
Diana Souza, coordenadora de campo da pesquisa, conta que: “o projeto mantém uma relação de proximidade com as unidades de saúde, atuando em conjunto com elas. O Vacina Maré é uma pesquisa de produção de ciência em saúde nas favelas, pensando nas perspectivas da saúde de forma ampliada”.
Ela reforça a importância da participação dos moradores para que a campanha fosse realizada e, para que hoje a pesquisa continue: “Acredito que a mobilização do Vacina Maré trouxe um sentimento importante de pertencimento, todos deram seu máximo independente de qual favela pertencia. Trabalharam de forma incansável para que desse certo. E não podia ser diferente, foi maravilhoso!”
Capoeira raiz de luta e cultura na Maré
Arte é mistura de ritmo, canto e resistência contra a opressão e preservação da história
Edição #163 – Jornal Impresso do Maré de Notícias
A Capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira e estima-se que seja praticada por mais de 6 milhões de pessoas em todo o mundo, mas, nem sempre foi assim. Criada por africanos escravizados e seus descendentes, a capoeira foi estigmatizada e até 1937 era proibida no Brasil.
Foi necessário muita luta e ginga para que a capoeira fosse considerada cultura e reconhecida, em 2014, como patrimônio cultural imaterial da humanidade, pela UNESCO.
África-Brasil
A capoeira chega ao Brasil por meio do ritual do engolo (ngolo), realizado por povos do sul de Angola, na África. Mais de meio milhão de homens e mulheres das regiões do Congo-Angola foram traficados para o Brasil, trazendo junto com eles a própria cultura.
A capoeira surge como uma das formas de lutar e resistir, mantendo a cultura viva. Ela foi “disfarçada” de dança de roda, para não chamar atenção: é por isso que, no centro, duas pessoas disputam e dançam, ao som de palmas e de instrumentos, como berimbau, reco-reco, agogô, atabaque, chocalho e pandeiro.
Capoeira Maré
Dia 3 de agosto é comemorado o Dia do Capoeirista e, recentemente, um capoeirista mareense foi destaque em um reality show nacional. O professor Lucas Henrique mostrou para todo o Brasil que a capoeira ocupa um importante espaço na vida dele:
Um dos capoeiristas pioneiros é Vicente Ferreira, o Mestre Pastinha, nascido em 1889, um ano depois da abolição de 1888. O mestre era defensor da preservação da Capoeira Angola, conhecida como capoeira mãe, pelo resgate de movimentos tradicionais, executados perto do solo e com uma mistura de jogo, canto, toque e história. Ele considerava a capoeira como a luta dos excluídos e explorados.
Na Maré, o defensor dessa linha é Manoel Lopes, o Mestre Manoel, de 62 anos. Em 1994, começou a trabalhar no território e fundou o Grupo Capoeira Ypiranga de Pastinha, na ocupação Portelinha, no Morro do Timbau. Ele conta que seu trabalho é focado na arte, educação e conscientização.
“Quando cheguei na Maré as mulheres não queriam cabelos crespos e nem serem identificadas como negras, mas sim mulatas, sem saber o verdadeiro significado dessa palavra”, destaca. Mestre Manoel defende que os alunos dele sejam cidadãos políticos e não apenas lutadores.
“Tem que ser mandingueiro, tendo jogo de cintura para sobreviver. A capoeira precisa resgatar que o povo preto foi escravizado e teve uma falsa liberdade, assinada a lápis. Os meus alunos precisam compreender que há uma ausência de políticas públicas, que tudo foi negado aos afrodescendentes e povos originários. Hoje, não somos escravos do colonizador, mas sim do sistema, que por meio de operações policiais na favela, tenta o extermínio do povo preto. A verdadeira história do Brasil foi apagada, de que a miscigenação foi forçada”, enfatiza.
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Expressão da liberdade
Há 50 anos morria Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba. Ele fundou a capoeira regional, no final da década de 1920, e foi o primeiro capoeirista a dar aulas em local fechado. À época, um divisor de águas, pois ao sair da rua, diminuíram as perseguições policiais. Em 1953, Mestre Bimba promoveu uma apresentação para o então presidente Getúlio Vargas.
Admirador do Mestre Bimba, Iranildo Batista, o Mestre Yrann, de 64 anos, da Associação de Capoeira Kapoart, há 50 anos pratica a arte. Ele lembra que o primeiro berimbau que teve foi feito com cabo de vassoura e lata de leite e, os treinos, eram na Associação de Moradores do Parque União, com Mestre Silas.
“Eu era esforçado, pois arrumava tempo entre o estudo e o trabalho. Aprendi que a vida é a maior expressão de liberdade e que a capoeira se compara a ela. Que a palavra capoeira deriva de um vegetal do mesmo nome e da resistência dos negros contra os açoites.”
O irmão dele, Ivanildo Batista, de 64 anos, o Mestre Mano, começou a prática da capoeira na Bahia e deu continuidade à cultura também no Parque União. “O conhecimento ninguém tira da gente, ano que vem completo 50 anos de capoeira. Um diferencial é que desde de 2019, atuo na Capoeira Viva Para Cristo, onde realizo um trabalho missionário no qual levo o evangelho através da arte”, diz.
Para todos e todas
Para quem acha que a capoeira é um mundo masculino, está enganado. Maria Cleide, de 56 anos, a Mestre Cleide, do Grupo Terra, de Olaria, é viúva de um dos maiores mestres da cidade do Rio de Janeiro, o Mentirinha. Ela exalta a força da mulher que precisou conquistar o seu espaço.
“Só há 20 anos que conseguimos aparecer, pois antes era muito complicado, até pegar um berimbau era difícil. Hoje somos muitas”, garante.
Tetracampeão
Um dos capoeiristas mais antigos da Maré é Jorge Roberto, o Mestre Crioulo, de 70 anos. Ele começou na capoeira aos 10 anos, ainda na época das palafitas.
“Só tinha uma televisão na rua e assisti o filme: O pagador de promessas, onde tinha uma roda de capoeira. Decidi que queria isso para minha vida. Meu pai era contra, pois associava a ser vagabundo, então, tive que aprender lendo o livro Capoeira Sem Mestre”, conta.
O pai de Crioulo descobriu o que o filho fazia através do jornal, que trazia ele na manchete e na foto, com o título de primeiro campeão brasileiro da modalidade. “Os vizinhos deram parabéns e meu pai acabou aceitando, então, repeti o feito de campeão em 1975, 1978 e 1981. Conheci o mundo através da capoeira, mostrando que o gol é demonstrar que sabemos bater, mas que a arte é não machucar”.
Novas vozes na Capoeira
Apesar de legalizada e premiada, a capoeira e os capoeiristas não deixaram de encontrar dificuldades para manter os grupos. Ainda assim, o que mantém a arte forte e viva nesses muitos séculos, é a renovação das lideranças e dos mestres.
Entre um golpe e outro, além de alunos, já aparece lideranças jovens no meio de saltos. Entre essa juventude se encontram dois irmãos: os mestres Jacaré e Crocodilo.
Sérgio Inácio, de 36 anos, o Mestre Crocodilo, fundador do Grupo Maré de Bamba, respira o gingado da capoeira há 22 anos, ao lado do irmão, Mestre Jacaré. Ambos vieram da Paraíba para a Maré, e Sérgio confessa que, ao chegar, teve um choque com a cultura carioca. Para aliviar a ansiedade e a saudade, encontrou na capoeira um estilo de vida.
Ele conta que seu maior encanto é ensinar o que aprendeu com outros mestres. Por isso, já deu aulas em escolas e creches e criou o grupo que, atualmente, ocupa o Museu da Maré.
“Isso é preservar a cultura! Com respeito, tento repassar o que aprendi”, conclui.
Favela Olímpica: atletas medalhistas da Maré inspiram novas gerações do esporte
A emoção inexplicável de quem já competiu nas Olimpíadas e a esperança dos sucessores
O mundo vivenciou a 33ª Olimpíada, que aconteceu em Paris, na França. Agora nas atenções se voltam para os Jogos Paraolímpicos, disputados por atletas com deficiências motoras, visual ou intelectual de várias modalidades, representando o seu país e tentando levar para casa uma medalha no peito. Quem já participou das Olimpíadas, maior competição esportiva do planeta, afirma que é uma emoção inexplicável.
Nova Holanda olímpica
Dizem que o atleta precisa não só correr atrás do que almeja, mas correr na frente. Foi o que fez o ex-atleta olímpico Robson Caetano, de 59 anos, que deu seus primeiros passos na Nova Holanda. Ele se tornou recordista sul-americano dos 100 metros rasos e participou de quatro edições olímpicas, trazendo duas medalhas para o Brasil.
“Nasci na rua F e tenho orgulho disso. Estou há mais de 20 anos aposentado das pistas, mas não deixo de levar o que aprendi a todos. É muito bom ver as sementes que plantamos”, comenta.
Outro que não esquece suas raízes é o ex-pugilista Roberto Custódio, de 37 anos, também da Nova Holanda. Ele construiu a trajetória esportiva na instituição Luta Pela Paz e hoje é o coordenador esportivo. Roberto foi medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 2013 e competiu nos Jogos Olímpicos de 2012:
Felipe Gomes tem 38 anos e vai para quinta Paralimpíadas, na classe T11, para deficientes visuais. O cria da Nova Holanda reclama que o maior peso é que o Brasil é o país do futebol e não do atletismo. “E quando é Paralímpico, ainda é pior, [porque patrocinadores] não desejam associar a marca a pessoas com deficiência. No Brasil, depois de 2016, o incentivo para o esporte de modo geral piorou. Muita coisa se perdeu, são muitos elefantes brancos pela cidade. A gente tem a esperança de que as coisas venham melhorar por meio de projetos sociais, das vilas olímpicas e das escolas”.
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Pensar o futuro
Felipe Oliveira, de 24 anos, ex-boxeador, criou o trabalho social gratuito da Escola de Boxe Havana, em uma praça do Conjunto Esperança. O projeto hoje já conta com três núcleos na Maré e mais de 100 alunos.
“Acredito que o sonho de todos da minha equipe são as Olimpíadas, mas são muitas etapas, uma estrada longa. Formar o favelado é mais difícil, pois não temos ajuda governamental. Os equipamentos são caros, por isso precisamos de apoio. Mas não vamos desistir, pois como numa luta, o impossível é questão de opinião”, ressalta.
Um dos destaques do projeto é Cauã Kabriel, de 14 anos. Ele assegura que o boxe é essencial para a vida dele. “Eu tinha muita distração e o boxe trabalha a mente e a concentração, dessa forma, eu evoluí no esporte. No ringue aprendi a ter disciplina, algo que levei para a casa. Eu me vejo um vencedor! Quem sabe um dia chego às Olimpíadas, mas também quero passar a outros da favela o que aprendi, de que o talento está dentro da gente, só precisa de quem nos apoie e incentive”, afirma.
Kaillany Melo, de 15 anos, é atleta de jiu-jitsu, mas vem se destacando também na modalidade luta olímpica (greco-romana, livre e luta feminina). Ela é atleta da instituição Luta Pela Paz e do projeto Tijolinho, na Nova Holanda. Campeã brasileira, conseguiu conquistar o auxílio da Bolsa Atleta. Kaillany classificou-se para a seletiva dos jogos Pan-Americanos, mas por problema no passaporte, perdeu a vaga. “No caminho se encontra dificuldades, mas não se pode desistir. Sei que hoje tenho uma representatividade feminina”, resume.